sábado, 31 de agosto de 2013

Adélia Prado, "Objeto de amor"


De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guarda-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdoo, eu amo.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Eucanaã Ferraz, "Papel tesoura e cola"


Dia de verão na Vista Chinesa. Eu, sozinho,
era um mandarim frio; mas vendo tudo

do alto, tomado pela beleza, achei que
em meu coração a tristeza era mesquinha;

pensar em mim e em você me pareceu avareza,
tendo em vista que nós somos bem menores

vistos do Alto da Boa Vista. Janeiro bicicletas
bem-te-vis entraram pelos meus olhos

abrindo em cheio meu peito; que sombra
demoraria à luz de tantas lanternas?

Mesmo a noite mais profunda logo se incendiara
e, decerto, morreríamos só depois da madrugada.

Era uma tarde chinesa, tarde de mim sem você,
quando vi que nós dois juntos não valíamos

a cena.


 

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Cesário Verde, "Heroísmos"


Eu temo muito o mar, o mar enorme,
Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;
O mar sublime, o mar que nunca dorme.

Eu temo o mar rebelde, informe,
De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
os ruídos dum túmulo disforme.

Contudo num barquinho transparente,
No seu dorso feroz vou blasonar,
Tufada a vela e n'água quase assente.

E ouvindo muito ao perto o seu bramar,
Eu rindo sem cuidados, simplesmente,
Escarro, com desdém, no grande mar!

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Hilma Ranauro, "Não-ser"


Tal como a folha amassada
do poema não escrito
e o esboço do quadro
não concluído
e o bocejo do sono
interrompido pelo relógio
o indício do não fecundo
se apresenta no alvo absorvente.

domingo, 25 de agosto de 2013

Kabir





















"Há uma lua no meu corpo ..."

Há uma lua no meu corpo e eu não consigo ver.
Uma lua e um sol.
Um tambor intacto, rufando, e eu não consigo ouvir.
Enquanto o homem se preocupa com a sua morte
                                            [e com aquilo que possui
O seu esforço é inglório.
Quando o sentimento de si e daquilo que possui se desvanece
É porque conquistou o conhecimento.
A flor da macieira existe para criar frutos.
Quando o fruto sobrevém as pétalas caem.
O almíscar existe dentro do veado mas o veado não o procura;
vagueia procurando erva.


Kabir foi um sábio e poeta indiano que viveu no século XV.
Tradução de Jorge de Sousa Braga.


sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Kátia Borges, "Nossa Senhora dos Esquisitos"


Para a Senhora, minha santa,
é que rezo todo dia;
acendo velas, faço romarias,
Nossa Senhora dos Esquisitos.

Clareai meus passos na terra,
desarmai o arco e flecha
nas mãos de meus inimigos.

Amparai, ó estranha santa,
aqueles que são benquistos
na legião que te segue,
onde os caminhos se perdem
ou desembocam no abismo.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Victor Loureiro, "Natureza do amor"


No amor mais puro
pus meus pés nus e inteiros
sem saber que amar
era andar num nevoeiro

No amor mais devasso
tive cuidados extremos

Até hoje não sei
se quando amamos sabemos

terça-feira, 20 de agosto de 2013

William Carlos Williams, "Destreza amorosa"


A flor
         caída
ela a viu

         onde
jazia
         uma pétala rosa

intacta
        habilmente
colocou-a

        em
seu ramo
        de novo.

Tradução de Jorge Wanderley

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Eugénio de Andrade, "Sempre a água..."


Sempre a água me cantou nas telhas.
Habito onde as suas bicas,
as suas bocas jorram.
As palavras que no cântaro
a noite recolhe e bebe
com agrado
sabem a terra por serem minhas.
Não sou daqui e não vos devo
nada, ninguém
poderá negar a evidência
de ser chama ou água,
fluir em lugar de ser pedra.
Perdoai-me a transparência.

sábado, 17 de agosto de 2013

Paulo Mendes Campos, "A morte"


Ontem sonhei com a morte
Por duas horas desertas:
As pálpebras não se fecharam,
Antes ficaram abertas.
Os olhos esbugalhados
Cravados num ponto incerto,
Por fora desesperados,
Por dentro o mal do deserto.
Todo de preto vestido
Me aparteava a nudez
De estar ali sem sentido
De um mundo que se desfez.
Se alguém quisesse podia
Cuspir-me em cima do rosto
O nojo que lhe subia
De ver-me assim tão composto.
Talvez um ríctus na boca
O meu segredo explicasse,
Foi-me sempre a vida pouca
E era a morte o meu disfarce.
Vi-me no esquife hediondo,
As mãos cruzadas de vez,
Vi-me só me decompondo,
Doído de lucidez.
Senti o cheiro das flores,
As velas que crepitavam,
O enjôo forte das cores
Que minha morte enfeitavam.
Vi um remorso ingente
Chegar ao pé do caixão,
Um animal repelente
Feito de amor e paixão.
Um padre de voz plangente
Depois de orar disse amém,
Em torno os olhos da gente
Me sepultavam também.
Sei que tudo era aflição
No meu destino acabado:
O terror da solidão
Ia comigo deitado.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Vera Lúcia de Oliveira, "A arrumação"


construir uma casa é como pôr ordem no mundo
arrumo tijolo ele fica onde eu ponho
sou eu que escolho o tijolo eu que assento a massa
se pudesse também que tudo eu pudesse arrumar
não ficava com essa apertação na alma não moço
eu arrumava o mundo que Deus me perdoe
até melhor que ele.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Paulo Rossi Osir, "Bonde de Santa Tereza"



