sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Jennifer Larmore interpretando a ária "Ombra mai fu", da ópera Xerxes, de Händel.

Jorge de Lima, "A noite desabou sobre o cais"


A noite desabou sobre o cais
pesada, cor de carvão.
Rangem guindastes na escuridão.
Para onde vão essas naus ?
Talvez para as Índias.
Para onde vão.

Capitão-mor, capitão-mor,
quereis me dizer onde é que fica
a ilha de São Brandão ?

A noite desabou sobre o cais
pesada, cor de carvão.
Rangem guindastes na escuridão.
Donde é que vêm essas naus ?

Serão caravelas ? Serão negreiros ?
São caravelas e negreiros.
Há sujos marujos na caravelas.

Há estrangeiros que ficaram negros
de trabalharem no carvão.
Homens da estiva trabalham, trabalham,
sobem e descem nos porões,
Para onde vão essas naus ?

Saltam emigrantes embuçados,
mulheres, crianças na escuridão.
De onde vêm essa gente ?
Não há mais terras de Santa Cruz gente valente !

Ó indesejáveis qual país,
qual o país que desejais ?
Como é o nome dessas naus
que não se lê na escuridão ?
Vão descobrir o Preste João ?
Na minha geografia existe apenas
perdido no mar o cabo Não.

A noite desabou sobre o cais
pesada, cor de carvão.

Essas naus vão para o Congo ?
Castelo de Sagres ficou aonde ?
Capitão-mor onde é o Congo ?
Será no leste, no mar tenebroso ?
Capitão-mor perdi-me no mar.
Onde é que fica a minha ilha ?

Para onde vão os degredados,
os que vão trabalhar desntro da noite,
ouvindo ranger esses guindastes ?

Capitão-mor que noite escura
desabou sobre o cais,
desabou nesse caos.

Edgar Oehlmeyer, "Vaso de flores"

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Konstantinos Kaváfis, "Retorna"


Retorna frequentemente e apodera-te de mim,
sensação amada, retorna e apodera-te de mim -
quando a memória do corpo desperta,
e um desejo antigo torna a passar pelo sangue;
quando os lábios e a pele se lembram,
e as mãos sentem como se tocassem de novo.
Retorna frequentemente e apodera-te de mim à noite,
quando os lábios e a pele se lembram ...

Tradução de Ísis Borges da Fonseca.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

José Augusto Seabra, "Tríptico da tristeza "



1.

Desce tristeza inútil
à profunda
serenidade intacta.

Desce, tristeza,
inunda
a verdade exacta.

E desce, tristeza, ainda
visível
e compacta.

2.

Soluço-te, tristeza,
como longa
ferida silenciada
e grave.

Irrompes-me
e sucumbes:
frialdade.

Um bafo
de alegria.

E só.

Um nada.

3.

Cai-me
a tristeza aos pés.

E não me baixo.




terça-feira, 27 de dezembro de 2011

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Murilo Mendes, "Ana Luiza"

Tuberculosa incomparável
Tens um farrapo de vida
Mas um corpo forte sensual
Uma cabeça vitoriosa
Plantada num tronco largo.

Está sendo lentamente devorada
Por seres microscópicos
Ana Luísa.

No sanatório usava lentes escuras
Para esconder teus célebres olhos azul-cinza
E tinhas medo do definitivo e monumental:
Estendida continuamente na espreguiçadeira,
Da força das montanhas te ocultavas.
De nada te valeu minha ternura,
De nada tua beleza te valeu.

Talvez te tornes para sempre invisível
Agora que eu te arranquei da penumbra dos tempos
Ana Luísa.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Alberto Caeiro (Pessoa), "Num meio-dia de Primavera ..."

Num meio-dia de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espirito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez com que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E porque toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando agente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espirito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

.. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É a minha quotidiana vida de poeta,
E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para el
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?

sábado, 24 de dezembro de 2011

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Ibn Sara, "A brisa e a chuva".

Buscas consolo no sopro do vento ?
Em sua aragem há perfume e almíscar
Que até ti vem, ataviado de aromas,
Fiel mensageiro da tua doce amada.

O ar prova os trajes das nuvens
E escolhe um manto negro.
Uma nuvem prenhe de chuva
Acena ao jardim, saúda-o
Vertendo lágrimas nas risonhas flores.

