sábado, 30 de junho de 2018

Augusto dos Anjos, "Eterna mágoa"


O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo á Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe
E que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
E essa mágoa que o acompanha ainda!

sexta-feira, 29 de junho de 2018

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Cecília Meireles, "Quarto motivo da rosa"


Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.
Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.
E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

terça-feira, 26 de junho de 2018

Sylvia Plath, "Não entres docilmente nesta noite mansa"


Não entres docilmente nesta noite mansa:
A idade deve arder e irar-se ao fim do dia;
Grita, grita contra a luz que está morrendo.

Mesmo sabendo no final que a justa escuridão avança,
Pois seus gestos não forjaram raios, o homem sábio
Não entra docilmente nesta noite mansa.

O homem, à onda derradeira, gemendo
Que seus frágeis atos poderiam ter brilhado e dançado na enseada,
Grita, grita contra a luz que está morrendo.

O homem louco que reteu e cantou o sol em fuga,
E aprendeu, tão tarde, que apenas lamentava seu passar,
Não entra docilmente nesta noite mansa.

O homem grave, ao morrer, já cego vendo
Que olhos cegos poderiam brilhar como as estrelas e alegrar-se,
Grita, grita contra a luz que está morrendo.

E tu, meu pai, aí da tua altura triste,
Amaldiçoa-me, abençoa-me, te peço, com tuas lágrimas ferozes.
Não entres docilmente nesta noite mansa.
Grita, grita contra a luz que está morrendo.

Tradução de Ana Cristina Cesar 

segunda-feira, 25 de junho de 2018

domingo, 24 de junho de 2018

Manuel António Pina, "Amor como em casa"


Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

sábado, 23 de junho de 2018

Vinicius de Moraes, "O anjo de pernas tortas"


A um passe de Didi, Garrincha avança
Colado o couro aos pés, o olhar atento
Dribla um, dribla dois, depois descansa
Como a medir o lance do momento.

Vem-lhe o pressentimento; ele se lança
Mais rápido que o próprio pensamento
Dribla mais um, mais dois; a bola trança
Feliz, entre seus pés — um pé de vento!

Num só transporte, a multidão contrita
Em ato de morte se levanta e grita
Seu uníssono canto de esperança.

Garrincha, o anjo, escuta e atende: — Goooool!
É pura imagem: um G que chuta um o
Dentro da meta, um l. É pura dança!

sexta-feira, 22 de junho de 2018

quinta-feira, 21 de junho de 2018

Machado de Assis, "Quando ela fala"


Quando ela fala, parece
Que a voz da brisa se cala;
Talvez um anjo emudece
Quando ela fala

Meu coração dolorido
As suas magoas exala.
E volta o gozo perdido
Quando ela fala.

Pudesse eu eternamente,
Ao lado dela, escuta-la
Ouvir sua alma inocente
Quando ela fala.

Minh’alma, já semimorta,
Conseguira ao céu alçá-la
Porque o céu abre uma porta
Quando ela fala.

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Jorge Luis Borges, "Soneto do vinho"


Em que reino, em que século, sob que silenciosa
Conjugação dos astros, em que secreto dia
Que o mármor não salvou, surgiu a valiosa
E singular ideia de inventar a alegria.
Com outonos dourados o criaram. O vinho
Refluiu rubro ao longo de muitas gerações;
Como o rio do tempo em seu árduo caminho
Prodigou-nos a música, seu fogo e seus leões.
Na noite jubilosa ou na jornada adversa,
Ele exalta a alegria ou nos mitiga o espanto,
E o ditirambo novo que este dia lhe canto
Lhe foi cantado outrora pelo árabe e o persa.
Vinho, ensina-me a arte de ver a minha história
Como se esta já fosse a cinza da memória.

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Manuel Maria Barbosa du Bocage, "Contrição"


Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel das paixões que me arrastava;
Ah! cego eu cria, ah! mísero eu pensava
Em mim quase imortal a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana
A existência falaz me não doirava!
Mas eis sucumbe a natureza escrava
Ao mal que a vida em sua origem dana.

