quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Mario Quintana, "Projeto de prefácio"


Sábias agudezas... refinamentos...
— não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes dos caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe.
Um poema não é quando também paras no fim,
porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras!


segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Jacinta Passos, "Nascimento"


O ano foi vinte e dois.  Criatura de desejo
e sonho.  Carne e luar na boca das profecias.
Aqui está recém-nascido, úmido de lágrimas
e leite, filho das dores, criança concebida 
na injustiça.


O poema refere-se ao Partido Comunista Brasileiro, fundado em 1922.
 

domingo, 28 de dezembro de 2014

Manuel Bandeira, "Poema de Finados"


Amanhã que é dia dos mortos.
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.

Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
O filho tem mais precisão.

O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero.
E em verdade estou morto aqui.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Mario Quintana













"Outono"

O outono de azulejo e porcelana
Chegou! Minha janela é um céu aberto.
E esse estado de graça quotidiana
Ninguém o tem sob outros céus, decerto!
Agora, tudo transluz... tanto mais perto
Quanto mais nossa vista de alontana
E o morro, além, no seu perfil tão certo,
Até parece em plena via urbana!
Tuas tristezas... o que é feito delas?
Tombaram como as folhas amarelas
Sobre os tanques azuis... Que desaponto!
E agora este cartaz na alma da gente:
ADIADOS OS SUICÍDIOS ... Simplesmente
Porque é abril em Porto Alegre... E pronto!

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

José Carlos Capinan, "Outra didática"


Dou ao meu verso usos de clareza
de um rio coerente à sua limpeza.
Não desvirtuei a cidade que percebi,
denunciei o fruto como o recebera.

Não me veio pressa ao fazer ou adquirir.
O que fiz exigia madurar-se em corpo,
o que adquiri foi bom, sendo por carência.
Antes tive fome e sede, depois o gosto.

Como se alternaram os caminhos,
preferi aquele que ao mar se prestaria
qual raiz de acontecimento.
E alguma vez me encontrei perdido.

Ante desvio e ponte arruinados
surpreendido o verso é grave e pesa, o verso é grave.
Mas como tudo, sei, guarda um sentido
nenhuma tristeza tenho da realidade.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Ana Cristina Cesar











"Recuperação da adolescência"

é sempre mais difícil
ancorar um navio no espaço

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Alejandra Pizarnik












"A noite"

Pouco sei da noite

mas a noite parece saber de mim,
e mais ainda, me acompanha como se me quisesse,
cobre-me a existência com suas estrelas.

Talvez a noite seja a vida e o sol a morte.

Talvez a noite é nada

e as suposições sobre ela nada
e os seres que nela vivem nada.
Talvez só as palavras existam
no enorme vazio dos séculos
que nos arranham a alma com suas lembranças.

Mas a noite há de conhecer a miséria
que bebe nosso sangue e nossas ideias.
Ela deve lançar ódio aos nossos olhares
sabendo-os cheios de interesses, de desencontros.

Mas acontece que ouço a noite chorar em meus ossos.
Sua lágrima imensa delira
e grita que algo se foi para sempre.

Talvez algum dia voltaremos a ser.

Tradução amadora minha.



"La noche"

Poco sé de la noche  


pero la noche parece saber de mí,
y más aún, me asiste como si me quisiera,
me cubre la existencia con sus estrellas.  


Tal vez la noche sea la vida y el sol la muerte.  

Tal vez la noche es nada

y las conjeturas sobre ella nada
y los seres que la viven nada.
Tal vez las palabras sean lo único que existe
en el enorme vacío de los siglos
que nos arañan el alma con sus recuerdos.

Pero la noche ha de conocer la miseria
que bebe de nuestra sangre y de nuestras ideas.
Ella debe arrojar odio a nuestras miradas
sabiéndolas llenas de intereses, de desencuentros.  


Pero sucede que oigo a la noche llorar en mis huesos.
Su lágrima inmensa delira
y grita que algo se fue para siempre.

Alguna vez volveremos a ser.


sábado, 20 de dezembro de 2014

Mãe curda aleitando o filho numa pausa do combate ao exército do Estado Islâmico (ISIS).

 
































Copiado do site http://isimeria.tumblr.com

Ibn Suhayd, "A tempestade"


Na escuridão,
abria cada flor a sua boca
aos úberes da chuva fecunda.

Carregados de água,
os exércitos das negras nuvens,
majestosamente,
desfilavam, armados
com os dourados sabres dos relâmpagos.


Abū 'Āmir ibn Šuhayd, ou apenas Ibn Suhayd (992 - 1035), foi um poeta árabe andaluz que nasceu e morreu em Córdoba durante a ocupação árabe na península ibérica.

Traduzido do árabe para o espanhol por Emilio Garcia Gómez, e do espanhol para o português por Fernando Couto.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Roberto Piva


"Libelo"

Não mais trarei justificações
Aos olhos do mundo.
Serei incluído - pormenor esboçado -
Na grande Bruma.
Não serei batizado,
Não estarei doutorado,
Não serei domesticado
Pelos rebanhos
Da terra.
Morrerei inocente
Sem nunca ter
Descoberto
O que há de bem e mal
De falso ou certo
No que vi.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Luís Miguel Nava, "Os pratos da balança"


Por entre as rochas um rapaz, nas mãos levando uma balança, avança em direção ao mar. Vai procurar pesá-lo. Num dos pratos, o mar há-de revolver-se, debater-se, rebentar, há-de trazer à superfície a força das entranhas e atrair o céu, há-de o fazer precipitar-se até com ele se confundir, e as próprias rochas através das quais o rapaz segue hão-de pesar no prato ferozmente. Imperturbável, o rapaz colocará no outro prato o seu sorriso.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

António Osório, "Prado e cofre"


Prado e cofre,
testemunha discreta
do amor.

A cama.

Concha do sono,
companheira
dos partos,
do salto
e dor inicial
das crianças.

Berço da nossa morte.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Caetano, "Un vestido e un amor", de Fito Paez.





"Un Vestido Y Un Amor "           

Te vi
Juntabas margaritas del mantel
Ya sé que te traté bastante mal
No sé si eras un angel o un rubí
O simplemente te vi.

Te vi
Saliste entre la gente a saludar
Los astros se rieron otra vez
La llave de mandala se quebró
O simplemente te vi.

Todo lo que diga está de más,
Las luces siempre encienden en el alma
Y cuando me pierdo en la ciudad
Vos ya sabés comprender
Es solo un rato no más
 Tendría que llorar o salir a matar.
Te vi, te vi, te vi
Yo no buscaba nadie y te vi.

Te vi
Fumabas unos chinos en Madrid
Hay cosas que te ayudan a vivir
No hacías otra cosa que escribir
Y yo simplemente te vi.

Me fui
Me voy de vez en cuando a algún lugar
Ya sé, no te hace gracia este país
Tenías un vestido y un amor
Y yo simplemente te vi.

Todo lo que diga está de más,
Las luces siempre encienden en el alma
Y cuando me pierdo en la ciudad
Vos ya sabés comprender
Es solo un rato no más
Tendría que llorar o salir a matar.
Te vi, te vi, te vi
Yo no buscaba nadie y te vi.
 

Pedro Tamen













"Anti-Dürer"

Moras comigo. Alinhas
os teus dedos com os meus.

Comes comigo, dormes, tosses,
alimentas a fome e a fartura,
ergues os ossos com bandeira minha,
tão íntima, próxima, doméstica,
ogre de bolso, pinha de um pinheiro
crescente a par e passo com a sorte:
morte.

sábado, 13 de dezembro de 2014

Hilda Hilst












"Testamento lírico"

Se quiserem saber se pedi muito
Ou se nada pedi, nesta minha vida,
Saiba, senhor, que sempre me perdi
Na criança que fui, tão confundida.
À noite ouvia vozes e regressos.
A noite me falava sempre sempre
Do possível de fábulas. De fadas.
O mundo na varanda. Céu aberto.
Diante das muitas falas, das risadas.
Eu era uma criança delirante.
Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
De não saber dizer coisas amantes.
O que vivia em mim, sempre calava.