A Terra apressa a nuvem
Para que lhe acabe o manto.
E a nuvem com uma mão
Entretece fios de chuva
E com outra vai-o enfeitando
Com um bordado de flores.

Abu Muhammad 'Abd Allah ibn Muhammad ibn Sara as-Santarini nasceu em Santarém (Portugal) em data incerta e morreu em 1123.

Tradução e escolha de Adalberto Alves, publicada no livro "O meu coração é árabe".

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Cecília Meireles, " Soneto antigo"

Responder a perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.

Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.

O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.

Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Mário de Sá-Carneiro, "Apoteose"

Mastros quebrados, singro num mar d'Ouro
Dormindo fôgo, incerto, longemente...
Tudo se me igualou num sonho rente,
E em metade de mim hoje só moro...

São tristezas de bronze as que inda choro -
Pilastras mortas, mármores ao Poente...
Lagearam-se-me as ânsias brancamente
Por claustros falsos onde nunca óro...

Desci de mim. Dobrei o manto d'Astro,
Quebrei a taça de cristal e espanto,
Talhei em sombra o Oiro do meu rastro...

Findei... Horas-platina... Olor-brocado...
Luar-ânsia... Luz-perdão... Orquideas pranto...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
- Ó pantanos de Mim - jardim estagnado...

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Paulo Silenciário, " Tuas rugas ..."

Tuas rugas, Filina, são preferíveis à seiva toda
      da juventude; desejo ter em minhas mãos
antes os teus pomos pensos sob o peso dos cachos que
      os seios em riste de uma donzela qualquer.
Teu outono é melhor que a primavera de outras, e há mais
      calor em teu inverno do que no estio delas.

Tradução de José Paulo Paes.

Paulo Silenciário foi um poeta bizantino que morreu em Constantinopla entre 575  e 580 d.C.
Alguns dos seus poemas foram preservados na Antologia Palatina.

sábado, 17 de dezembro de 2011

João Cabral de Melo Neto, "Sujam o suicídio"

O pior que existe no suicídio
por limpo que seja, ou de tiro;

ou o suicídio por barbitúricos,
em que a dormir se cruza o muro;

pior que o incômodo resíduo
que se há de tratar como um vivo,

que há de lavar, barbear, pentear,
para a viagem que empreenderá;

o pior que há nele é o palavrório
que enreda o caixão e o velório

na oral, tropical, floração
que saliva a nossa nação.

Na verdade, onde mais o medo
é falador, é nos enterros.

No enterro, falam mesmo os mudos,
e se de suicida, falam duplo.

Ninguém deixa a mínima brecha
para a morte-Rilke, a da Igreja

e de outros que fazem da Porta
uma celebração deleitosa.

O padre sabe: não há fresta
onde a transcendência ele meta

no falatório, mato fechado
que nem pode abrir-se a machado

(Enquanto isso, pensa? o cadáver:
maçada! Não pude evaporar-me;

enfim: não se vende em balcão,
ainda, o suicidar-se de avião).

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Maria Teresa Horta, "Segredo"

Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa

Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço

com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar

nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Juan Ramón Jimenez, "O poema"

                        I

Não voltes a tocar-lhe,
pois assim é a rosa!

                        II

Pela raiz arranco o arbusto
cheio ainda do orvalho da alvorada.

Oh que jorro de terra
olorosa e molhada,
que chuva - que cegueira - de astros
em minha fonte, em meus olhos.

                        III

Cancão minha,
canta, antes de cantar;
dá, a quem te olhar antes de ler-te,
tua emoção e tua graça;
evola-te de ti, fresca e fragrante.


Tradução de José Bento.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

RITMO DISSOLUTO, de Manuel Bandeira.

