quinta-feira, 30 de novembro de 2017

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Adriano Espínola, "Lamas"


                                     A Horácio Dídimo


À noite
todos os lépidos
são larápios,

todos os otários
são
notórios,

todas as lânguidas
são
lésbicas

todas as cópulas
são
cédulas,

todos os lúcidos
são
trágicos

todos os bêbados
são
sábios.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Antônio Carlos Secchin, "Reunião"


Aqui estamos nós
unidos pelo sangue
e dispersos pela vida.
Sabemos de onde viemos,
mas não sabemos nossa saída.
De Antônio e Catarina
herdamos gestos, sonhos, corpos e voz.
Muito sabemos deles,
e pouco sabemos de nós.
Aqui estamos todos
- tios , sobrinhos, primos, avós – ,
corrente entre um ontem vivo
e um amanhã apressado,
frente a frente
com o futuro que nos chama,
cara a cara
com a chama de um passado.
Agora atravessamos juntos
Cachoeiro de ItapeSecchin,
esta estrada tropical da Itália
que desemboca em você e em mim.
E se recompondo o que nós fomos
este instante cintilar dentro de nós
num sopro que a vida não apaga
mesmo sozinhos não estaremos sós.

domingo, 26 de novembro de 2017

Vitorino Nemésio, "Céu velho"


Nasci num astro que esfriou.
A escolta de anjos em que vim, perdi-a.
Ao desprender-se a última asa fria
Meu destino de terra começou.

O salvado dos astros - gorou.
Aonde, aonde a minha origem ia?
Agora, em mim, a noite bebe o dia
Que meus altos cuidados devorou.

Se, bebendo-o, menino me tornasse
E, dando-me uma pena, ora aquecida,
Ao tal astro gelado me levasse?

Já sinto a aragem forte em minha batida
Talvez da escolta de anjos. Volto a face:
Há lá anjo nenhum na minha vida!

sábado, 25 de novembro de 2017

Greta Benitez, "São cinco horas da tarde..."


São cinco horas da tarde
e os prédios já comeram o sol
A luz começa a transbordar das janelas
a escorrer pelos hotéis
a entrar pelas frestas das portas fechadas
para - sem competir com a lua obesa -
fazer a noite acesa.
Enquanto as pessoas se isolam
os prédios me consolam.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Manuel Alegre, "Canto peninsular"


Estar aqui dói-me. E eu estou aqui
há novecentos anos. Não cresci nem mudei.
Apodreci.
Doem-me as próprias raízes que criei.

Foi a guerra e a paz. E veio o sol. Veio e passou
a tempestade.
Muita coisa mudou. Só não mudou
este monstro que tem a minha idade.

E foi de novo a guerra e a paz. Muita coisa mudou
em novecentos anos.
Eu é que não mudei. Neste monstro que sou
só os olhos ainda são humanos.

Quantas vezes gritei e não me ouviram
quantas vezes morri e me deixaram
nos campos de batalha onde depois floriram
flores e pão que do meu sangue se criaram.

Andei de terra em terra
por esse mundo que de certo modo descobri.
E fui soldado contra a minha própria guerra
eu que fui pelo mundo e nunca saí daqui.

Mil sonhos eu sonhei. E foram mil enganos.
Tive o mundo nas mãos. E sempre passei fome.
Eis-me tal como sou há novecentos anos
eu que não sei escrever o meu próprio nome.

Falam de mim e dizem: é um herói.
(Não sei se por estar morto ou porque ainda não morri)
Mas nunca ninguém disse a razão porque me dói
estar aqui.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Camilo Pessanha, "Estátua"


Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, de frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.

Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.

E o meu ósculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre o mármore correto
Desse entreaberto lábio gelado...

Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélago quieto.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Ruy Espinheira Filho





















"Janeiro"

Janeiro descia com as chuvas e inventava besouros.
e borboletas e pássaros e girinos e
caminhávamos descalços no barro
e lá estavam as lavadeiras com suas coxas
                        morenas e fortes como a água
e que todas as noites me assombravam
calidamente.