E não sou mais que a infância. Nem pretendo
Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!
Ter escolhido um mundo, este em que vivo,
Ter rituais e gestos e lembranças.
Viver secretamente. Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e dócil.
Querer deixar um testamento lírico
E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.

Nem sempre há de falar-vos um poeta.
E ainda que minha voz não seja ouvida
Um dentre vós resguardará (por certo)
A criança que foi. Tão confundida.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Iracema Macedo


"Prisões" 
 
Antes eu era o incêndio
Agora faço seguro contra fogo
Contra roubos

Eu mesma era furacão
Eu mesma roubava
Agora apaziguo tudo e tranco

Antes eu era as perdas
Agora sou vista pelo bairro, precavida,
Comprando cadeados sob medida
 
 

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Jorge Luis Borges





















"Junin"

Sou, mas sou também o outro, o morto,
o outro do meu sangue e do meu nome;
sou um vago senhor e sou o homem
que interceptou as lanças do deserto.
Volto a Junin, vô Borges. Tu me escutas,
sombra ou cinza final, ou desescutas
em teu sonho de bronze esta voz torra?
Talvez procures com meus olhos vãos
o Junin épico dos teus soldados,
a árvore plantada, os teus roçados,
e no confim a tribo e os despojos.
Te imagino severo, um pouco triste.
Quem me dirá como eras e quem foste?


Tradução de Heloisa Jahn.

Borges refere-se ao seu avô, o militar Francisco Borges (1835 - 1874):













Francisco Borges lutou nas guerras civis argentina, participou de campanhas contras os índios e combateu na guerra do Paraguai.
Durante a Guerra Civil de 1874, vendo que perdia uma batalha, atacou sozinho os inimigos.
Mortalmente ferido, morreu algumas horas depois.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Errnâni Sátiro, "A hora da morte"


Pavor.
Mas não da morte -  É da Hora da Morte.
É por isso que te peço, ó Morte;
Que venhas quando quiseres;
De noite ou de dia.
Mas não me deixes nunca pressentir a Chegada.
O medo é da Hora.
Não é do teu mistério, Morte,
Que o mistério da vida é maior.
O que eu temo é a Hora - o ar das pessoas na Hora da Morte.
Tu primeiro te apoderas das testemunhas,
Que aceitam e começam a ser cúmplices.
Tu desaminas e abates os que assistem
Para então desferires o golpe.
Vem, antes ou depois.
Na Hora da Morte, não.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Pedro Dantas, "Oração"


Senhor! Eu sei que tenho pecado
eu sei que sou indigno
e não mereço perdão.

Mas quero pagar por tudo
Quero sofrer por tudo
arrepender-me de tudo.

Quero ser humilhado
e sofrer no meu corpo
todas as penas eternas.

Estou por tudo e me conformo com tudo
contanto que ... Senhor! ... o telefone me chame.
Hoje e todos os sábados, esses dias sem explicação.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Carlos Drummond de Andrade













"Amar"

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
 e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa,
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Odylo Costa, filho, "A meu filho"


Recorro a ti para não separar-me
deste chão de sargaços mas de flores
em que há bichos que amaste e mais os frutos
que com tuas mãos plantavas e colhias.

Por essas mãos te peço que me ajudes
e que afastes de mim com os dentes alvos
do teu riso contido mas presente
a tentação da morte voluntária.

Não deixeis, filho meu, que a dor de amar-te
me tire o gosto do terreno barro
e a coragem dos lúcidos deveres.

Que estas árvores guardam, no céu puro,
entre rastros de estrelas, a lembrança
dos teus humanos olhos deslumbrados.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Euclides da Cunha, "Se acaso uma alma..."


Se acaso uma alma se fotografasse
De sorte que, nos mesmos negativos,
A mesma luz pusesse em traços vivos
O nosso coração e a nossa face;

E os nossos ideais, e os mais cativos
De nossos sonhos... Se a emoção que nasce
Em nós, também nas chapas se gravasse,
Mesmo em ligeiros traços fugitivos:

Amigo, tu teria com certeza
A mais completa e insólita surpresa
Notando - desse grupo bem no meio -

Que o mais belo, o mais forte, o mais ardente
Destes sujeitos é precisamente
O mais triste, o mais pálido, o mais feio.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Alejandra Pizarnik, "Encontro"


Alguém entra em silêncio e me abandona.

A solidão agora não está só.

Tu falas como a noite.

Te anuncias como a sede.



Tradução amadora minha.




"Encuentro"

Alguien entra en silencio y me abandona.

Ahora la soledad no está sola.

Tú hablas como la noche.

Te anuncias como la sed.

sábado, 29 de novembro de 2014

Eugénio de Andrade












"Com um verso da ceifeira"

Escrevo para fazer da luz
velha dos corvos
o limiar doutro verão.
Nenhuma sombra por mais nefasta
perturba o meu olhar:
tenho quinze anos, ao espaço
quadrado do pátio
regressa o canto das cigarras.
Com o sol à roda da cintura
o corpo deixa de ser hesitação,
corre ao encontro da água
ou doutro corpo, e canta,
canta sem razão.

Eugênio de Andrade refere-se poema "Ela canta, pobre ceifeira" de Fernando Pessoa, postado ontem.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Fernando Pessoa




















"Ela canta, pobre ceifeira"        

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente‘stá pensando.
Derrama no meu coração

a tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro!
Tornai Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!


quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Alexei Bueno, "Suma"


Tudo é mentira, já por ser do mundo,
mentem os livros, mentem os espelhos
Que não nos mostram quanto somos velhos
Nem quanta pedra nos nossos joelhos
Gravou paisagens de um rubor profundo.

Tudo é mentir, todas as histórias,
todas as páginas encadernadas
Com as suas tramas, suas madrugadas,
tais como as nossas, lidas e deixadas
Entre as estantes às traças inglórias.

Um tiro! A morte! Temos que morrer,
Dói-nos não sermos o que nós urdimos,
Doem-nos as dores que vimos e ouvimos,
As dores de antes, e as que pressentimos,
E o tempo chove a raiva de esquecer.

Tudo é mentira, firme-se o decreto!
E após o queimem pois mente também
E queimem isto e aquilo, o mal e o bem,
E a mim não poupem, pra que mais ninguém
Minta escrevendo outro poema abjeto.


terça-feira, 25 de novembro de 2014

Fiama Hasse Pais Brandão, "Epístola para um bandolim sempre em cima de uma mesa"


Não sabes onde está a tua alma eterna hoje
porque te deixei mudo e imóvel, sem os dedos
de alguém ignoto, um dia, que te possuiu
e ao teu etéreo dom. Perguntas-me se estarás
para sempre ali, e eu digo: não estarei para sempre.
Podes sonhar com a melodia antiga ainda,
que trocaste com o demo pelo teu silencio aqui,
pois estas mãos apenas imitam teu som subtil,
por erro e por defeito, nas palavras destes versos.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

José Blanc de Portugal, "Camões"


Passaste fome,
Dizem alguns que de tua vida comem
Vermes parasitas que vivem de inventar as tuas histórias...
Talvez um dia neles a mutação se opere
Quando os bichos mudem de alimentação e
Passem a roer a tua obra
E não a tua morta vida terreal.

Ah Camões! Luís Vaz, se visses
Como os vermes pastam tua glória!
Por um que ame apenas tua obra
Quantos te inventam a vida passada
P'ra explicar versos que não sentem
Ou sentem tão à epiderme
Que precisam de outra história
Que não a das palavras que escreveste!