No Itinerário, assim MB escreve:

"O Ritmo Dissoluto apareceu em 1924 conjuntamente com a segunda edição de “A Cinza das Horas” e “Carnaval”, num volume editado pela Revista de Língua Portuguesa. Causou grande e divertida surpresa nos arraias modernistas aparecer eu, autor de um poema já publicado (“Poética”), onde primitivamente havia este verso “Abaixo a Revista de Língua Portuguesa”, aparecer eu da noite para o dia editado por essa mesma revista. Eis como se tornou possível a coisa. Depois que morreu meu pai, fiquei sem nenhuma esperança de ver em livro os versos que fizera depois de Carnaval. Nunca procurei editores para eles, Ora, aconteceu que um dia, encontrando-me na Livraria Freitas Bastos com Goulart de Andrade, interpelou-me o poeta muito amavelmente: “Então, quando temos novo livro ?” Respondi-lhe que nunca, porque editor não me apareceria, nem eu tinha dinheiro para me editar por conta própria. Ao que Goulart acudiu prontamente: “Pois eu vou lhe arranjar editor”. Não fiz fé que o conseguisse. Dias depois em novo encontro de rua, ouvi-lhe com espanto recomendar-me que procurasse o Laudelino Freire, a quem falara sobre mim e com quem ficara acertado que o meu livro seria editado pela Revista. Assim a publicação do volume Poesias fiquei devendo-a a dois homens a quem atacara: ao poeta que eu satirizara nos “Sapos”, e ao editor contra cuja revista havia gritado “Abaixo!” num poema escandalosíssimo para o tempo (e creio que agora, de novo, para ao menos três trimestres da geração de 45). É verdade que o verso irreverente foi suprimido, mas para ser substituído pelo que lá está:”Abaixo os Puristas!”
O Ritmo Dissoluto é dos meus livros aquele sobre o qual os que apreciam a minha poesia mais discordam.
Para Adolfo Casais Monteiro, que tanto me desvaneceu escrevendo um estudo (Manuel Bandeira, Editorial Inquérito Limitada, Lisboa, 1944), o mais longo dedicado a minha obra poética, nesse livro “o parnasianismo quebrou definitivamente o seu instrumento de bronze; mas o que lhe ficou nas mãos não é um instrumento: são os pedaços com o que há de construir”. E mais adiante, acrescenta: “Em o Ritmo Dissoluto muitas são as poesias sem ritmo de espécie alguma; mais do que ritmo dissoluto portanto ... Mas a maioria delas oscila entre a notação sucessiva de impressões desagregadas uma das outras e a repetição de certos temas já cansados, em que a nota da melancolia se entrelaça com a da voluptuosidade, mas ‘sem poder de convicção’. Há nesse livro não sei o que de morno, de abatido e indiferente; indiferença à poesia como à vida, ausência daquela ressonância aguda ou profunda que é o sinal de que a poesia desceu sobre o poema”. O agudo crítico português confessou que O Ritmo Dissoluto lhe produziu certo mal estar.
Para Octávio de Faria (Estudo sobre Manuel Bandeira em Homenagem a Manuel Bandeira, Rio, 1936), ao contrário, O Ritmo Dissoluto era, dos quatro livros que eu tinha publicado até aquela data (A Cinza das Horas, Carnaval, O Ritmo Dissoluto e Libertinagem), o que mais lhe satisfazia. “É o momento”, explicou, “em que o poeta, vencendo as últimas barreiras da sujeição às regras que o tolhem demais, atinge a sua forma mais agradável.” Diz ainda que lido o livro Libertinagem logo em seguida ao Ritmo Dissoluto, decepciona um pouco; que depois de poesias como”Quando perderes o gosto humilde da tristeza”, “Sob o céu estrelado”, “Carinho Triste” (todas do Ritmo Dissoluto), até “Evocação do Recife”, “Noturno da Rua da Lapa” ou “O impossível carinho” (todas de Libertinagem), não deixam de dar uma impressão de tenuidade, de diminuição de forças, de menor capacidade criadora.
A mim me parece bastante evidente que “O Ritmo Dissoluto” é um livro de transição entre dois momentos da minha poesia. Transição para que ? Para a afinação poética dentro da qual cheguei, tanto no verso livre como nos versos metrificados e rimados, isso do ponto de vista da forma; e na expressão das minhas idéias e dos meus sentimentos, do ponto de vista do fundo, à completa liberdade de movimentos, liberdade de que cheguei a abusar no livro seguinte, a que por isso mesmo chamei Libertinagem. No Ritmo Dissoluto prossegui em certas experiências de Carnaval, como rimas toantes, mistura de versos brancos e versos rimados, versos livres que ainda persiste certo ritmo de medidas e rimados, coisa que depois tomei horror. Devo dizer que figuram nele poemas que são contemporâneos dos de Carnaval ou mesmo anteriores a eles (“Na solidão das noites úmidas”, “Felicidade”, “Mar bravo”, que é de 1913, “A vigília de Hero”, também de 1913 ou 1914, pois escrevi-o em Clavadel, “Quando perderes o gosto humilde da tristeza”). Os demais é que foram compostos a partir de 1921, na Rua do Curvelo ou na Mosela (Petrópolis). (Às influências assinaladas anteriormente há que acrescentar essa da atmosfera de Petrópolis. Dos vinte e quatro poemas que perfazem o Ritmo Dissoluto, oito foram escritos na Mosela. Mas a ação de Petrópolis só se exerce quando estou lá, a ação lenitiva, que atuando sobre a minha sensibilidade, logo me comunica aos versos um manso ritmo de aceitação). Aliás, dois pelo menos dos poemas de O Ritmo Dissoluto são dissolutos de ritmo: “Noite Morta” e “Berimbau”. O primeiro é um dos meus prediletos em minha obra, não sei se porque até hoje guardou para mim a atmosfera do lugar e do momento em que o escrevi, ou se porque, embora em versos-livres, o sinto, na forma, bem mais necessariamente inalterável do que os meus poemas de metro cuidadosamente construído. “Berimbau”, que é de certo modo a minha “Amazônia que ao vi”, está cheio de intenções formais e me recorda um dos maiores prazeres que já tive em minha vida de poeta e foi a atenção com que o ouviu Guilherme de Almeida quando eu disse pela primeira vez o poema ( e só nessa vez o disse bem), poucos dias depois de o ter escrito. À proporção que eu ia recitando, via os olhos de Guilherme que nada lhe escapara dos efeitos que eu ali pusera, por mínimo que fosse. “Berimbau” foi musicado por Jaime Ovalle". 


* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Existem debates que são datados. Por exemplo: as polêmicas do verso livre, rimado ou da métrica. Hoje, lemos poemas da mais variadas formas sem necessidade de tomar posição estética contra ou a favor. Existe um gosto pessoal, mas sem maniqueismos.
Não era o que acontecia na época. Daí a importância de alguns poemas de Ritmo Dissoluto. Acho até que uma parte da obra de MB é a sua luta para se livrar das formas parnasianas e simbolistas.
Porém, da mesma forma que me parece impossível dissociar a Revolução Francesa da quilhotina, também não conseguimos dissociar a conquista da liberdade da forma empreendida por MB de alguns poemas radicais.
Nem por isso somos obrigados a gostar deles, e nem da guilhotina.

Do livro todo, só gosto de um poema, que me parece seja dos mais perfeitos na forma livre. Trata-se de Gesso:

"GESSO

Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova
- O gesso muito branco, as linhas muito puras -
Mal sugeria imagem da vida
(Embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de
                                                                  [pátina amarelo-suja.
Os meus olhos, de tanto a olharem,
Impregnaram-na de minha humanidade irônica de tísico.
Um dia mão estúpida
Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoalhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos,
                                                [recompus a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo
                                                                  [mordente da pátina...

Hoje este gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu. "


O que é possível dizer desse poema ?
Não falo do tema, que é tocante. Nem da forma da composição, onde a partir de uma história até banal, o poeta encerra com esta afirmação forte e repentina:
"Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu."
Falaria - se pudesse - da unidade que ele tem, e da poesia que escapa das suas frases.
Ainda que seja em versos livres e sem ritmo, nenhuma palavra aí está a mais. Considero "Gesso"um dos grandes poemas modernos da língua portuguesa.

domingo, 11 de dezembro de 2011

António Manuel Couto Viana, "Despojo".



E, agora, o que faremos?
A quem legar o que resta
Do simulacro de festa
Que tivemos?
Quem aproveita os detritos
De uma alegria forçada?
Quem confunde aflitos gritos
Com imposta gargalhada?
Iremos por onde alguém
Descubra os nossos farrapos.
Vês flores no jardim de além?
- Vejo sapos.


sábado, 10 de dezembro de 2011























All you need
       is love

 All you want
       is sex

 All you have
       is porn.





