sábado, 29 de setembro de 2012

Du Fu, "Contemplando a neve"


Batalhas, soluços,
     novos e velhos fantasmas.
Triste e só, um velho
     recita poemas,
     ao diáfano crepúsculo.
Em meio a nuvens baixas
     a neve, de repente,
     dança no turbilhão do vento.
Joguei fora a concha de vinho,
     pois a jarra está vazia
e, no braseiro, só há lembrança
     de brasas ardentes.
Nenhuma notícia
     de numerosas províncias.
Com o dedo, garatujo no ar
     a palavra dor.

Tradução de Sérgio Caparelli e Sun Yuqi.

Du Fu nasceu e viveu na China entre 712 e 770.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Nuno Júdice, "Gênese"


Todo poema começa de manhã, com o sol. Mesmo
que o sol não esteja à vista (isto é, céu de chuva)
o poema é o que explica tudo, o que dá luz
à terra, ao céu, e com nuvens à mistura - a luz incomoda,
quando é excessiva. Depois o poema sobe
com as névoas que o dia arrasta; mete-se pelas copas das
árvores, canta com os pássaros, e corre com os ribeiros
que vêm não se sabe de onde e vão para onde
não se sabe. O poema conta como tudo é feito:
como esta manhã, e acaba, também por acaso,
com o sol a querer romper.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

João Cabral de Melo Neto, "As plazonetas"


Quem fez Sevilha a fez para o homem,
sem estentóricas paisagens.
Para que o homem nela habitasse,
não os turistas, de passagem.

E claro, se afez para o homem,
fê-la feminina;
com dimensões acolhimentos
que se espera de coxas íntimas.

Para a mulher: para que aprenda,
fez escolas de espaços, dentros,
pequenas praças, plazonetas*,
que do tamanho de um lenço.

* plazoneta é uma pequena praça.



terça-feira, 25 de setembro de 2012

Ferreira Gullar, "Nem aí..."


Indiferente
                ao suposto prestígio literário
e ao trabalho
do poeta
              à difícil faina
a que se entrega para
inventar o dizível,
sobe a mesa
              o gatinho
              se espreguiça
              e deita-se e
              adormece
                              em cima do poema

domingo, 23 de setembro de 2012

Bertold Brecht, "A máscara do mal"


Em minha parede há uma escultura de madeira japonesa
Máscara de um demônio mau, coberta de esmalte dourado.
Compreensivo observo
As veias dilatadas da fronte, indicando
Como é cansativo ser mau.

sábado, 22 de setembro de 2012

Ruy Belo











"Poema de carnaval"

Eu estava só naquela tarde e tu vieste
de dentro povoar-me de cidade o coração
prometido para o lugar
onde costumamos deixar as palavras
Tinham posto de novo fitas nas árvores
reuniram-se os corpos e as vozes
para todos juntos sentirem
pontualmente a alegria
E tu pousaste então ó meu pássaro naquele coração
cingido no meio da cidade.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Konstantinos Kaváfis, "Eu trouxe à Arte"


Ponho-me a meditar.      Desejos e sensações
eu trouxe à Arte -      certas coisas entrevistas,
rostos ou linhas;      de amores incompletos
algumas lembranças indefinidas.      Que eu me entregue à Ela,
que sabe configurar      o Semblante da Beleza.
quase imperceptivelmente      completando a vida,
associando impressões,       associando os dias.

Tradução de Isis Borges da Fonseca.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Alice Ruiz, "Humilde..."


humilde
                   para ser uma
úmida
                   para ser duas
única
                   para ser muitas

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)













"Começo a conhecer-me..."

Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.

domingo, 16 de setembro de 2012

Cecília Meireles













"Despedida"

Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranquilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou o meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)

Quero solidão.

sábado, 15 de setembro de 2012

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Drummond, "Estampas de Vila Rica".












"Hotel Toffolo"

E vieram dizer-nos que não havia jantar.
Como se não houvesse outras fomes
e outros alimentos.

Como se a cidade não servisse seu pão
de nuvens.

Não, hoteleiro, nosso repasto é interior
e só pretendemos a mesa.
Comeríamos a mesa, se no-lo ordenassem as Escrituras.
Tudo se come, tudo se comunica,
tudo, no coração, é ceia.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Camilo Pessanha, "Porque o melhor, enfim..."




Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver...
Passarem sobre mim
E nada me doer!

Sorrindo interiormente,
Co'as pálpebras cerradas,
Às águas da torrente
Já tão longe passadas.

Rixas, tumultos, lutas,
Não me fazerem dano...
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.

Passar o estio, o outono,
A poda, a cava, e a redra,
E eu dormindo um sono
Debaixo duma pedra.

Melhor até se o acaso
O leito me reserva
No prado extenso e raso
Apenas sob a erva

Que Abril copioso ensope...
E, esvelto, a intervalos
Fustigue-me o galope
De bandos de cavalos.