Também eu li demais a tua inventada vida:
Tudo quero esquecer p'ra mais lembrar
Que poesia é só a tua glória
Eterna vida é só tua Poesia
E a vida que viveste é morta história.


sábado, 22 de novembro de 2014

Abgar Renault, "Reza"

 
Meu Deus, tende pena
do que resta em mim:
nem o mundo é feio,
nem a vida, ruim.
 
Meu Deus, dai-me força
de amar minha sorte:
fazer luz de vida
das trevas da morte.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Ledusha Spinardi, "Cena íntima"


Outubro termina a bordo de um ventinho de cambraias,
perfeito para cílios e lábios. Ainda há borboletas soprando
o véu da primavera. Do  outro lado da rua, através dos
brincos-de-princesa na treliça que contorna a varanda,
posso sentir o coração de um sabiá pulsar ao  compasso
solitário de um assobio. A luz da tarde anuncia
subitamente escuros, abafa-se, e logo a tempestade
cai, despenteando o cenário com raios esplêndidos.
Cai estrondosa e se vai, deixando a tarde fresca
e perfumada. Nos intervalos entre gotas tardias,
pesco um  sentimento ímpar de plenitude. Mosaicos
de folhas e galhos repousam no asfalto
cravejado de granizos.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Alphonsus de Guimaraens Filho, "Louvação"


                         I

Nem sei se blasfemei. Se blasfemei,
Deus passe um pano sobre tanto sujo.
Sinto-me exausto numa torre cujo
vértice tento atingir e não verei.

Nem sei se blasfemei. Apenas sei
que muita vez suponho que em vão rujo,
que me rebelo eu, um caramujo
que nem minha própria casa salvarei.

Nem sei , nem sei se blasfemei. Apenas,
olhando agora para trás, concluo
que eu devia cantar ou ter cantado

não os meus males só, não minhas penas,
mas a Beleza em que já me diluo,
em que me integro, Deus seja louvado.


                     I I

Louvado seja Deus! Seja louvado
pelos que não merecem nem louvá-Lo.
E, de louvado, passe a ser halo
de louvação por sobre o exasperado.

E de louvado passe a ser, e a dá-lo,
um resplendor por sobre o apagado
e cego humano amor alucinado
capaz (tão triste amor!) de desprezá-Lo.

De desprezá-Lo? De esquecê-Lo, digo.
De negá-Lo também. E, sem suporte
qualquer, julga-se pleno e desbordante

de certeza e de paz, seu próprio abrigo.
Louvado seja Deus, tempo adiante.
Louvado em nossa vida. E em nossa morte.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Chacal, "Delírio puro"


quanto mais louco
lúcido estou

no fundo do poço que me banho
tem uma claridade que me namora
toda vez que eu vou ao fundo

me confundo quando boio
me conformo quando nado
me convenço quando afundo

no fim do fundo
eu te amo

domingo, 16 de novembro de 2014

Miguel Torga, "Termo de responsabilidade"


Tudo.
Menos deixar uma incerteza
No caminho.
Quem vier nesta mesma direção,
Veja as passadas dos meus pés,
E siga.
Saiba por elas que não foi traído,
Mesmo se me encontrar adormecido
De morte natural ou de fadiga.

sábado, 15 de novembro de 2014

Bruno Tolentino, "À terra provisória"


   Adeus cimos e vales e veredas,
e bosques e clareiras e campinas
soltas ao vento, sacudindo as crinas
das espigas de sol na luz de seda.
    Adeus troncos e copas e alamedas,
esmeraldas selvagens que as neblinas
salpicavam de prata, adeus colinas
que iam subindo como labaredas.
    de cobalto no ar...Adeus beleza
irrepetível, que me viu nascer
e toca-me deixar: a natureza
também é feita de deixar de ser,
    e eu levo agora a sombra e deixo a presa
à inevitável luz do amanhecer.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Neide Archanjo, "Da poesia"


Esculpo a página a lápis
e um cheiro de bosque
então me aparece.
Que a poesia é feita de romãs
daquilo que é eterno
e de tudo que apodrece.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Manuel Bandeira, "Na rua do sabão"











"Na Rua do Sabão"

Cai cai balão
Cai cai balão
Na Rua do Sabão!


