quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Alberto Nepomuceno, "Miguel Proença executa o 3º movimento (ária) da Suite antiga para piano".



Copiado de um canal de música clássica brasileira no youtube http://www.youtube.com/user/oplutao?feature=watch

Alphonsus de Guimaraens, "Initium"


Tanta agonia, dores sem causa,
E o olhar num céu invisível posto…
Prantos que tombam sem uma pausa,
Risos que não chegam mais ao rosto…
Noites passadas de olhos abertos,
Sem nada ver, sem falar, tão mudo…
Alguém que chega, passos incertos,
Alguém que foge, e silêncio em tudo…
Só, perseguido de sombras mortas,
De espectros negros que são tão altos…
Ouvindo múmias forçar as portas,
E esqueletos que me dão assaltos…
Só, na geena* deste meu quarto
Cheio de rezas e de luxúria…
Alguém que geme, dores de parto,
- Satã que faz nascer uma fúria…
E ela que vem sobre mim, de braços
Escancarados, a agitar as tetas…
E nuvens de anjos pelos espaços,
Anjos estranhos com as asas pretas…
E o inferno em tudo, por tudo o abismo
Em que se me vai toda a coragem…
“Santa Maria, dá-me o exorcismo
Do teu sorriso, da tua imagem!”
E os pesadelos fogem agora…
Talvez me escute quem se levanta:
É a lua… e a lua é Nossa-Senhora,
São dela aquelas cores de Santa!

* geena - Inferno, na linguagem bíblica: o fogo da geena. Lugar de suplício eterno (local perto de Jerusalém onde existia um templo em que se faziam cruéis sacrifícios humanos.)


terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Vinícius de Moraes, "A mulher que passa"


Meu Deus, eu quero a mulher que passa
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!
Oh! como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pelos leves são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Por que me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me concontrava se te perdias?

Por que não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida
Para o que sofro não ser desgraça?

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!

Que fica e passa, que pacífica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como a cortiça
E tem raízes como a fumaça.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Manuel Bandeira, "Arte de amar"


Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus, ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

João Cabral de Melo Neto, "Sobre o Sentar-/Estar-no-Mundo"


Onde quer que certos homens se sentem
sentam poltrona, qualquer o assento.
Sentam poltrona: ou tábua-de-latrina,
assento além de anatômico, ecumênico,
exemplo único de concepção universal,
onde cabe qualquer homem e a contento.

                           *

Onde quer que certos homens se sentem
sentam bancos ferrenhos, de colégio;
por afetuoso e diplomata o estofado,
os ferem nós debaixo, senão pregos,
e mesmo a tábua-de-latrina lhes nega
o abaulado amigo, as curvas de afeto.
A vida toda se sentam mal sentados,
e mesmo de pé algum assento os fere:
eles levam em si os nós-senão-pregos,
nas nádegas da alma, em efes e erres.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Eugénio de Andrade, "O amor"


Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.

A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável.

A marcar sobre os teus flancos
o itinerário da espuma .

Assim é o amor: mortal e navegável.


terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Ivan Junqueira, "Esse punhado de ossos"

                                                                                     A Moacyr Felix

Esse punhado de ossos que, na areia,
alveja e estala à luz do sol a pino
moveu-se outrora, esguio e bailarino,
como se move o sangue numa veia.
Moveu-se em vão, talvez, porque o destino
lhe foi hostil e, astuto, em sua teia
bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia
o que havia de raro e de mais fino.
Foram damas tais ossos, foram reis,
e príncipes e bispos e donzelas,
mas de todos a morte apenas fez
a tábua rasa do asco e das mazelas.
E ai, na areia anônima, eles moram.
Ninguém os escuta. Os ossos não choram.


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Walt Whitman



















"Para você"

Seja você quem for, temo que esteja seguindo o caminho
       dos sonhos,
Temo que estas realidades supostas acabem desfeitas sob
       suas mãos e seus pés,
Mesmo agora, suas feições, alegrias, casa, discursos,
       negócios, maneiras, problemas,
desatinos, costumes, crimes, se dissipam ante seus olhos,
Sua alma e seu corpo verdadeiros estão diante de mim,
Eles ficam além das contendas, além do comércio, das
       lojas, do trabalho, das fazendas, das roupas, da casa,
       das compras, das vendas, da comida, da bebida,
       do sofrimento, da morte.

Seja você quem for, agora coloco minha mão sobre você,
       que seja você meu poema,
Com meus lábios sussurro-lhe ao pé do ouvido,
Já amei muitos homens e mulheres, mas ninguém
       mais do que você.

Ó, quanta lerdeza, quanta burrice,
Já devia ter corrido esse caminho a seu encontro
       há muito tempo,
Não devia ter me prendido a bobagens, devia ter
       estado com você, devia ter cantado apenas você.