Janeiro soprava um vento de primeiro instante de tudo
e o que respirávamos se chamava manhã
                                                                e foi
o que eu quis te ofertar porque eras tão bela.

Mas isso aconteceu depois, Depois
como agora.
                                                                  E é para sempre
para nunca mais
                                                                  este exílio.

domingo, 19 de novembro de 2017

Nicolas Behr













"Praça dos 3 poderes"

os três poderes são um só:
o deles.


sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Corpo"


Corpo serenamente construído
Para uma vida que depois se perde
Em fúria e em desencontro erguidos
Contra a pureza inteira dos teus ombros.

Pudesse eu reter-te no espelho
Ausente e mudo a todo outro convívio
Reter o claro nó dos teus joelhos
Que vão rasgando o vidro dos espelhos.

Pudesse eu reter-te nessas tardes
Que desenhavam a linha dos teus flancos
Rodeados pelo ar agradecido.

Corpo brilhante de nudez intensa
Por sucessivas ondas construído
Em colunas assente como um templo.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Fernando Pessoa, "O outro amor"


Com que fúria ergo a ideia dos meus braços
Para a ideia de ti! Com que ânsia bebo,
Os olhos pondo em teus sonhados traços,
Todo o fêmea em teu corpo de mancebo!

Teu hálito sonhado até cansaços
Como em meu vivido hálito recebo!
Ó carne que já sonho és tantos laços
Para mim! Deusa-deus; Vénus-Efebo!

Ó dolorosamente só-sonhado!
Soubesse eu o feitio exterior e o jeito
Em gestos e palavras e perfeito

As palavras a dar a este pecado
De só pensar em ti, de ter o peito
Opresso em pensar-te entrelaçado!


quarta-feira, 15 de novembro de 2017

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

José Godoy Garcia, ""As grades, nossa confiança"


As casas estão guardadas. As casas, nossas casas,
estão cercadas a ferro, contra ladrões.
Mais felizes que as moças, as que são violentadas
nas horas noturnas e nas horas do dia, as casas,
nossas casas, estão vigiadas pelos cães,
pelos guardas, pelas grades de ferro enormes.
Em Brasília, virgem imaculada, os tapumes
sobem a mil metros e são como lanças
dos velhos guerreiros de impérios loucos;
os habitantes olham por entre os ferros
e se imunizam do mundo, as grandes lanças
de pontas superagudas desafiam o invasor.
Ninguém ultrapassará os umbrais de nossas
casas, em Brasília, em Goiânia, Uberaba.
Há infinitos seres perversos lá fora.
Mas aqui dentro nós vivemos nossa paz.

Não passarão, nem o temporal, nem duendes,
nem a memória, nada, estamos ilhados,
cercados, vigiados, seguros, prontos,
solertes, imaculados da sanha inimiga
que ronda lá fora, como pássaros e
répteis loucos famintos de vingança
contra nossa vitória na vida,
nossa honra, nossa oração, nossa
santidade, nossa serena confiança
nas instituições e em Deus.

domingo, 12 de novembro de 2017

Bueno de Rivera, "O microscópio"


O olho no microscópio
vê o outro lado, é solene
sondando o indefinível.

Dramática a paciência
do olho através da lente,
buscando o mundo da lâmina.

A tosse espera a sentença,
o leito aguarda a resposta.
O tísico pensa na morte.

O silêncio é puro e o frio
envolve o laboratório.
Os frascos tremem de susto.

O infinito dos germes
reflete o olho imenso
que pousa na objetiva.

O avental se levanta.
Os dedos inconscientes
escrevem a palavra rápida.

O resultado terrível
entra nos óculos do médico
e ele diz: positivo.

O doente tira o lenço.
Aperta a mulher e o filho,
chora no ombro da esposa.

