segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Ivan Junqueira















"Espantalhos"

É tão árduo recordá-los:
ásperos, secos, hieráticos,
à sombra de antigos plátanos,
arqueadas as omoplatas,

como se neles, sem pálpebras,
os olhos se esbugalhassem
em busca da claridade
que em vida lhes foi negada.

Mas em tempo todos saibam
que não falo aqui de estátuas,
nem de intangíveis fantasmas,
e sim de espíritos, almas,

reais criaturas de carne
e osso, com trêmulos traços
do que foi doce e ora amarga
mais que o fel do desamparo.

Delas falo porque o ácido
do marasmo as fez tão pálidas
que jamais nas murchas faces
se lhes vê algo que baile

além de um olhar errático,
uma expressão desdentada,
um vácuo que nelas grassa
desde o crânio até o astrágalo.

São assim como espantalhos
que deambulam nas praças
e de que mofam os pássaros,
mesmo os miúdos e frágeis.

Nas mãos, as sórdidas cartas
de um baralho já sem naipes:
copas, ouros, paus, espadas,
triunfos do tédio e da náusea.

Alguns preferem os dados,
que nunca abolem o acaso,
ou então os reis que caem
nas teias de um xeque-mate.

E outros nem isto: se agarram
ao calor dos tíbios raios
de um sol que se põe, avaro,
por entre os galhos da tarde.

Depois se vão, solitários,
rumo à pensão que os aguarda,
como uma tumba sem lápide,
sem lírios ou epitáfios.

sábado, 29 de outubro de 2016

Adriano Espínola, "Meio-dia"


O sol galopa fogoso
sobre os telhados.

Árvores transpiram 
pensativas.

A calçada,
castigada,

estende ao sol
sua palma de cimento.

A praça se encolhe
à sombra dos abrigos.

Pernas viajam
para o centro do dia.

Um homem dobra
seu suor
numa esquina.

Buzinas
retalham
o perfil dos edifícios.

Sensação de abandono amarela.

Bebo,
sob a marquise,
um copo de sombras.

Fortaleza corre para os terraços,
para o sol
esquivo da hora
enorme do almoço.

(O calor das coisas
a pino

remodela
o rosto do invisível.)

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Hilda Hilst, "Extrema, toco-te o rosto..." XIIIº poema da série Amavisse


Extrema, toco-te o rosto. De ti me vem
À ponta dos meus dedos o ouro da volúpia
E o encantado glabro das avencas. De ti me vem
A noite tingida de matizes, flutuante
De mitos de água. Inaudita.
Extrema, toco-te a boca como quem precisa
Sustentar o fogo para a própria vida.
E úmido de cio, de inocência,
É à saudade de mim que me condenas.

Extrema, inomeada, toco-te a mim.
Antes, tão memória. E tão jovem agora.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Alejandra Pizarnik, "Gold in hand blues"


e o que é que vais dizer
vou dizer somente algo
e o que é que vais fazer
vou me ocultar na linguagem
e por que
tenho medo


Tradução amadora minha


y qué es lo que vas a decir
voy a decir solamente algo
y qué es lo que vas a hacer
voy ocultarme en el linguaje
y por qué
tengo miedo

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Mário de Sá-Carneiro, "Último soneto"


Que rosas fugitivas foste ali!
Requeriam-te os tapetes, e vieste...
--- Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.

Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste!
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi...

Pensei que fosse o meu o teu cansaço ---
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava...

E fugiste... Que importa? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?...

domingo, 23 de outubro de 2016

Sônia de Barros, "Sem seiva"


poema oco,
que não se pode comer
                               o seu de dentro:

maçã morta

na tela do pintor cujo pincel não tem
                     o sopro
- só vento.

sábado, 22 de outubro de 2016

Lúcio Cardoso, "O mal"


O mal como uma garra -
Não o pequenino mal de cada um,
o mal da fome e do amor,
o mal do zelo e da mentira,
o mal como a erva dos muros,
estilhaçado em parcelas de pranto,
passivo como uma papoula de amianto.

O mal como uma garra -
pleno, ardendo em sangue estrídulo,
de música ardente e caudalosa,
enraivecido com,o a virtude
na alma enclausurada do santo.

O mal como uma garra
que viesse num impulso de guerra
e arrastasse a sede mágica do limo,
e subisse dos pés à cabeça,
e fosse água e vísceras e vértebras
e fosse todo feito de febre
e subisse, folhagem de descrença,
e inflamasse o bojo da metria*
e fosse como mil línguas de ânsia
e fosse como um único coração
e projetasse sua sombra escarlate e pagã
além e além, além no escuro azul.