Vou deixar tudo de lado e sair e elaborar os hinos de você,
Ninguém entende você, só eu entendo,
Ninguém faz justiça a você, nem você faz justiça a você
       mesmo,
Ninguém vê perfeição em você, só eu vejo a perfeição
       que existe em você,
Ninguém poderia deixá-lo livre, só eu serei aquele que
       jamais consente em subordiná-lo,
Só eu sou aquele que não coloca você sob o poder de
       senhor, proprietário, apostador,
Deus, que está além do que espera no mais profundo
       de você mesmo.

Pintores tem pintado suas multidões e a figura central
       delas,
Da cabeça da figura central se estende um halo de luz
       dourada,
Mas eu pinto miríades de cabeças e não pinto cabeça
       alguma sem seu halo de luz dourada,
Da minha mão, da cabeça de todo homem e toda mulher
       ele nasce, reluzente e fuindo para sempre.

Ó, eu poderia cantar tais grandezas e glórias a seu respeito !
Você ainda não sabe o que você é, você tem cochilado
       sobre si mesmo a vida inteira,
Suas pálpebras têm sido as mesmas pálpebras fechadas
       a maior parte do tempo,
O que você tem feito retorna a você cheio de ironia,
(Sua parcimônia, seu conhecimento, suas rezas, se elas
       não retornam em ironias, o que é seu retorno ?)

As ironias não são você,
Debaixo delas e nelas, vejo você sem saída,
Possuo você onde ninguém mais pode possuí-lo,
Silêncio, a escrevaninha, a expressão petulante, a noite,
       a rotina, se essas coisas afastam você dos demais,
       elas não afastam você de mim,
O rosto barbeado, o olho mortificado, o corpo impuro,
       se essas coisas obstruem você, elas não me obstruem,
O hálito impertinente, a postura incorreta, a bebedeira,
       a gula, a morte prematura, todas essas coisas eu deixo de lado.

Não há dom em um homem ou mulher que não esteja registrado
       em você,
Não há virtude, não há beleza em um homem ou mulher que não
       seja igual em você,
Não há vigor, não há duração em outros que não seja igual
       em você,
Não há prazer à espera de outros que não seja igual ao prazer que
       espera por você.

Quanto a mim, não dou nada a ninguém que não possa dar da
       mesma forma, cuidadosamente a você.
Canto as canções de glória a ninguém, nem a Deus, mais cedo
       do que canto as canções de glória a você.

Seja você quem for ! Clame pelo que é seu em qualquer
       circunstância !
Tudo que há de espetacular no Leste e no Oeste é pequeno
       se comparado a você,
Essas imensas pradarias, esses rios intermináveis, você é imenso
       e interminável como eles,
Essas fúrias, elementos, tempestades, movimentos da Natureza,
       gritos de aparente dissolução, você, homem ou mulher, é
       quem domina essas coisas,
Senhor ou senhora da Natureza, dos elementos, da dor, da paixão,
       da dissolução, por direito próprio.

As correntes caem de seus tornozelos, você descobre uma
       suficiência infalível,
Velho ou jovem, homem ou mulher, bruto, baixo, rejeitado
       por todos, seja você quem for, proclame a si mesmo.
Através do nascimento, da vida, da morte, do funeral,
       os meios estão ao seu alcance, nada é limitado ou menor,
Através da raiva, da perda, da ignorância, do tédio, da ambição,
       o que você é escolhe seu caminho.

Tradução de Bruno Gambarotto.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Maria Teresa Horta, "Mãe"

mãe,
terminou o tempo
de sorrir
desculpa-me a morte
das plantas

tatuei a tua antiga
imagem loura
em todos os pulsos
que anjos inclinam
de existires

perdi-me noite na planície
branca
sobrevivente das madrugadas
da memória

trocaram-me os dias
e as ruas de ancas
verticais
e nas minhas mãos incompletas
trouxe-te
um naufrágio de flores
cansadas
e o único jardim d'amor
que cultivei
de navios ancorados
ao espaço

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Glauco Mattoso, "Revisitado"

Quem disse que o Natal é só mercado?
Por trás do panetone ou da castanha
está um publicitário, uma campanha,
o lucro, as estatísticas, o Estado.

É certo. Mas o espírito arraigado
mais dura que o presente que se ganha,
mais lembra que um peru, que uma champanha
a alguém com mais futuro que passado.

Pois ela, a criancinha, é quem segura
o tempo, em seu efêmero momento,
salvando algo de júbilo ou ternura.

Esqueça-se o comércio! Ainda tento
rever cada Natal, cada gravura
em meio a tanto adulto rabugento...

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

João Cabral de Melo Neto, "Rios sem discurso"


                                             A Gabino Alejandro Carriedo

Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.