Ou no serrano mato,
A brigas tão propício,
Onde o viver ingrato
Dispõe ao sacrifício

Das vidas, mortes duras
Ruam pelas quebradas,
Com choques de armaduras
E tinidos de espadas...

Ou sob o piso, até,
Infame e vil da rua,
Onde a torva ralé
Irrompe, tumultua,

Se estorce, vocifera,
Selvagem nos conflitos,
Com ímpetos de fera
Nos olhos, saltos, gritos...

Roubos, assassinatos!
Horas jamais tranqüilas,
Em brutos pugilatos
Fraturam-se as maxilas...

E eu sob a terra firme,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada.

 

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Cecília Meireles, "Canção"


Mais que a mão do amor,
é tépida a terra
que guarda sem guerras
a caveira e a flor.

Melhor que os amigos,
fala a solidão,
sem opinião
sobre o que lhe digo.

Sozinha me vi,
sozinha me vejo.
Que tristes desejos
pascem por aqui?

Tanto que te amava!
Mas amava a quem?
Mais doçura tem
águas do ma, bravas.

Só depois do adeus,
arrependimentos.
coma as fitas do vento
amarra-me aos teus.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Antônio Carlos Secchin, "Poema para 2002"


Caxumba, catapora, amigdalite,
miopia, nevralgia, crise asmática.
Dor de dente, dor de corno, hepatite,
diabete, arritmia e matemática.
Helenas, Marianas e Marcelos,
tomate, hipocondria e chicória,
sacerdotes, baratas, pesadelos,
calvície, dentadura e desmemória.
Pé quebrado, verso torto, ruim de bola,
nervoso, nariz grande, cu de ferro.
Desastrado, imprudente e noves fora,
muita prosa, mas gozo quase zero.
E para coroar todos os danos
benvindos sejam os meus cinqüenta anos.


sábado, 8 de setembro de 2012

Camilo Pessanha














"Ao longe os barcos de flores"

Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranqüila,
Perdida voz que de entre as mais se exila,
Festões de som dissimulando a hora.
Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranqüila,
E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?
Só, incessante, um som de flauta chora...

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Jorge Luís Borges, "A John Keats (1795-1821)"


Desde o começo até a à jovem morte
A terrível beleza te espreitava
Como a outros a propícia sorte
Ou a adversa. Na luz te esperava
De Londres, pelas páginas casuais
De um dicionário de mitologia,
Nas dádivas comuns de cada dia,
Num rosto, numa voz, e nos mortais
Lábios de Fanny Brawne*. Oh, sucessivo
E arrebatado Keats, que o tempo cega,
O alto rouxinol e a urna grega
Ser-te-ão eternidade. Oh fugitivo,
O fogo foste. Na pânica memória
Não és agora a cinza. És a glória.

Tradução de Eugénio de Andrade

*Fanny Brawne foi uma escritora inglesa por quem Keats era apaixonado.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Eugénio de Andrade













"Cala-te ..."


Cala-te, a luz arde entre os lábios
e o amor não contempla, sempre
o amor procura, tacteia no escuro,
esta perna é tua? é teu este braço?,
subo por ti de ramo em ramo,
respiro rente a tua boca,
abre-se a alma à língua, morreria
agora se mo pedisse, dorme,
nunca o amor foi fácil, nunca
também a terra morre.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Luís Miguel Nava, "University Parks"


Do céu pende a folhagem.
A miúda angústia a que
de novo apoio os cotovelos
adquire aqui tonalidades de ouro.

Passaram cães que pareciam cabras.
Por entre os vidros
inquietos
dos meus óculos, o verde
das folhas tinge o coração.

Nas ervas
que crescem do meu espírito
pequenos animais escondem o focinho.

O mar vem agarrado à luz. As árvores
desafiam o sol como se nele
tivesses as raízes enterradas.

domingo, 2 de setembro de 2012

Guilherme de Almeida, "Álibi"


Não estive presente
quando se perpetrou
o crime de viver:
quando os olhos despiram,
quando as mãos se tocaram,
quando a boca mentiu,
quando os corpos tremeram,
quando o sangue correu.
Não estive presente.
Estive fora, longe
do mundo, do meu mundo
pequeno e proibido
que embrulhei e amarrei
com cordéis apertados
de meridianos meus
e de meus paralelos.
Os versos que escrevi
provam que estive ausente.

Eu estou inocente.

sábado, 1 de setembro de 2012

Eugénio de Andrade, "O ofício"


Recomeço.
Não tenho outro ofício.

Entre o pólem subtil
e o bolor da palha,
recomeço.

Com a noite de perfil
a medir-me cada passo,
recomeço,
pedra sobre pedra
a juntar palavras,

quero eu dizer:
ranho baba merda.