Antônio Gomide, "Festa junina".

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Jorge de Lima, "Não procureis nexo naquilo ..."


Não procureis nexo naquilo
que os poetas pronunciam acordados,
pois eles vivem no âmbito intranquilo
em que se agitam seres ignorados.

No meio de desertos habitados
só eles é que entendem o sigilo
dos que no mundo vivem sem asilo
parecendo com eles renegados.

Eles possuem, porém, milhões de antenas
distribuídas por todos os seus poros
aonde aportam do mundo suas penas.

São os que gritam quando tudo se cala,
são os que vibram de si estranhos coros
para a fala de deus que é sua fala.




quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

António Manuel Couto Viana, "O avestruz lírico"


Avestruz:
O sarcasmo de duas asas breves
(Ânsia frustrada de espaço e luz,
De coisas frágeis, líricas, leves).

Patas afeitas ao chão;
Voar ? Até onde o pescoço dá.
Bicho sem classificação:
Nem cá, nem lá.

Isto sou (Dói-me a ironia
-Pudor nem sei eu de quê).
Daí a absurda fantasia
De me esconder na poesia,
Por crer que ninguém a lê.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Juan Ramón Jimenez, "Não roubes ..."


Não roubes
à tua pura solidão
teu ser calado e firme.
Evita o necessário
explicar-te a ti mesmo
contra quase toda gente.
Tu sozinho encherás
inteiramente o mundo.

Tradução de José Bento

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Ibn 'Ammãr, "Fitei intensamente a lua ..."

Fitei intensamente a lua;
Era o teu rosto
Na noite do desespero,
De ti tive abundância
Em tempo de penúria.
Assim vivia em graça
No abrigo que me davas.

Ai, a saudade dessa estima antiga !
Doce era ser sob a tua sombra:
Errava no verde prado
À vista da fonte de água fresca.


Abu Bakr Muhammad ibn 'Ammãr nasceu em Estombar, na região de Silves (atualmente Portugal), em 1031 e morreu em 1084.
Poema copiada do excelente livro "O meu coração é Árabe", de Adalberto Alves, onde o autor recolheu e traduziu poemas de autores árabes que viveram na Península Ibérica durante a ocupação dos mouros.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Li Tai-Po, "Lamento da Escada de jade"


A concubina não é mais jovem. Cada vez menos solicitada, raramente sobe a Escada de Jade que leva ao quarto do Imperador.


Nos degraus da escada de jade
                          já rolam
                          as pérolas do orvalho
                                               que vai molhar
                                 suas sapatilhas de seda
                                      durante toda a noite.

                                                        Na alcova,
                                               ela corre a cortina de cristal
                                          e olha a lua de outono
                                                    ondulando.


Li Tai-Po, ou Li Po, foi um poeta chinês da Dinastia Tang, que viveu entre os anos 701 e 762.
Tradução de Décio Pignatari, pontuada por mim.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Luis de Camões, "Busque Amor novas artes ..."


Busque Amor novas formas, novo engenho
Para matar-me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal pode tirar-me o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho *.

Mas, enquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei com e dói não sei porquê.

*  lenho  - Navio, nau, embarcação.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Mário de Sá-Carneiro, "Caranguejola "


- Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

 Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira
- Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

 Não, não estou para mais - não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com este enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar...

 Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor
- P'lo menos era o sossego completo... História!                                                                                               [Era a melhor das vidas...

 Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
- Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...

 De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom edrédon, bom fogo
- E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

 Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co'a breca! Levem-me prà enfermaria!
- Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará.

 Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno                                                                                              [e tranquilo;
Em Paris, é preferível - por causa da legenda...
Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda
- E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...

- Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora, no meu quarto é que tu não entras, mesmo                                                                                              [com as melhores maneiras:
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

João Cabral de Melo Neto, "O urubu mobilizado"

Durante as sêcas do Sertão, o urubu
de urubu livre, passa a funcionário.
O urubu não retira, pois prevendo cedo
que lhe mobilizarão a técnica e o tacto,
cala os serviços prestados e diplomas,
que o enquadrariam num melhor salário,
e vai acolitar os empreiteiros da seca,
veterano, mas ainda com zelos de novato:
aviando com eutanásia o morto incerto,
êle, que no civil que o morto claro.

