sábado, 25 de setembro de 2010

Di Cavalcante, "Bordel".

João Cabral de Melo Neto, "Difícil ser funcionário".

Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira.
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.

Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas
E outros não-fazeres.

É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.

Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tampouco estas palavras -
Funcionárias, sem amor.

Carlos, há uma máquina
que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.

E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulo para todos
Os tamanhos de meu corpo.

Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança.

Não encontro a palavra
Que diga a esses móveis.
Se os pudesse encarar...
Fazer seu nojo meu...

Carlos, dessa maneira
Como colher a flor?
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Mário Quintana, "As Ruazinhas".

Eu amo de um amor que jamais saberei expressar
Essas pequenas ruas com suas casas de porta e janela,
Ruas tão nuas
Que os lampiões fazem às vezes de álamos,
com toda a vibratilidade dos álamos, petrificada nos troncos
                                                                                        [imóveis de ferro,
Ruas que me parecem tão distantes
E tão perto
A um tempo
Que eu as olho numa triste saudade de quem já tivesse morrido.
Ruas como as que a gente vê em certos quadros,
Em certos filmes:
Meu Deus, aquele reflexo, à noite, nas pedras irregulares
                                                                                        [do calçamento,
Ou a ensolarada miséria daquele muro a perder o reboco...
Para que eu vos ame tanto
Assim,
Minhas ruazinhas de encanto e desencanto,
É que expressais alguma coisa minha...
Só para mim!

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Toraji Ishikawa, "Xilo "Mulher e cão".

Goeldi, "Tarde".

Drummond, "Balada do amor através das idades".

Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
Matei, brigamos, morremos.
Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria de meu bergantim.
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal-da-cruz
e rasgou o peito a punhal.
Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira.
Pulei o muro do convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Lya Luft, "Cancão na plenitude".

Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)

O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força — que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés — mesmo se fogem — retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.

Copiado do site http://bellelage.blogspot.com/

Almeida Júnior, "Moça com Livro".

Paulo Henriques Britto, "Epílogo".

Finda a leitura, o livro está completo
em sua solidão mais-que-perfeita
de couro falso e íntimo papel.

Lá fora, o mundo segue, arquitetando
as mesmas contingências costumeiras
que nunca esbarram numa irrefutável

conclusão que se possa resumir
em três letras letais, inalienáveis.
Que paz será possível nessa selva

sem índices, prefácios, rodapés?
indaga, da estante mais excelsa,
o livro. Porém, nada disso importa,

se todas as dúvidas se dissipam,
com tudo mais, quando o bibliotecário
apaga as luzes, sai e tranca a porta.

Copiado do site http://leonorcordeiro.blogspot.com/

domingo, 19 de setembro de 2010

Luís Miguel Nava, "Paixão".

Ficávamos no quarto até anoitecer, ao conseguirmos
situar num mesmo poema o coração e a pele quase podíamos
erguer entre eles uma parede e abrir
depois caminho à água.

Quem pelo seu sorriso então se aventurasse achar-se-ia
de súbito em profundas minas, a memória
das suas mais longuínquas galerias
extrai aquilo de que é feito o coração.

Ficávamos no quarto, onde por vezes
o mar vinha irromper. É sem dúvida em dias de maior
paixão que pelo coração se chega à pele.
Não há então entre eles nenhum desnível.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Ismael Nery, "Mulheres"

Bertold Brecht, "A minha mãe"

Quando ela acabou, foi colocada na terra
Flores nascem, borboletas esvoejam por cima...
Leve, ela não fez pressão sobre a terra
Quanta dor foi preciso para que ficasse tão
                                                                        leve!

Tradução de Paulo César de Souza.
Copiado do site http://antoniocicero.blogspot.com/.



quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Cecília Meireles, "Tu tens um medo"

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosses outro.
Como se fosses amar.
Sem esperar.
Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete
Se o amor leva à felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino.
Se te leva.
E se vai, ele mesmo...
Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai.
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.
Sê apenas uma presença.
Invisível presença silenciosa.
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam.
Sem saberem que existe.
Todas as coisas esperarão por ti,
Sem te falarem.
Sem lhes falares.
Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos
Humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...
... E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que é eterno.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Inocêncio Borghese, "Beira Mar"

Ferreira Gullar, "Meu povo, Meu poema"

Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova.

No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar.

No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro.

Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil.

Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta.