terça-feira, 31 de março de 2015

João Cruz e Souza, "Aparição"


Por uma estrada de astros e perfumes
A Santa Virgem veio ter comigo:
Douravam-lhe o cabelo claros lumes
Do sacrossanto resplendor amigo.

Dos olhos divinais no doce abrigo
Não tinha laivos de Paixões e ciúmes:
Domadora do Mal e do perigo
Da montanha da Fé galgara os cumes.

Vestida na alva excelsa dos Profetas
Falou na ideal resignação de Ascetas,
Que a febre dos desejos aquebranta.

No entanto os olhos dela vacilavam,
Pelo mistério, pela dor flutuavam,
Vagos e tristes, apesar de Santa!

segunda-feira, 30 de março de 2015

Lucílio de Albuquerque, "Manha de sol em Niteroi"




















Parece-me que é a Igreja de São Francisco, no Saco de São Francisco.


domingo, 29 de março de 2015

Mauro Mota, "O cão"


                                                 A Edson Nery da Fonseca

É um cão negro. É talvez o próprio Cão
assombrado e fazendo assombração.
Estraçalha o silêncio com seus uivos.
A espada ígnea do olhar na escuridão

separa a noite, abre um canal no escuro.
Cão da Constelação do Grande Cão,
tombado no quintal, espreita o pulo:
duendes, fantasmas de ladrão no muro.

O latido ancestral liberta a fome
de tempo, e o cão, presa do faro, come
o medo e a treva. Agita-se, devora

sua ração de cor. Pois, louco e uivante,
lambe os pontos cardeais, morde o levante
e bebe o sangue matinal da aurora.


sábado, 28 de março de 2015

Sônia de Barros, "Aos 35"


                                                    Para meu filho Bruno

Após frias noites sem sol

um feixe de céu
escorre
percorre veias
           falésias
incide
no abismo

agudo azul
perfura de luz
o escuro mar de meus olhos
aquece meus ossos soterrados
                                    e inflama
de imenso sol
                                               o ventre
         que explode em raios de águas vivas

- o abismo se faz fonte -

e agarrada ao choro do sol
eu posso
enfim
            nascer

                                                  (16 de agosto de 2004 à 1h 34)

           

quinta-feira, 26 de março de 2015

Eucanaã Ferraz, "Lhe"


Não era uma víscera qualquer.
Se o que boiava no sangue era só
gordura e nervos, invisíveis lá
subsistiam mitos cartas de suicidas
madrigais canções de amigo.

Pus - cuidadosamente - nessa bandeja
e lhe entreguei, Salomé
que degolasse a si mesma,
por que às vezes é preciso ser literal:
trazer a imagem mais recôndita
ao chão que descalço pisa o pé da letra.

Mas você
você não sabe sequer a diferença
entre um coração e uma almôndega.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Carlos Newton Júnior, "A leoa (Museu Britânico)"


A leoa, ferida, ruge e avança
enquanto a morte a ronda com três flechas
(mas não será a morte, posto que ela
a ignora e a morte não a alcança).

O seu olhar é fero e doido instante
que não esmoreceu e ainda aferra;
a pupila dilata-se no transe
do êxtase profundo que a encerra.

Quem fez brotar da pedra essa beleza?
Onde se oculta a sua força estranha?
Se atrás eu vejo as patas esmagadas,
as da frente sustentam-lhe as entranhas.

A espinha dorsal dessa leoa:
talvez ali esteja a chama ardente
da vida que se espalha e que escoa
pelos poros da pedra, pela boca,
pelo rugir da fera e os seus dentes.



Creio que este relevo Assírio, exposto no Museu Britânico tenha inspirado o autor.


terça-feira, 24 de março de 2015

Hipólito Boaventura Caron, "Vista da Gamboa"














O quadro foi pintado em 1882,  antes do aterro onde atualmente existe a avenida Rodrigues Alves e o cais do porto. Naquela época, das ruas mais altas da Gamboa avistava-se a Baia da Guanabara.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Miguel Sanches Neto











"Caçador e vítima"

Escrever é caçar caranguejos
à maneira do guaxinim.
Enfiando o rabo no buraco
onde se aloja o crustáceo,
ele espera que este o morda
como suas impiedosas tesouras
para sacar logo em seguida
a presa cravada em sua cauda.
O próximo passo é saboreá-la
-  a memória da dor em carne viva.

Enquanto espera, o guaximim chora,
sofrendo de antemão a investida.
Caçador e vítima, é sua própria isca.
Contorcendo-se nesta emboscada,
o sabor e a cicatriz ele preliba
-  a água na boca é a mesma das lágrimas.

domingo, 22 de março de 2015

Eucanaã Ferraz











"São Sebastião"

Assim: como se,
sob o peixe, um brasido.
Ou: seda
em pleno fogo.
Como se brotassem de
seu peito e coxas
as flechas que
lhe comem a carne.
Arde, como um homem arde
(carne em jejum),
como um bicho morre.
Pede - e Deus lhe beija a boca.


sexta-feira, 20 de março de 2015

Paulo Leminski














"Adminimistério"

 Quando o mistério chegar,
já vai me encontrar dormindo,
metade dando pro sábado,
outra metade, domingo.
Não haja som nem silêncio,
quando o mistério aumentar.
Silêncio é coisa sem senso,
não cesso de observar.
Mistério, algo que, penso,
mais tempo, menos lugar.
Quando o mistério voltar,
meu sono esteja tão solto,
nem haja susto no mundo
que possa me sustentar.

Meia-noite, livro aberto.
Mariposas e mosquitos
pousam no texto incerto.
Seria o branco da folha,
luz que parece objeto?
Quem sabe o cheiro do preto,
que cai ali como um resto?
Ou seria que os insetos
descobriram parentesco
com as letras do alfabeto?


quinta-feira, 19 de março de 2015

Antônio Carlos Secchin











"Desmoronam promessas e misérias..."

Desmoronam promessas e misérias,
pedaços da palavra e da memória,
e o sol da força bruta da matéria
escorre para o ralo como escória.

Os ratos já devoram toda história,
e avançam contra os cacos do presente,
seus dentes decompondo em pó a glória
de um futuro podado na semente.

Do muito que sonhamos talvez sobre
o sopro de uma aurora que nos leva
além de nossa dor, mas não descobre

a flor que pulsa e arde em meio à treva.
Depois, virando cinza o que é graveto,
não sobrará nem mesmo este soneto.

terça-feira, 17 de março de 2015

Fernando Pessoa - Bernardo Soares, "Livro do Desassossego"















Capítulo 92

(a child hand's playing with [?] cotton-reels, etc.) 

Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. As maiores dores da minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para dentro de mim pude esquecer-me na visão do seu movimento.

Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. A vida nunca pedi senão que passasse por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho longínquo. Nas minhas próprias paisagens interiores, irreais todas elas, foi sempre o longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumam —
quase na distância das minhas paisagens sonhadas, tinham uma doçura de sonho em relação às outras partes da paisagem — uma doçura que fazia com que eu as pudesse amar.

A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me ainda, e só na minha morte me abandonará. Não alinho hoje nas minhas gavetas carros de linha e peões de xadrez — com um bispo ou um cavalo acaso sobressaindo — mas tenho pena de o não fazer... e alinho na minha imaginação, confortavelmente, como quem no inverno se aquece a uma lareira, figuras que habitam, e são constantes e vivas, na minha vida interior. Tenho um mundo de amigos dentro de mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas.

Alguns passam dificuldades, outros têm uma vida boêmia, pitoresca e humilde. Há outros que são caixeiros-viajantes (poder sonhar-me caixeiro-viajante foi sempre uma das minhas grandes ambições — irrealizável infelizmente!). Outros moram em aldeias e vilas lá para as fronteiras de um Portugal dentro de mim; vêm à cidade, onde por acaso os encontro e reconheço, abrindo-lhes os braços, numa atração... E quando sonho isto, passeando no meu quarto, falando alto, gesticulando... quando sonho isto, e me visiono encontrando-os, todo eu me alegro, me realizo, me pulo, brilham-me os olhos, abro os braços e tenho uma felicidade enorme, real.

Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram! O que eu sinto quando penso no passado que tive no tempo real, quando choro sobre o cadáver da vida da minha infância ida,... isso mesmo não atinge o fervor doloroso e trêmulo com que choro sobre não serem reais as figuras humildes dos meus sonhos, as próprias figuras secundárias que me recordo de ter visto uma só vez, por acaso, na minha pseudovida, ao virar uma esquina na minha visionação, ao passar por um portão numa rua que subi e percorri por esse sonho fora.


A raiva de a saudade não poder reavivar e reerguer nunca é tão lacrimosa contra Deus, que criou impossibilidades, do que quando medito que os meus amigos de sonho, com quem passei tantos detalhes de uma vida suposta, com quem tantas conversas iluminadas, em cafés imaginários, tenho tido, não pertenceram, afinal, a nenhum espaço onde pudessem ser, realmente, independente da minha consciência deles!

Oh, o passado morto que eu trago comigo e nunca esteve senão comigo! As flores do jardim da pequena casa de campo e que nunca existiu senão em mim. As hortas, os pomares, o pinhal, da quinta que foi só um meu sonho! As minhas vilegiaturas supostas, os meus passeios por um campo que nunca existiu! As árvores de à beira da estrada, os atalhos, as pedras, os camponeses que passam... tudo isto que nunca passou de um sonho, está guardado em minha memória a fazer de dor e eu, que passei horas a sonhá-los passo horas depois a recordar tê-los sonhado e é, na verdade saudade que eu tenho, um passado que eu choro, uma vida real morta que fito, solene, no seu caixão.

Há também as paisagens e as vidas que não foram inteiramente interiores. Certos quadros, sem subido relevo artístico, certas oleogravuras que havia em paredes com que convivi muitas horas — passam a realidade dentro de mim. Aqui a sensação era outra, mais pungente e triste. Ardia-me não poder estar ali, quer eles fossem reais ou não. Não ser eu, ao menos, uma figura a mais, desenhada ao pé daquele bosque ao luar que havia numa pequena gravura dum quarto onde dormi já mais em pequeno! Não poder eu pensar que estava ali oculto, no bosque à beira do rio, por aquele luar eterno (embora mal-desenhado), vendo o homem que passa num barco por baixo do debruçar de um salgueiro! Aqui o não poder sonhar inteiramente doía-me. As feições da minha saudade eram outras. Os gestos do meu desespero eram diferentes. A impossibilidade que me torturava era de outra ordem de angústia. Ah, não ter tudo isto um sentido em Deus, uma realização conforme o espírito de nossos desejos, não sei onde, por um tempo vertical, consubstanciado com a direção das minhas saudades e dos meus devaneios! Não haver, pelo menos só para mim, um paraíso feito disto! Não poder eu encontrar os amigos que sonhei, passear pelas ruas que criei, acordar, entre o ruído dos gaios e das galinhas e o rumorejar matutino da casa, na casa de campo em que eu me supus... e tudo isto mais perfeitamente arranjado por Deus, posto naquela perfeita ordem para existir, na precisa forma para eu o ter que nem os meus próprios sonhos atingem senão na falta de [...] consciência do espaço íntimo que entretém essas pobres realidades.

Ergo a cabeça de sobre o papel em que escrevo... É cedo ainda. Mal passa o meio-dia e é domingo. O mal da vida, a doença de ser consciente, entra com o meu próprio corpo e perturba-me. Não haver ilhas para os inconfortáveis, alamedas vetustas, inencontráveis de outros para os isolados no sonhar! Ter de viver e, por pouco que seja, de agir; ter de roçar pelo fato de haver outra gente, real também, na vida! Ter de estar aqui escrevendo isto, por me ser preciso à alma fazê-lo, e, mesmo isto, não poder sonhá-lo apenas, exprimi-lo sem palavras, sem consciência mesmo, por uma construção de mim-próprio em música e esbatimento, de modo que me subissem as lágrimas aos olhos só de me sentir expressar-me, e eu florisse, como um rio encantado, por lentos declives de mim próprio, cada vez mais para o inconsciente e o Distante, sem sentido nenhum exceto Deus.


segunda-feira, 16 de março de 2015

Suzana da Costa Longo, "Amei-te 2"


Amei-te primeiro em sonhos,
Quando eras distância e eu solidão

Depois amei-te em olhares,
Porque as palavras não cumpriam função.

Aí então amei-te aos poucos,
Devagar
Pra que a música pudesse tocar
e eu sentisse a dança em mim.

sábado, 14 de março de 2015

Al Berto, "Diários"













                                                      rua do forte

9 de abril de 1985


os dias em cinza correm velozes onde não te alcanço.

que me visites de tempos a tempos é o que desejo. de resto, vou perdendo a vontade de tudo, até de escrever. de te reinventar, cada instante por trás das palavras. é uma ilusão, eu sei, mas é também a única maneira de ir sobrevivendo ao imenso caos que me assola nestes últimos tempos.

o pior é que, se calhar, não existes muito mais para além da forma das palavras. um terrível silêncio separa-nos porque não te posso amar mais naquilo que escrevo. Quando me surges escrito és outro já. não aquele que amo e a quem escrevo. mato-te assim, ao longo das noites. matando-me também a mim. ou aquele que julgo ser quando te sobrevivo. quem morre?

qual de nós é o outro? quem mata quem? quem escreve? quem ficou escrito? em que momento preciso do silêncio nos tocamos? tu, vivendo nas palavras, e eu alimentando-me delas. ou vice-versa. onde? quando?

 

sexta-feira, 13 de março de 2015

Foto de Lucien Clergue, "Corpo"




Paulo Mendes Campos



 

 

 

 
 
 
 
 "Autobiografia"
 
1922 - Semana de Arte Moderna, revolta do Forte de Copacabana, morte do Papa, o rei entrega o poder a Mussolini. Nada tenho com tudo isso: simplesmente nasço.

1923 - Morre o Rui, Stalin assume a chefia do poder soviético, putch de Hitler em Munique. Eu nada disse, nada me foi perguntado.

1924 - Revolução em São Paulo, estado de sítio. Dou para quebrar minhas mamadeiras, após o ato de esvaziá-las. O califado turco entra pelo cano.

1925 - Começo a ver o diabo dançando em torno de meu berço;e gosto.

1928 - Carmona, presidente de Portugal; Hiro-Hito, imperador do Japão. Ganho um par de botinas e durmo abraçado a elas.

1927 - Com o nome de Charles Lindbergh, atravesso o Atlântico pilotando o Spirit of Saint Louis.

1928 - Antônio de Oliveira Salazar torna-se precocemente ministro das finanças portuguesas; perco na Rua Tupis uma prata de dois mil-réis.


1929 - Craque na bolsa de Nova Iorque. Pulo do bonde em movimento na rua da Bahia, esborracho-me no chão, um Ford último modelo consegue parar em cima de mim, e quase não fico para contar a história.

1930 - Revolução: mesmo com fratura dupla no braço, dou o melhor de mim ao lado das tropas rebeldes e, logo após, ao lado das tropas legalistas. Na caixa d'água da Serra leio "0 Barão de Münchausen".

1931 - A Inglaterra deixa o padrão ouro, Afonso XIII deixa o trono espanhol. Eu, Robinson Crusoé, naufrago no Pacífico, chego a uma ilha cheia de ilustrações coloridas e me torno amigo de Sexta-Feira.

1932 - Revolução de São Paulo. Luto na Mantiqueira, tremendo de frio e de coragem; não tenho muita certeza se morro ou não.