                                           2

Embora mobilizado, nesse urubu em ação
reponta logo o perfeito profissional.
No ar compenetrado, curvo e conselheiro,
no todo de guarda-chuva, na unção clerical,
Com que age, embora em pôsto subalterno:
êle, um convicto profissional liberal.

sábado, 26 de novembro de 2011

Mariana Botelho, "Abstrato"

eu nunca beijei um poema.

no entanto ele está aqui
roçando leve minha
boca

nas horas dos
mais
doídos
silêncios

Mariana Botelho publica seus poemas no blog http://quelevequenada.blogspot.com/

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Alexandre O'Neill, "Portugal"


Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há “papo-de-anjo” que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós... 

 

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Wislawa Szymborska


















Alguns -
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola, onde é obrigatório
e os próprios poetas,
seriam talvez uns dois em mil.

Gostam -
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se da galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.

De poesia -
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isto
como a uma tábua de salvação.

Tradução de Regina Przybycien

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Poema de Judith Teixeira e desenho de Di Cavalcanti
























"Flores de Cactus"

Flores de cactus resplandecentes,
Espelhantes, encarnadas!
Rubras gargalhadas
De cortesãs…
Embriagam-se de sol,
Pelas doiradas manhãs,
Viçosas e ardentes!

Bela flor imprudente!
Brilha melhor o sol rutilante
Nas suas pétalas vermelhas…
É sugestivo
O ar insolente
E petulante,
Como se deixam morder
Pelas doiradas abelhas!

Nascem para ser beijadas
E possuídas
Pelo sol abrasador…
Lascivas,
Predestinadas
Para os mistérios do amor!

Eu gosto desta flor pagã
E sensual,
Que num místico ritual
Se entrega toda aberta
Aos beijos fulvos do sol!

Oh! Flor do cactus enrubescida!
No teu vermelho, há sangue, há vida…
- E eu tenho uma enorme sede de viver!

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

domingo, 20 de novembro de 2011

Mário de Sá-Carneiro, "Escavação"


Numa ânsia de ter alguma coisa,
Divago por mim mesmo a procurar,
Desço-me todo, em vão, sem nada achar;
E a minh'alma perdida não repousa.

Nada tendo, decido-me a criar:
Brando a espada: sou luz harmoniosa
E chama genial que tudo ousa
Unicamente à força de sonhar...

Mas a vitória fulva esvai-se logo...
E cinzas, cinzas só, em vez de fogo...
– Onde existo que não existo em mim?

............................................................
............................................................

 Um cemitério falso sem ossadas,
Noites d'amor sem bocas esmagadas
– Tudo outro espasmo que princípio ou fim....

sábado, 19 de novembro de 2011

Ferreira Gullar, "O corpo"

De que vale tentar reconstruir com palavras
O que o verão levou
Entre nuvens e risos
Junto com o jornal velho pelos ares

O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo da noite
Agora são apenas esta
contração (este clarão)
do maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Alexandre O'Neill, " A meu favor"

A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Joaquim Cardozo, "Soneto do suicida"

Com minhas próprias mãos abro esta porta
Que dá para o jardim do esquecimento
Onde vejo a cisterna e vejo a horta
De água e fruto inválidos. Movimento

De asas infinitas os ares corta
E fecha o meu aberto pensamento
No ponto essencial da linha torta
Que do ser é limite e acabamento.

Com minhas próprias mãos cultivo a terra
Da morte: a terra ex-terra, a finis terra,
E o adubo da Imemória manuseio.

O gesto de lançar uma semente
É como um gesto de adeus; só e ausente,
Neste jardim eu próprio me semeio.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Mar, metade da minha alma..."


Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.

E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.

domingo, 13 de novembro de 2011

Drummond, "Resíduos"

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Nelson Ascher, "Homecoming"

Estar em meu país
e deduzir num golpe
de vista quem é o quê,
se gay ou se opus dei,

mais isto ainda é fácil,
algo exequível quer
nos parques, quer nos becos
de Osasco ou nos de Osaka.

Estar em meu país
é ser, desde o primário,
íntimo de alguém antes
de ser-lhe apresentado,

mas isto num país
mais incestuoso até
do que a menor das tribos
perdidas, ainda é fácil.

Estar em meu país
é de antemão poder
dizer quem faz o quê
e o que faria caso

pudesse, mas às vezes
parece (e constatá-lo
é fácil) que não há
ninguém fazendo nada.

Estar em meu país
é tanto intuir sem dúvida
quem é quem como ver
quem quer passar por quem,

embora, a rigor, isto
talvez se deva à idade
e, após alguma prática,
nem chegue a ser difícil.

Estar em meu país,
mais que saber por que
qualquer estranho pensa
saber tudo o que penso,

tem algo mais difícil
que o dom fácil de sempre
frustrá-lo e é simplesmente
estar em meu país.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Eugénio de Andrade , "As Amoras"

O meu país sabe as amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Mário Cesariny recitando parte do poema "Quase", de Mário de Sá-Carneiro.



Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
..................................
..................................

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Camões, "Transforma-se o amador na cousa amada"

Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si sómente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como matéria simples busca a forma.

sábado, 5 de novembro de 2011

Yves Bonnefoy, "A beleza"

Aquela que arruina o ser, a beleza,
Será supliciada, posta na roda,
Desonrada, dita culpada, feita sangue
E grito, e noite, de toda alegria despossuída,
– Oh dilacerada em todas as grades de antes da alvorada,
Oh pisoteada em toda estrada e atravessada,
Nosso alto desespero será que tu vivas,
Nosso coração que sofras, nossa voz
Humilhar-te entre tuas lágrimas, chamar-te
A mentirosa, a provedora do céu negro,
Nosso desejo no entanto sendo teu corpo infirme,
Nossa pena esse coração que leva a toda lama.

Copiado do site http://antoniocicero.blogspot.com/

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

José Régio, "Declaração"

Teorias são brinquedos
Que, por mim, não tomo a sério.
Tomo a sério os meus enredos.
Crer... só sei crer no Mistério.
De doutrinas não me importo!
Sinto-me bem no mar alto.
Só me recolho ao meu porto.
Convidam-me, e sempre eu falto.
De escolas, não sou aluno.
Se comunico, é em verso.
Sou muito diverso,
E uno.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Vinícius de Moraes, "Não comerei da alface ..."

Não comerei da alface a verde pétala
Nem da cenoura as hóstias desbotadas
Deixarei as pastagens às manadas
E a quem mais aprouver fazer dieta.

Cajus hei de chupar, mangas-espadas
Talves pouco elegantes para um poeta
Mas pêras e maçãs, deixo-as ao esteta
Que acredita no cromo das saladas.

Não nasci ruminante como os bois
Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro; dêem-me feijão com arroz

E um bife, e um queijo forte, e parati
E eu morrerei, feliz, do coração
De ter vivido sem comer em vão.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Mário Cesariny, "Pastelaria"

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos
frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir
de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

domingo, 30 de outubro de 2011

Carlos Drummond de Andrade, "A grande dor das cousas que passaram"

A grande dor das cousas que passaram
transmutou-se em finíssimo prazer
quando, entre fotos mil que se esgarçavam,
tive a fortuna e graça de te ver.

Os beijos e os amavios que se amavam,
descuidados de teu e meu querer,
outra vez reflorindo, esvoaçaram
em orvalhada luz de amanhecer.

Ó bendito passado que era atroz,
e gozoso hoje terno se apresenta
e faz vibrar de novo minha voz

para exaltar o redivivo amor
que de memória-imagem se alimenta
e em doçura converte o próprio horror!

Este soneto de Drummond conversa com o de Camões que eu postei em 26 de outubro de 2011.

sábado, 29 de outubro de 2011

Ferreira Gullar, "Prometi-me possuí-la ..."

Prometi-me possuí-la muito embora
ela me redimisse ou me cegasse.
Busquei-a na catástrofe da aurora,
e na fonte e no muro onde sua face,

entre a alucinação e a paz sonora
da água e do musgo, solitária nasce.
Mas sempre que me acerco vai-se embora
como se me temesse ou me odiasse.