O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Paulo Henriques Britto, "1ª das Três epifânias triviais"


Seria trágico se não fosse bobagem.
Seria uma solução se houvesse um problema
possível de resolver. Seria uma imagem
poética se houvesse espaço pra um poema.
Estando as coisas como estão, não é mesmo nada.
O que é uma pena. Pois o gesto em si é belo
como uma ruína, ou uma xícara quebrada.
( Mas não é bem gesto e sim a intenção de fazê-lo.
É mais a idéia de uma coisa que uma coisa,
apenas um projeto, e a plena convicção
de que mais nada vai acontecer depois,
a consciência de que a pseudo-solução
há de doer a vida inteira na lembrança
como um castigo injusto imposto a uma criança.)


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Ivan Junqueira, "A árvore"


A árvore era humilde e arqueada,
assim como os ombros de um inválido.
Mas dava sombra e ríspidas flores vermelhas.
E liquens e pássaros e abelhas.
Um dia, suas grossas raízes fenderam a calçada,
deixando à mostra as vísceras do pátio.
E então derrubaram-na a golpes de machado.
Sobre o piso refeito, polido e imaculado,
os cães urinam e defecam,
os transeuntes escarram e cospem suas pragas,
os ratos roem os restos de uma carcaça abandonada
e os mendigos se arrastam como vermes
rumo ao nada.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Marly de Oliveira, Excerto do poema "Explicação de Narciso"


Num tempo alheio ao tempo, a sós comigo
mais uma vez diante de mim, me escuto:
o meu rebanho ficou longe, longe,
e sou pastor apenas do meu luto.
Mana de mim como um silêncio o amor,
e uma angústia, uma estrela em que me escudo
extremamente para não morrer,
de meus próprios recursos inseguro.
Que saudade de mim me vem agora
quando revejo a fonte com seu brilho
onde meu rosto urgia um tempo-outrora!
Permanência do amor ou desafio
ao tempo, no âmago de mim se vota
um sol eterno e cada vez mais frio.

              

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Juan Ramón Jimenez, "Como, morte, temer-te?"


Como, morte, temer-te?
Não estás aqui comigo, a trabalhar?
Não te toco em meus olhos; não me dizes
que não sabes de nada, que és vazia,
inconsciente e pacífica? Não gozas,
comigo, tudo: glória, solidão,
amor, até tuas entranhas?
Não me estás a sustentar,
morte, de pé, a vida?
Não te levo e trago, cego,
como teu guia? Não repetes
com tua boca passiva
o que quero que digas? Não suportas,
escrava, a gentileza que te obrigo?
Que verás, que dirás, aonde irás
sem mim? Não serei eu,
morte, tua morte, a quem tu, morte,
deves temer, mimar, amar?

Tradução de José Bento

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Sá de Miranda












"Comigo me desavim"

Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.
Com dor, da gente fugia,
Antes que esta assim crescesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.

Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?


(Coimbra, 1481 -  Amares - 1558)



segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Cecília Meireles, "Nós e as sombras"



E em redor da mesa, nós, viventes,
comíamos e falávamos, naquela noite estrangeira,
e em nossas sombras pelas paredes
moviam-se, aconchegadas como nós,
e gesticulavam, sem voz.

Éramos duplos, éramos tríplices, éramos trêmulos,
à luz dos bicos de acetilene,
pelas paredes seculares, densas, frias,
e vagamente monumentais.
Mais do que as sombras éramos irreais.

Sabíamos que a noite era um jardim de neve e lobos.
E gostávamos de estar vivos, entre vinhos e brasas,
muito longe do mundo,
de todas as presenças vãs
envoltos em ternura e lãs.

Até hoje pergunto pelo singular destino
das sombras que se moveram juntas, pelas mesmas paredes…
Oh!, as sem saudades, sem pedidos, sem respostas…
Tão fluidas! Enlaçando-se e perdendo-se pelo ar…
Sem olhos para chorar…

domingo, 5 de fevereiro de 2012

António Manuel Couto Viana, "Madrigal"


Ainda é possível este amor
como um regresso ao paraíso ?
Aroma apenas de uma flor?
O beijo apenas de um sorriso ?
Qual a resposta que preciso ?

E nada digo ! E nada dizes !
Tudo nos basta num olhar
E que tu, mão, lisa, deslizes
Por sobre a minha, devagar ...
Com pouco somos tão felizes
Que é já demais pedir luar !

E é já demais esta poesia
Se há cada vez menos valor
Nas tais palavras que diria
Para dizer-te o som e a cor
De um coração em harmonia
Que só se diz, dizendo: Amor !

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Drummond, "Liquidação"


A casa foi vendida com todas as lembranças
todos os móveis todos os pesadelos
todos os pecados cometidos ou em via de cometer
a casa foi vendida com seu bater de portas
seu vento encanado sua vista do mundo
seus imponderáveis
por vinte, vinte contos.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Augusto dos Anjos, "Solitário"



Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
-- Velho caixão a carregar destroços --

Levando apenas na tumbal carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012