Notícia de Jornal

Para o Google, usuários não devem esperar privacidade no Gmail

  • Empresa afirma que "todos os usuários de e-mail devem necessariamente esperar que seus
 
Os usuários do Gmail não têm "expectativa razoável" de que suas mensagens sejam confidenciais, afirmou o Google em documentos que apresentou na Justiça, noticiou nesta quarta-feira o jornal "The Guardian". O grupo de defesa do consumidor Consumer Watchdog, que descobriu o documento, classificou a revelação como "uma admissão chocante".
O documento veio à luz em um momento no qual o Google e as demais companhias de tecnologia sofrem pressão para explicar o papel que desempenham na vigilância em massa praticada pela Agência Nacional de Segurança (NSA) sobre cidadãos dos Estados Unidos e estrangeiros.
- O Google enfim admitiu que não respeita a privacidade - disse John Simpson, diretor do projeto de privacidade da Consumer Watchdog. - As pessoas deveriam aceitar a palavra deles. Se você se incomoda com a privacidade de sua correspondência via e-mail, não use o Gmail.
O Google expôs seus argumentos no mês passado como parte de um esforço para conseguir o encerramento de um processo coletivo contra a companhia na qual ela é acusada de violar as leis de escuta ao vasculhar o conteúdo de e-mail a fim de direcionar anúncios aos usuários do Gmail.
O processo, aberto em maio, alega que o Google "abre, lê e adquire ilegalmente o conteúdo de mensagens privadas de e-mail de seus usuários". A petição cita Eric Schmidt, presidente do conselho da empresa: "A política do Google é chegar bem perto da linha do inadmissível sem cruzá-la".
"Sem que milhões de pessoas o saibam, em base cotidiana e há anos, o Google vem sistemática e intencionalmente 'cruzando a linha do inadmissível' e lendo mensagens de e-mail que contêm informações que os usuários não desejam que ninguém conheça, para adquirir, coletar ou minerar informações valiosas contidas no e-mails", o processo alega.
Em uma petição pelo encerramento do caso, o Google afirmou que os queixosos estavam "fazendo uma tentativa de criminalizar práticas comuns de negócios" que são parte do serviço Gmail desde sua introdução. O Google afirmou que "todos os usuários de e-mail devem necessariamente esperar que seus e-mails sejam sujeitos a processamento automático".
De acordo com o Google, "da mesma forma que o remetente de uma carta a um colega de negócios não pode se surpreender caso a secretária deste abre a carta, as pessoas que usam e-mail baseado na Web não podem se surpreender se suas comunicações forem processadas pelo ECS (serviço de comunicações eletrônicas) do destinatário, no curso da entrega".
Mencionando outro processo sobre privacidade, os advogados do Google disseram que "não se afirma o suficiente na queixa sobre o relacionamento específico entre as partes e as circunstâncias específicas [da comunicação em questão], e portanto não se pode extrair uma conclusão plausível de que essa forma de comunicação gera expectativa objetivamente razoável de confidencialidade".
Simpson, crítico veterano do Google, diz que "a argumentação do Google emprega uma analogia tacanha, a de que enviar um e-mail é como confiar uma carta aos correios. Minha expectativa é de que o correio entregue a carta no endereço que consta do envelope, e não a de que o carteiro a abra e leia".
"De forma semelhante, quando envio um e-mail, espero que seja entregue ao destinatário pretendido, com uma conta do Gmail baseada em um endereço de e-mail. Minha expectativa deveria ser a de que o conteúdo será interceptado e lido pelo Google", ele disse.
Em comunicado, a empresa afirma que leva a privacidade e segurança dos usuários a sério e que relatórios que afirmam o contrário "são simplesmente falsos".
"Nós integramos as melhores ferramentas de segurança e privacidade do mercado ao Gmail - e estas proteções se aplicam a qualquer email recebido por um usuário de Gmail".

Copiado do jornal  "O Globo"  (publicado em

http://oglobo.globo.com/tecnologia/para-google-usuarios-nao-devem-esperar-privacidade-no-gmail-9532744

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Gérard de Nerval, "Versos áureos"

                                                            Mas como! Tudo é sensível!
                                                                     Pitágoras

Oh! homem pensador, julgas que é em ti somente
Que há a razão neste mundo onde em tudo arfa a vida?
Das forças que tu tens tua vontade é servida,
Mas dos conselhos teus o universo está ausente.