Prazeres sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
no abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus, ó Deus! Quando a morte à luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.

domingo, 17 de junho de 2018

Konstantinos Kaváfis, "Desde as nove"


A imagem de meu corpo jovem,
desde as nove quando acendi o candeeiro,
veio encontrar-me e fez-me lembrar
quartos fechados aromatizados,
e volúpia passada – que ousada volúpia!
E trouxe-me diante dos olhos, também,
ruas que agora se tornaram desconhecidas,
locais de divertimento cheios de movimento que acabaram,
e teatros e cafés que existiram outrora.

A imagem de meu corpo jovem
veio trazer-me também as lembranças tristes:
lutos da família, separações,
afeições dos meus, afeições
dos mortos, tão pouco apreciadas.

Meia-noite e meia. Como passou a hora.
Meia-noite e meia. Como passaram os anos.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Alexei Bueno, "Diálogo"


Esse velho esquivo
Que surge no espelho,
Quem é esse velho
Feliz de estar vivo?

Que máscara é essa
da imensa traição?
Este é o mesmo chão
Da auroral promessa?

Sim, é o mesmo solo
Onde engatinhava
Nossa forma escrava
Se não ia ao colo.

E esse velho é o espanto
Que o espelho produz
Quando pousa a luz
No rosto em que o pranto

Há muito está extinto.
Velho, me responde,
Nesta hora sem onde,
Se mentes, se eu minto?


quinta-feira, 14 de junho de 2018

Augusto dos Anjos, "Idealismo"


Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor!Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaira,
De Messalina e de Sardanapalo?! 

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
— Alavanca desviada do seu fulcro — 

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

terça-feira, 12 de junho de 2018

Eugénio de Andrade, "Melancolia"


O sol mal entra em casa - escrevo
sobre a fugidia
luz de areia,
luz que não encontra morada.
Tudo me dói neste dia
em que os mortos deixam à porta
dos vivos
a corrosiva melancolia.

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Antonio Carlos Secchin, "Soneto da Dissipação"


Revejo a  luz gelada de manhãs perdidas
e os sonhos  que eu  mandei para o endereço errado.
Tanto azul me nauseia e nada se dissipa
em meio ao mangue seco onde estanquei  meu barco.
Muitas  sombras debatem-se à beira do quarto.
Fantasmas nos  lençóis da noite estreita e aflita
esgueiram seus  anzóis no meu silêncio farto 
de saber que eles são a única visita.
Imóveis no sofá, me contemplam ferozes
e cravam com desdém  as garras da rapina.
Espanto  o pó e a dor  que descem  dessas vozes
rolando sem parar  pela memória acima.
O espelho só  me ensina  a ruína do desejo.
 Sei que é meu esse olhar em que eu não mais me vejo.

sábado, 9 de junho de 2018

Adriano Espínola, "Claridade"


                                                                                    A Catherine Dumas

Com os punhos cerrados de sol,
a luz golpeia
a praia. 

Arde o instante na areia. 

Nas dunas,
por entre casebres,
papoulas acendem sua dor
vermelha. 

Mestre André,
sob um coqueiro,
retalha com a peixeira
o esquivo
milagre dos peixes. 

O verdiazul ascende as costas
do horizonte. 

Barcos buscam, peregrinos,
as profundezas. 

O pensamento a pino
se descobre,
transparente. 

Espiritual é a luz do meio-dia.

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Alexei Bueno, "Trajeto"


Quantas ruas, travessas, avenidas,
De início a abrir-se em leque à nossa frente?
Depois já são bem menos. Finalmente
Umas poucas. Então, de certa feita,
Resta uma só das tantas prometidas,
Um beco, uma viela, unicamente,
                 E como é estreita.

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Manuel Bandeira












"Quando perderes o gosto humilde da tristeza..."

Quando perderes o gosto humilde da tristeza,
Quando, nas horas melancólicas do dia,
Não ouvires mais os lábios da sombra
Murmurarem ao teu ouvido
As palavras de voluptuosa beleza
Ou de casta sabedoria;

Quando a tua tristeza não for mais que amargura,
Quando perderes todo estímulo e toda crença,
- A fé no bem e na virtude,
A confiança nos teus amigos e na tua amante,
Quando o próprio dia se te mudar em noite escura
De desconsolação e malquerença;

Quando, na agonia de tudo o que passa
Ante os olhos imóveis do infinito,
Na dor de ver murcharem as rosas,
E como as rosas tudo o que é belo e frágil,
Não sentires em teu ânimo aflito
Crescer a ânsia de vida como uma divina graça:

Quando tiveres inveja, quando o ciúme
Crestar os últimos lírios de tua alma desvirginada;
Quando em teus olhos áridos
Estancarem-se as fontes das suaves lágrimas
Em que se amorteceu o pecaminoso lume
De tua inquieta mocidade:

Então sorri pela última vez, tristemente,
A tudo que outrora
Amaste. Sorri tristemente...
Sorri mansamente... em um sorriso pálido... pálido
Como o beijo religioso que puseste
Na fronte morta de tua mãe... Sobre a sua fronte morte...

terça-feira, 5 de junho de 2018

Eucanaã Ferraz, "Les romanciers étrangers"


Ela implorou por um beijo.
Sabia que um só beijo
e tudo estaria bem,
que outro beijo viria,

mais um, outro e tudo mais.
Sim, ela implorou chorando
que lhe desse um beijo e só.
Mas ele disse que não.

Firme e frio, disse que não.
Ele sabia, sem dúvida,
que se cedesse ao pedido
tudo estaria bem e

que outro beijo viria
e ele, decididamente,
não queria. Foi por isso
que ficou daquele modo,

firme, frio. Ela implorava,
olhos inchados, vermelhos,
estava dessa maneira
quando saíram à rua

e ele fingia que nada,
nada havia acontecido.
Mas como ele conseguia
ser assim, intransponível?

Diante dela, parecia
que se convertera em pedra,
pedra inteiramente não,
muro inteiramente muro.

Que fazemos quando alguém
que amamos se faz assim
diante de nosso desejo,
frente a nosso desespero?

Hoje os olhos estão secos.
Ela lembra. E ela entende
que tudo foi bem pior:
porque a pedra não era ele,

porque a pedra era ela mesma,
apesar de toda lágrima.
Sim, ela era a pedra dele,
em que ele a transformara.

domingo, 3 de junho de 2018

Hilda Hilst, "Do amor contente e muito descontente"


Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito.
Tenho me fatigado tanto todos os dias
Vestindo, despindo e arrastando amor,
Infância,
Sóis e sombras.
Vou dizer coisas terríveis à gente que passa.
Dizer que não é mais possível comunicar-me.
(Em todos os lugares o mundo se comprime.)
Não há mais espaço para sorrir ou bocejar de tédio.
As casas estão cheias. As mulheres parindo sem cessar,
Os homens amando sem amar, ah, triste amor desperdiçado
Desesperançado amor… Serei eu só
A revelar o escuro das janelas, eu só
Adivinhando a lágrima em pupilas azuis
Morrendo a cada instante, me perdendo?

Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito.
Preparo-me e aceito-me
Carne e pensamento desfeitos. Intentemos,
Meu pai, o poema desigual e torturado.
E abracemo-nos depois em silêncio. Em segredo.

sábado, 2 de junho de 2018

Cecília Meireles, "1º Noturno da Holanda"


O rumor do mundo vai perdendo a força,
e os rostos e as falas são falsos e avulsos.
O tempo versátil foge por esquinas
de vidro, de seda, de abraços difusos.

A lua que chega traz outros convites:
inclina em meus olhos o celeste mapa,
desmorona os punhos crispados do dia,
desenha caminhos, transparente e abstrata.

Arvores da noite... Pensamento amante...
- Transporta-me a sombra, na altura profunda,
aos campos felizes onde se desprende
o diurno limite de cada criatura.

É a noite sem elos... Inocência eterna,
isenta de mortes e natividades,
pura e solitária, deslembrada, alheia,
mudamente aberta para extremas viagens.

Eu mesma não vejo quem sou, na alta noite,
nem creio que SEJA: perduro em memória,
à mercê dos ventos, das brumas nascidas
nos dormentes lagos que ao luar se evaporam.

Recebo teu nome também repartido,
quebrado nos diques, levado nas flores...
Quem sabe teu nome – tão longe, tão tarde,
tão fora do tempo, do reino dos homens...?

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Vitorino Nemésio, "Outro testamento"


Quando eu morrer deitem-me nu à cova
Como uma libra ou uma raiz,
Dêem a minha roupa a uma mulher nova
Para o amante que a não quis.

Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos.
Dando-me terra dura e calma,
Cortem as unhas aos meus amigos.

Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados.
As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação.

Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.

Quando eu morrer. . .
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.

Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei.

Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Deem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me - só horizonte - para o mar.