* Metria- medida, algo que se meça.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Alberto da Costa e Silva, "Breve solilóquio no Jardim das Tulherias"


O que quer este menino a andar de bicicleta,
senão lembrar-me do que fui? Senão, tonto de riso,
entre pombos e pardais no chão ensolarado, fingir-me?

Não aceito o ter sido. Não me quero menor
no coração que guardou o assombro e a fábula
de tudo o que viveu como um sonho escondido.

Os dias me cobraram o que era infinito.
E, se agora persigo o pedalar do menino,
é porque sei que sou o final do seu riso.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Marly de Oliveira, "Um súbito silêncio enfreia a mágica..."


                                       À Mônica (aos três anos)

Um súbito silêncio enfreia a mágica
aventura de estar entre os objetos
que apenas reconhece. Ela adormece
a meus pés como um gato, um bicho quieto,
com doçura felina, suave e intensa,
recolhida em si mesma contra o frio
da noite. Ela me é, me dorme no seu sono,
desdobrada de mim, além de mim,
que a recebi sem entender, atenta
ao milagre de vida de que fui
receptáculo apenas, serva mansa,
e em tudo obediente à natureza.
Dorme a meus pés, e meu amor reinventa-se
vendo-a tão calma assim, tão sem defesa.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Giacomo Leopardi, "A si mesmo"


Enfim repousas sempre
Meu lasso coração. Findo é o engano
Que perpétuo julguei. Findou. Bem sinto
Que em nós dos caros erros
Mais que a esperança, o próprio anelo é extinto.
Repousa sempre. Muito
palpitaste. Nenhuma coisa vale
Teus impulsos, nem digna é de suspiros
A terra. Nojo e tédio
É a vida, nada mais, e lama é o mundo.
Repousa. E desespera
A última vez. À nossa espécie o fado
Não deu mais que o morrer. Enfim despreza
A natureza, o rudo
Poder que, oculto, o comum dano gera
A a vacuidade sem final de tudo.

Tradução de Alexei Bueno.

domingo, 16 de outubro de 2016

Artur Azevedo, "1º Soneto das Miniaturas da Sociedade Galante"


Adriano Gonçalves de Macedo,
Homem de cabedais e alma sem siso,
Penetrou no seu quarto com um sorriso
Às dez horas da noite, muito a medo.

Uma carta de amante — era um segredo —
Ia abri-la, e, assim, era preciso
Que a sua esposa, dama de juízo,
Não na visse nem mesmo por brinquedo!

Dona Corália Augusta Colavida
Estaria nessa hora recolhida?
Levantou a cortina, devagar...

Mas, que tragédia após esse perigo...
Viu que a esposa beijava um seu amigo,
Sobre o divã da sala de jantar.

sábado, 15 de outubro de 2016

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Lúcio Cardoso














"O evadido"

Venho da sombra. Venho do mistério
onde transitam seres infelizes como eu.
A minha angústia nesta hora
arde como uma estrela enlouquecida
em seus amortalhados no silêncio.

Venho do nada. Na agonia das horas
sou o vulto que se encolhe sob as árvores
imóveis nos jardins batidos pela chuva.
Sou talvez na rua escura e fria,
um grito que se distancia,
até o mar gelado - e o tempo incerto.

Visão de nevoeiros cruéis se desfazendo,
o sangue de uma luz correndo vivo,
a saudade da vaga que ainda não chegou,
que vem de longe, que vem rolando
para se despedaçar na face bruta dos rochedos...
Poesia que fulgura nesta noite como um sol
rompendo a bruma da manhã que se levanta.

Sou luz dos astros que nascem dos abismos,
sou espírito, melancolia dos amantes,
venho da sombra - sinto que sou tudo
e que não sou por fim senão eu mesmo.


quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Ivo Barroso, "O filho pródigo"


Dentro da casa havia aquela morna
adulação dos olhos dos parentes
e o filho que chegava da distância
de muitos desalmados contratempos
parou na emudecida plenitude
da aceitação do gesto de quem fica
e adormeceu em seus umbrais sonhando
o sonho bom de quem não vê caminhos.
Mas na ronda de muitas outras tardes
sentiu que o teto lhe pesava aos ombros
e notou nos olhares da chegada
o já pressentimento da partida.
   E voltando nos passos do que veio
   já não era quem vai, mas quem retorna.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Mario Quintana, "Tic-tac"


Esse tic-tac dos relógios
é a máquina de costura do Tempo
a fabricar mortalhas.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Mário de Sá-Carneiro















"Apoteose"

Mastros quebrados, singro num mar d'Ouro
Dormindo fogo, incerto, longemente...
Tudo se me igualou num sonho rente,
E em metade de mim hoje só moro...