Respeita no animal um espírito agente:
Cada flor é uma alma à natureza erguida;
Um mistério de amor no metal tem guarida;
"Tudo é sensível!" Tudo em teu ser é potente.

Teme, no muro cego, um olho que te espia:
Pois mesmo na matéria um verbo está sepulto...
Não a faças servir a alguma função ímpia!

No ser obscuro às vezes mora um Deus oculto,
E, como olho a nascer por pálpebras coberto,
Nas pedras cresce um puro espírito desperto!

Tradução de Alexei Bueno

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Eucanaã Ferraz









"18.05.61"

Nasci num lugar pobre
onde o hospital era longe
onde era longe a estrada
e os anjos não conheciam

Nasci no mês de maio
azul de tardes macias
de pai José
mãe Maria

Batizaram-me: Terra Prometida
- terra pobre
onde a felicidade passa longe
mas daqui eu a vejo
e todo o meu corpo brilha


domingo, 11 de agosto de 2013

Mariana Botelho














"Estação"

tenho um outono no corpo
de onde
as coisas
caem

vejo doçura nas roupas
espalhadas
pelo chão

sábado, 10 de agosto de 2013

Luís Antonio Cajazeira Ramos, "Pantomina"


                                         (Postagem para a Kel, do Incompletudes)

Os melhores cordeiros da fazenda
seguirão para o abate na cidade.
Os carneiros mais fracos do rebanho
serão sumariamente degolados.

O bode velho vai para o sacrifício,
por mais que seu olhar peça clemência.
Nem mesmo as cabritinhas inocentes
terão misericórdia ou esperança.

As carnes assarão ao sol: fogueira.
As peles secarão ao sol: curtume.
As vísceras suarão ao sol: carniça.
Os ossos sumirão ao sol: poeira.

Somente a ovelha negra fica impune,
enquanto o bom pastor toca sua flauta.


sexta-feira, 9 de agosto de 2013

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Ricardo Silvestrin, "O menos vendido"


Custa muito
pra se fazer um poeta.
Palavra por palavra,
fonema por fonema.
Às vezes passa um século
e nenhum fica pronto.
Enquanto isso,
quem paga as contas,
vai ao supermercado,
compra sapato pras crianças?
Ler seu poema não custa nada.
Um poeta se faz com sacrifício.
É uma afronta à relação custo-benefício.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Eugénio de Andrade,












"Agora são elas que têm o teu rosto, as palavras......"

Agora são elas que têm o teu rosto,
as palavras; e não só o rosto:
o sexo e a trêmula alegria
que foi sempre senti-lo desperto.
Sem palavras já não somos nada;
estão agora de perfil, repara
como reflectem o que de juvenil
houve sempre em ti, o mesmo sorriso
só um pouco menos fatigado
e o andar apenas menos lento.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Mário Cesariny, "hoje, dia de todos os demônios..."


hoje, dia de todos os demônios
irei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros  o coval
dos outros

ora este foi dos tais a quem não deram passaporte
de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava ir a mais
tzzt... uma poção de estricnina
deu-lhe moleza foi dormir

preferiu umas dores no lado esquerdo da alma
uns disparates com as pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,
desembarcou como tinha embarcado

Sem Jeito Para o Negócio


(Tanto Mário Sá-Carneiro quanto Antero de Quental suicidaram-se).


domingo, 4 de agosto de 2013

Nelson Ascher, "Bálsamos'


Embora eu sôfrego mordisque
nem tão leve o teu mamilo
vermelho a ponte de induzi-lo
à rigidez que lhe condiz -

querendo ainda mais, tranquilo
não ficarei sem que petisque
in loco os bálsamos sutis que
procedem - úmido sigilo -

da contração de internas dobras
que (enquanto delas se avizinha
meu hálito) afinal desdobras

para que se entredigam sábios
tudo o que sabem sobre minha
língua teus dois pares de lábios.

sábado, 3 de agosto de 2013

Emílio Moura, "Versos encontrados em um velho caderno"


Ninguém chorou quando a estrela
cadente
foi arrancada, bruscamente,
do céu que era dela.

Nem um ah! de pena,
quando a mão raivosa
do vento
arrancou a rosa.

Como querias
que algo, ainda agora, estremecesse
por tuas mãos vazias?

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

José Saramago, "Lá no centro do mar"


Lá no centro do mar, lá nos confins
Onde nascem os ventos, onde o sol
Sobre as águas doiradas se demora;
Lá no espaço das fontes e verduras,
Dos brandos animais, da terra virgem,
Onde cantam as aves naturais:
Meu amor, minha ilha descoberta,
É de longe, da vida naufragada,
Que descanso nas praias do teu ventre,
Enquanto lentamente as mãos do vento,
Ao passar sobre o peito e as colinas,
Erguem ondas de fogo e movimento.