O que custou arranjar aquele balãozinho de papel!
Quem fez foi o filho da lavadeira.
Um que trabalha na composição do jornal e tosse muito.
Comprou o papel de seda, cortou-o com amor,

                                           [compôs os gomos oblongos...
Depois ajustou o morrão de pez ao bocal de arame.


Ei-lo agora que sobe - pequena coisa tocante na escuridão do céu.
Levou tempo para criar fôlego.
Bambeava, tremia todo e mudava de cor.
A molecada da Rua do Sabão
Gritava com maldade:
Cai cai balão!


Subitamente, porém, entesou, enfunou-se e arrancou das
                                                                   [mãos que o tenteavam.
E foi subindo...
                            para longe...
                                                    serenamente...
Como se o enchesse o soprinho tísico do José.


Cai cai balão!

A molecada salteou-o com atiradeiras
                        assobios
                        apupos
                        pedradas.


Cai cai balão!

Um senhor advertiu que os balões são proibidos pelas posturas
                                                                                     [municipais.
Ele foi subindo...
                                  muito serenamente...
                                                                         para muito longe...


Não caiu na Rua do Sabão.
Caiu muito longe... Caiu no mar - nas águas puras do mar alto.


segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Olga Savary, "Nome"


Tu, em tudo presença,
vibrar de asa,

eu, que nem nome tenho,
jamais nua de água,

tu, felicidade do corpo
embasado em brasa,

eu, sequer lembrança,
mero eco na sala.

tu, veneno curare
- e eu é que me chamo naja?

domingo, 9 de novembro de 2014

Ruy Castro














"O falso Fla-Flu"

RIO DE JANEIRO - Vários analistas tacharam de "Fla-Flu" a campanha presidencial. Referiam-se à troca de acusações, mentiras, calúnias, rasteiras e golpes baixos, equiparando-a em ferocidade à que supostamente se dá entre as torcidas mais tradicionais do Brasil: as de Flamengo e Fluminense. Como Flamengo que sou, discordo. Em 102 anos de rivalidade, rubro-negros e tricolores nunca se rebaixaram ao nível que observamos nos últimos três meses.

O Fla-Flu não é uma guerra. É uma celebração, uma festa, um Carnaval comum às duas torcidas. É um embate de adversários, não de inimigos. Pela riqueza de suas cores e bandeiras nas arquibas, o Fla-Flu é também o mais belo espetáculo de futebol do mundo –segundo todos os turistas que já levei ao Maracanã para assisti-lo. E essa afinidade não é de hoje.

O Flamengo nasceu em 1895 como um clube de regatas; o Fluminense, em 1902, como um de futebol. O presidente do Flamengo assinou a ata de fundação do Fluminense; pouco depois, um fundador do Fluminense foi presidente do Flamengo. Os clubes eram vizinhos na rua Paissandu. O futebol do Fluminense torcia pelo Flamengo no remo e vice-versa. Em fins de 1911, um grupo de jogadores do Fluminense rebelou-se contra sua diretoria, deixou o clube e levou seu futebol para o Flamengo. A 12 de julho de 1912, os dois se enfrentaram pela primeira vez. Surgia o Fla-Flu.

A maior crônica sobre o Flamengo, "Flamengo sessentão", de 1955, foi escrita por um tricolor: Nelson Rodrigues, cujo segundo clube era o Flamengo. O Fla-Flu de 1963 reuniu 177.020 pagantes no Maracanã, sem uma briga, um bofetão. Eu próprio sou casado há 24 anos com uma tricolor, e também sem uma briga, um bofetão. E por aí vai.

Se disserem que a guerra Dilma x Aécio lembrou um Vasco x Flamengo ou Flamengo x Botafogo, não terei nada a opor.

Crônica publicada no jornal "Folha de S. Paulo" em 09/11/2014.

 

Alejandra Pizarnik, "Revelações"


De noite a teu lado
as palavras são códigos, são chaves,
o desejo reina.

Que teu corpo seja sempre
um amado espaço de revelações.


Tradução amadora minha.
 


"Revelaciones"

En la noche a tu lado
las palabrs son claves, son llaves,
el deseo es rey.
 
Que tu cuerpo sea siempre
un amado espacio de revelaciones.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Ruy Espinheira Filho, "O morto"


O morto vem no sonho
claro e completo.
Com seu jeito próprio
de lidar com crianças.
De beber.
                   Com o rosto
cheio de manhã.

Reconheço a praça
de onde ele me fita.
Mas a noite desce
e tudo se apaga.

Só ele continua
luminosamente
como se viesse da praia.
O ensolarado morto.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

António Osório









"Mãe que levei à terra"

Mãe que levei á terra
como me trouxeste no ventre,
que farei destas tuas artérias?
Que medula, placenta,
que lágrimas unem aos teus
estes ossos? Em que difere
a minha da tua carne.

Mãe que levei à terra
como me acompanhaste à escola,
o que herdei de ti
além de móveis, pó, detritos
da tua e outras casas extintas?
Porque guardavas o sopro de teus avós?

Mãe que levei á terra
como me trouxeste no ventre,
vejo os teus retratos,
seguro nos teus dezenove anos,
eu não existia, meu pai já te amava.
Que fizeste do teu sangue,
como foi possível, onde estás?

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

John Cage, "Trecho da "Conferência sobre o nada", com Augusto de Campos".





"Eu estou aqui e não há nada a dizer.
Se algum de vocês quiser ir a algum lugar,
pode sair a qualquer momento.
O que nós requeremos é silêncio, 
mas o que o silêncio requer
é que eu continue falando.

Dê ao pensamento de alguém um empurrão;
ele cai logo...
Mas o que empurra e o empurrado
produzem esse entre-tenimento chamado dis-cussão. 

Vamos ter uma daqui a pouco?
Ou podemos decidir não ter uma dis-cussão?   
Como vocês quiserem...

Mas...

                agora     há       silêncios.

E as palavras fazem,

ajudam         
                   a fazer os silêncios...

Eu não tenho nada a dizer 
                                          e estou dizendo.

E isto é Poesia, como eu quero agora".


Pescado na internet:

Em agosto de 2011, no TUCA, em São Paulo, Vanderley Mendonça gravou num celular Augusto de Campos lendo sua tradução de um texto que John Cage leu na sua "Conferência sobre o nada".

Música: "In a Landscape (1948)", de Cage, por Stephen Drury
 

Aquarela de Ismael Nery. "Adalgisa e o artista"



terça-feira, 4 de novembro de 2014

Ivan Junqueira, "Indagações"


Na manhã fria e nevoenta,
inesperada dádiva neste verão que calcina
até mesmo a áspera pele das pedras,
pergunto-me afinal se valeu a pena
a aposta que fiz no infinito e na beleza,
em deus e na eternidade, na poesia
que me abandona agora à própria sorte
na extrema fronteira entre a vida e a morte.
E um pássaro pousado em meu ombro
responde: não há vida nem morte, mas apenas
o sonho de alguém que, numa viagem,
julgou estar em busca do eterno,
sem saber que o que nos cabe
(e o que somos, tão fugazes)
é, se tanto, uma escassa chama que arde
e se apaga ao fim da tarde.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Antônio Carlos Secchin


"No que toca à circulação da poesia,
as noites de autógrafo se transformam
em rituais simultâneos
de batismo e óbito de um livro,
que, fora dali,
não será mais visto
em lugar nenhum."

sábado, 1 de novembro de 2014

Adriano Espínola, "Insônia"


Virá. Terrível e branca.
Não importa o que eu faça.