São tristezas de bronze as que inda choro -
Pilastras mortas, mármores ao Poente...
Lagearam-se-me as ânsias brancamente
Por claustros falsos onde nunca oro...

Desci de mim. Dobrei o manto d'Astro,
Quebrei a taça de cristal e espanto,
Talhei em sombra o Oiro do meu rastro...

Findei... Horas-platina... Olor-brocado...
Luar-ânsia... Luz-perdão... Orquídeas pranto...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
- Ó pântanos de Mim - jardim estagnado...

sábado, 8 de outubro de 2016

Lúcio Cardoso, "Nauta"


Do ventre da baía nasceram garras,
Verdes mãos de sargaços, em sol aberto
Ao sopro suplicante das amarras,
As velas ululantes do incerto.

Se é sangue de algas esparsas em jarras
À espera do artista, mas desperto
Ao espanto da brisa, entanto esbarras
E às trevas, então, o verso oferto.

De novo os vagalhões, as nuvens alçam
As garras se alongando tocam os astros,
E as velas desfraldadas aos mastros.

Pássaros pelo céu afora valsam
Ritornellos, uivantes véus descalçam
O sonho dos tritões, o éter dos rastros.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Lila Ripoll, "Canção do agora"


Ontem meu peito chorava.
Hoje, não.
Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.

Estava ontem sozinha,
tendo a meu lado, sombria,
minha própria companhia.
Hoje, não.

Morreu de tanto morrer
a pena que em mim vivia.
Morreu de tanto esperar.
Eu não.

Relógios do tempo andaram
marcando o tempo em meu rosto.
A vida perdeu seu tempo.
Eu não.

Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Florbela Espanca, "Noite de Saudade"


A Noite vem poisando devagar
Sobre a Terra, que inunda de amargura ...
E nem sequer a bênção do luar
A quis tornar divinamente pura ...

Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura ...
E eu oiço a Noite imensa soluçar!
E eu oiço soluçar a Noite escura!

Por que és assim tão escura, assim tão triste?!
É que, talvez, ó Noite, em ti existe
Uma Saudade igual à que eu contenho!

Saudade que eu sei donde me vem ...
Talvez de ti, ó Noite! ... Ou de ninguém! ...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!!

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Donizete Galvão















"Fora de linha"

                                para Antônio Nóbrega

Os homens obsoletos foram dispensados
como candidatos a recrutas, por excesso de contingente.
Os homens obsoletos vagam qual zumbis
em praças, parques e estações de metrô.
Os homens obsoletos alimentam-se de jornais
e engordam nos sofás diante da televisão.
Os homens obsoletos cumpriram as exigências:
faculdade, inglês e cursos de pós-graduação.
Os homens obsoletos mantiveram-se jovens
com dietas, ginástica e oficinas de auto-estima.
Os homens obsoletos tiveram bloqueados
seus crachás, suas senhas e cartões de crédito.
Os pais não querem os homens obsoletos.
— Ah, quanto dinheiro investido em sua educação!
Os amantes não querem amar os homens obsoletos
porque estes têm a pele com gosto de ferrugem.
O mercado não absorve os homens obsoletos,
pois não existe demanda para a exportação.
Não há como reciclá-los para que se encaixem
nos mutáveis programas de reengenharia.
Terapeutas recomendam aos homens obsoletos
que ocupem o tempo ocioso nos museus e galerias,
nas paróquias ou mesmo em clubes de filatelia.
Os homens obsoletos caíram em desuso
como os chapéus, as galochas e o jogo de bilboquê.

domingo, 2 de outubro de 2016

Eugénio de Andrade, "Nocturno de Lisboa"


Pela noite adiante, com a morte na algibeira,
cada homem procura um rio para dormir,
e com os pés na lua ou num grão de areia
enrola-se no sono que lhe quer fugir.

Cada sonho morre às mãos doutro sonho.
Dez-réis de amor foram gastos a esperar.
O céu que nos promete um anjo bêbado
é um colchão sujo num quinto andar.

sábado, 1 de outubro de 2016

Fernando Pessoa, "É fácil trocar as palavras..."


É fácil trocar as palavras,
Difícil é interpretar os silêncios!
É fácil caminhar lado a lado,
Difícil é saber como se encontrar!
É fácil beijar o rosto,
Difícil é chegar ao coração!
É fácil apertar as mãos,
Difícil é reter o calor!
É fácil sentir o amor,
Difícil é conter sua torrente!

Como é por dentro outra pessoa?
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição
De qualquer semelhança no fundo.