1933 - Morre dentro da banheira o Presidente Olegário Maciel. O Padre Coqueiro vem dizer que as aulas estão suspensas por motivo de luto nacional. Viva Olegário Maciel! Fujo da casa paterna, materna, fraterna, mochila nas costas, em busca dos índios de Mato Grosso; regresso ao atingir as terras da Mutuca, hoje subúrbio de Belo Horizonte.

1934 - Hitler é Führer do Reich; eu não sei se sou Winetou ou Mão de Ferro.

1935 - Mussolini ataca a Abissínia; ataco e defendo no time da divisão dos médios como centro-médio.

1936 - Morre George V, viva Eduardo VIII, que renuncia, sobe ao trono George VI. Ganho com alegria o bilhete azul do colégio.

1937 - O golpe do Estado Novo me pega de surpresa, quando subo as escadas da capela do outro colégio para a benção do Santíssimo e uma prática chatíssima de Frei Mário.

1938 - Os japoneses tomam Cantão; no Hotel Espanhol, São João del-Rei, os bacharelandos do Ginásio de Santo Antônio tomam vinho Gatão e recitam um ditirambo de Medeiros de Albuquerque (estava no florilégio do compêndio): "Bebe! e se ao cabo da noite escura, / Hora de crimes torpes, medonhos, / Varrer-te acaso da mente os sonhos, / Cerra os ouvidos à voz do povo! / Ergue teu cálice, bebe de novo!" Foi o que fizemos.

1939 - Começo a guerra.

1940 - Caio com a França.

1941 - Não sou mais eu:

1) sou como o rei de um país chuvoso;
2) sou uma nuvem de calças;
3) sou 350;
4) sou triste e impenetrável como um cisne de feltro. E assim por diante.

1942 - Atingido pelo mal do século (XVIII), mato-me no Parque Municipal. Meu nome é Werther.

1943 - Venço a batalha de Stalingrado.

1944 - Maquis.

1945 - Tomo o noturno mineiro e me mudo para o Rio, acabo com a ditadura.


1946 - 1955 – Yo era un tonto.

1956 - 1960 - Lo que hé visto me ha hecho dos tontos.


1961 - Subo no espaço sideral, dou uma volta em torno da Terra na primeira nave cósmica tripulada por um ser humano. Depois desço no Bico de Lacre, bar dos mentirosos e sonhadores, e digo: "O Mundo é azul.

quinta-feira, 12 de março de 2015

quarta-feira, 11 de março de 2015

Ivan Junqueira, "O poema"


Que será o poema,
essa estranha trama
de penumbra e flama
que a boca blasfema?

Que será se há lama
no que escreve a pena,
ou lhe aflora a cena
o excesso de um drama?

Que será o poema:
uma voz que clama?
Uma luz que emana?
Ou a dor que o algema?

terça-feira, 10 de março de 2015

Jorge de Sena, "Tentações do apocalipse"

Não é de poesia que precisa o mundo.
Aliás, nunca precisou. Foi sempre
uma excrescência escandalosa que
se lhe dissesse como é infame a vida
que não vivamos para outrem nele.
E nunca, só de ser, disse a poesia
uma outra coisa, ainda quando finge
que de sobreviver se faz a vida.
O mundo precisa de morte. Não da morte
com que assassina diariamente quantos teimam
em dizer-lhe da grandeza de estar vivo.
Nem da morte que o mata pouco a pouco,
e de que todos se livram no enterro dos outros.
Mas sim da morte que o mate como um percevejo,
uma pulga, um piolho, uma barata, um rato.
Ou que a bomba venha para estas culpas,
se foi para isso que fizemos filhos.
Há que fazer voltar à massa primitiva
esta imundície. E que, na torpitude
de existir-se, ao menos possa haver
as alegrias ingénuas de todo o recomeço.
Que os sóis desabem. Que as estrelas morram.
Que tudo recomece desde quando a luz
não fora ainda separada às trevas
do espaço sem matéria. Nem havia um espírito
flanando ocioso sobre as águas quietas,
que pudesse mentir-se olhando a criação.
(O mais seguro, porém, é não recomeçar.)

domingo, 8 de março de 2015

Eduardo Guimarães, "Desejo"


Desejo, desejo vago
de ser a tarde que expira,
ser o salgueiro do lago,
onde a aragem mal respira.