Toda esperança é vã.
Implacável, sob a porta

e entre as frestas da janela,
ela - a luz da manhã.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Johannes Brahms, "1º movimento da Sinfonia nº 4, com a Orquestra Filarmônica de Berlim, sob regência do maestro Herbert von Karajan"


Donizete Galvão, "Caros amigos"


Não ter amigos.
Ansiar por tê-los.
E dispensá-los.
Recriá-los, outros,
na imaginação.
Estar com todos
e com nenhum.
Beijá-los agora,
adeus depois,
amá-los sempre,
ateu,
que a solidão
não dura mais
que uma vida.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Mário Faustino














"Auto-retrato"

Oh não passar somente sugerido!
Desespero de nunca ver o anjo
Não conhecer nem mesmo a rosa e o lírio
Ter medo e ter vergonha ajoelhado
Querer ser puro e sempre ver-se impuro
A espera da morte a incerteza
A secreta esperança de ficar
A pétala da rosa sob a cota
O endereço guardado sobre o peito
Ver navios que chegam e vão sozinhos
E depois de tanta dor e tanta angústia
Pensar ter dado a luz a algo vivo
E levantar-se apenas com o poema.
 

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Lêdo Ivo












"Recife, poesia"

Amar mulheres, várias.
Amar cidades, só uma - Recife.
E assim mesmo com as suas pontes,
e os seus rios que cantam,
e seus jardins leves como sonâmbulos
e suas esquinas que desdobram os sonhos de Nassau.

Amar senhoras, muitas. Cidade,
só uma, e assim mesmo com o vento amplo do Atlântico
e o sol do Nordeste entre as mãos.

Felizes os jovens poetas que recebem em seus corações
antes do amor e depois da infância
a palavra, a cidade Recife.
Felizes os poetas que podem lembrar-se eternamente
das pontes que separavam: ia-se a noite
no Capibaribe, e as águas do Beberibe
te davam, ó Madalena
o meu primeiro verso.

Corola diante do mar,
bares da arte poética,
bondes, navios, aviões.
Cidade, meus pés transportam as tuas pontes
para margens versáteis.

Igrejas nos postais, namorados nos portais.
Recife de meu pai,
Recife que me deu a poesia sem que eu pedisse nada,
cidade onde se descobre Rimbaud,
a maresia de antigamente em meus olhos abertos.
Mulheres, inúmeras. Cidade, só uma
e assim mesmo diante do mar.


Lêdo Ivo fez este poema homenageando o Recife, embora seja alagoano.
Talvez por isso não o tenha publicado em seus livros.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

domingo, 26 de outubro de 2014

Jorge Luis Borges, "A volta"


Ao fim dos anos de desterro
voltei à casa da minha infância
e ainda estranho seu ambiente.
Minhas mãos tocaram as árvores
como quem acaricia alguém que dorme
e repeti antigos caminhos
como se resgatasse um verso esquecido
e vi ao esparramar-se a tarde
a frágil lua nova
que se apoiou no abrigo soturno
da palmeira de altas folhas,
como ao seu ninho o pássaro.

Que caterva de céus
conterá entre seus muros o pátio,
quantos poentes heroicos
militarão nas profundezas da rua
e quantas luas novas quebradiças
derramarão no jardim sua ternura,
antes que a casa me reconheça
e de novo seja um hábito !

Tradução amadora minha.

sábado, 25 de outubro de 2014

Alejandra Pizarnik





















"Amantes"

Uma flor
              na lonjura da noite
              meu corpo calado
        se abre
à delicada urgência do orvalho


Tradução amadora minha.



Amantes

Una flor
            no lejos de la noche
            mi cuerpo mudo
       se abre
a la delicada urgencia del rocío

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Adriano Espínola, "O coqueiro"


                                                                                          A Waly Salomão

Altivo,
ergue-se frente ao mar.
Com as palmas agitadas,
quer ser um pássaro.
 
Por um momento,
detém-se em pleno voo;
a copa verde
abraçada ao vento largo.
A memória do tronco
se volta,
porém,
longa-
mente,
para a
terra,
sugando
a seiva
salgada
dos sonhos.
 
O coqueiro
é um verso vegetal posto de pé.