Imagina a reclusão
no sanatório, a saudade
e o vento no quarto branco.

Olha o papel: positivo.
Cresce a palavra com a tosse.
A febre queima a esperança.

O microscopista, no entanto,
conta anedotas no bar.
Está alheio e feliz.

Não sabe que o olho esquerdo
ditou a sentença e a morte.
Paga o café e caminha.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Emílio Moura, "Adolescência"


O que havia nas horas que passavam
e ardia, ardia, no ar, imensamente;
o que havia (era tanto!) e já formava
um ser que se buscava e se não via,

era um mas, ou um talvez, era a incerteza
do que, sendo, não sendo, se furtava
à vista que, no entanto, a si se dava
o que, essência de sonho, já floria.

Eram germes de mitos que nasciam,
o amor sorrindo, absurdo, à eternidade
de um momento, não mais, talvez nem isso.

Era a voz das distâncias sem limites,
a alma boiando, fluída, sobre o mundo,
era o medo da morte, sempre a morte.




quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), "Magificat"


Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, quem tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Charles Bukowski, "Já morreu"


sempre quis transar com
henry miller, ela disse,
mas quando cheguei lá
era tarde demais.
diabos, eu disse, vocês
sempre chegam tarde demais, garotas.
hoje já me masturbei
duas vezes.
não era esse o problema dele,
ela disse. a propósito
como você consegue bater
tantas?
é o espaço, eu digo,
todo o espaço entre
os poemas e os contos, é
intolerável.
você deveria esperar, ela disse,
você é impaciente.
o que você pensa de céline?
perguntei.
queria transar com ele também.

já morreu, eu disse.
já morreu, ela disse.
importa-se de ouvir uma
musiquinha? perguntei.
pode ser legal, ela disse.
dei-lhe ives.
era tudo que me restava
naquela noite.

Tradução de Pedro Gonzaga

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Victor Loureiro, "A mãe e o rio"


O rio toca seu curso atento.
Empurra à foz
notas tardias da noite
e puxa, rumo a nascente,
a brisa precoce da manhã.
A mãe bebe nessa corrente
e desce os olhos sobre o filho
com o mesmo amor
que a água tem pelo rio,
o mesmo cuidado
que no voo, a asa.

domingo, 5 de novembro de 2017

sábado, 4 de novembro de 2017

Konstantinos Kaváfis, "Voluptuosidade"


Regozijo a essência de minha vida, a lembrança das horas
em que achei e guardei a voluptuosidade como a desejava.
Regozijo a essência de minha vida, da minha, em que detestei
todo desfrute de amores rotineiros.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Iº Soneto do Sinal de Vida"


Não darei o Teu nome à minha sede
De possuir os céus azuis sem fim,
Nem à vertigem súbita em que morro
Quando o vento da noite me atravessa.

Não darei o Teu nome à limpidez
De certas horas puras que perdi,
Nem às imagens de oiro que imagino
Nem a nenhuma coisa que sonhei.

Pois tudo isso é só a minha vida,
Exalação da terra, flor da terra,
Fruto pesado, leite e sabor.

Mesmo no azul extremo da distância,
Lá onde as cores todas se dissolvem,
O que me chama é só a minha vida.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Paulo Henriques Brito, "IIº Soneto da Biographia literária, 'Não volta mais, aquele voo cego'"


Não volta mais, aquele voo cego
rumo ao que nunca esteve lá, porém
só surge em pleno ar. E não renego
a rota tonta que segui. Ninguém
se faz em linhas retas. Todo porto
a que se chega é a meta desejada.
E o caminho tomado, por mais torto,
acaba sempre sendo a exata estrada
a dar naquilo que, afinal, se é.
Assim, todo e qualquer passado, até
o que se esqueceria, se pudesse,
vai pouco a pouco virando uma espécie
de bala que se chupa com deleite,
mesmo se azeda. Isso, chupe. Aproveite.