Ser a andorinha que voa
e vai, ser o último raio
de sol... e o sino que soa.
Ser o frescor do ar de maio.

Ser o eco da voz distante
que além se extingue dolente
ou essa folha que, errante
ao vento, cai dormente...

Ser o reflexo disperso
dum ramo n'água pendido,
fluído e belo como um verso
que cante mas sem sentido!

Ser o silêncio, esta calma.
Breve momento impreciso.
Ser um pouco da tua alma...
um pouco do teu sorriso.


sábado, 7 de março de 2015

Cecília Meireles, "Explicação"


O pensamento é triste; o amor, insuficiente;
e eu quero sempre mais do que vem nos milagres.
Deixo que a terra me sustente:
guardo o resto para mais tarde.

Deus não fala comigo – e eu sei que me conhece.
A antigos ventos dei as lágrimas que tinha.
A estrela sobe, a estrela desce…
– espero a minha própria vinda.

(Navego pela memória
sem margens.
Alguém conta a minha história
e alguém mata os personagens.)

quinta-feira, 5 de março de 2015

Al Berto, "No centro da cidade, um grito"


No centro da cidade, um grito.
Nele morrerei, escrevendo o que a vida me deixar
e sei que cada palavra escrita é um dardo envenenado.
Tem a dimensão de um túmulo e todos os teus gestos
são uma sinalização em direcção à morte.
Mas hoje, ainda longe daquele grito,
sento-me na fímbria do mar. Medito no meu regresso.
Possuo para sempre tudo o que perdi,
e uma abelha pousa-me no azul do lírio
e no cardo que sobreviveu à geada.

Bebo, fumo, mantenho-me atento,
absorto - aqui sentado, junto à janela fechada.
oiço-te ciciar: amo-te, pela primeira vez,
e na ténue luminosidade que se recolhe ao horizonte,
acaba o corpo.
Recolho o mel, guardo a alegria,
e digo-te baixinho:
Apaga as estrelas, vem dormir comigo
no esplendor da noite do mundo que nos foge.

quarta-feira, 4 de março de 2015

Raul de Leoni, "A hora cinzenta"


Desce um longo poente de elegia
Sobre as mansas paisagens resignadas:
Uma humaníssima melancolia
Embalsama as distâncias desoladas...

Longe, num sino antigo, a Ave-Maria
Abençoa a alma ingênua das estradas;
Andam surdinas de anjos e de fadas,
Na penumbra nostálgica, macia...

Espiritualidades comoventes
Sobem da terra triste, em reticência
Pela tarde sonâmbula, imprecisa...

Os sentidos se esfumam, a alma é essência
E entre fugas de sombras transcendentes,
O Pensamento se volatiliza...

segunda-feira, 2 de março de 2015

Donizete Galvão, "Depois da queda"


Memória do paraíso

não tenho não.

Lembro-me da dor.

Da vergonha.

Do desgosto.

Da gota de suor

pingando do rosto.

domingo, 1 de março de 2015

Odylo Costa, filho, "Um pombo: a tormenta"


Num buraco da pedra refugiou-se
um pombo, só, sem companhia alguma.
A tarde, até então tranquila e doce,
vestiu-se de relâmpagos e bruma,

e a chuva esvoaçou, como se fosse
feita de voo mas também de pluma,
e na explosão que a trovoada trouxe
desfizeram-se as nuvens, uma a uma,

e caíram nas calhas feitas águas
e a água em saudade se mudou de bica...
Água da infância nos lavou a cara...

E como o estouro de uma grande mágoa
que atrás dos olhos quer ficar, não fica,
vi que o pombo nas águas revoara.

E enfrentava a tormenta cara a cara.