Assim persigo-a, lúcido e demente.
Se por detrás da tarde transparente
seus pés vislumbro, logo nos desvãos

das nuvens fogem, luminosos e ágeis!
Vocabulário e corpo – deuses frágeis -
eu colho a ausência que me queima as mãos.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Cecília Meireles, "Mulher ao espelho"

Hoje que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus,
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram-se sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Camões, "A grande dor das cousas que passaram"

Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso dos meus anos;
Dei causa a que a fortuna castigasse
As minhas mais fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Gênio de vinganças!

Rubem Braga dizia que o verso "A grande dor das cousas que passaram" era um dos maiores de Camões, por sua beleza ser toda construída com palavras corriqueiras da nossa língua.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Ivan Junqueira, "Mater dolorosa "

Entre os túmulos e os dobres
é que vens, lenta e lutuosa,
nas mãos o cântaro e a rosa
que, defunta, já não colhes.

São teus olhos duas covas,
como as dos crânios, inóspitas,
mas eis que delas escorre
o que a morte não encobre:

essas lágrimas que bóiam
à tona do que, sem bordas,
foi outrora a tua história
e agora é o pó dos espólios.

Úmido é o húmus da morgue
e do catre em que te encolhes,
como se o frio, em teus ossos,
queimasse mais que uma forja.

Muda e estóica até na cólera,
resta a cinza dos teus fogos.
E o que de mim ainda sobra
busca a tumba do teu colo.

domingo, 23 de outubro de 2011

Alceu Wamosy, "Desiludido"

Por que te hás de aquecer ao sol dessa esperança
nova, que despontou na tua alma ingênua e crente?
Se ela é como sorriso em lábio de criança,
que se há de transformar em pranto, de repente…

A ventura completa, é céu que não se alcança,
mas que a gente vislumbra, além, perpetuamente:
esse céu mentiroso, é um céu que foge e avança,
se é maior ou menor a aspiração da gente.

Sê simples e sê bom, mas não julgues que um dia,
hás de o teu coração, repleto de alegria,
para sempre fechar, como quem fecha um cofre!

Crê que a desilusão é o sonho pelo avesso,
e que só se é feliz, dando-se o mesmo apreço
ao gozo que se goza, e à mágoa que se sofre!

sábado, 22 de outubro de 2011

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Camões, "Eu cantarei de amor tão docemente ..."

Eu cantarei de amor tão docemente,
por uns termos em si tão concertados,
que dois mil acidentes namorados
faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,
pintando mil segredos delicados,
brandas iras, suspiros magoados,
temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
de vossa vista branda e rigorosa,
contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, para cantar de vosso gesto
a composição alta e milagrosa,
aqui falta saber, engenho e arte.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Vinícius de Moraes









"Copacabana"

Esta é Copacabana, ampla laguna
Curva e horizonte, arco de amor vibrando
Suas flechas de luz contra o infinito.
Aqui meus olhos desnudaram estrelas
Aqui meus braços discursaram à lua
Desabrochavam feras dos meus passos
Nas florestas de dor que percorriam.
Copacabana, praia de memórias!
Quantos êxtases, quantas madrugadas
Em teu colo marítimo!

- Esta é a areia

Que eu tanto enlameei com minhas lágrimas
- Aquele é o bar maldito. Podes ver
Naquele escuro ali? É um obelisco
De treva - cone erguido pela noite
Para marcar por toda a eternidade
O lugar onde o poeta foi perjuro.
Ali tombei, ali beijei-te ansiado
Como se a vida fosse terminar
Naquele louco embate. Ali cantei
À lua branca, cheio de bebida
Ali menti, ali me ciliciei
Para gozo da aurora pervertida.

Sobre o banco de pedra que ali tens
Nasceu uma canção. Ali fui mártir
Fui réprobo, fui bárbaro, fui santo
Aqui encontrarás minhas pegadas
E pedaços de mim por cada canto.
Numa gota de sangue numa pedra
Ali estou eu. Num grito de socorro
Entreouvido na noite, ali estou eu.
No eco longínquo e áspero do morro
Ali estou eu. Vês tu essa estrutura
De apartamento como uma colmeia
Gigantesca? em muitos penetrei
Tendo a guiar-me apenas o perfume
De um sexo de mulher a palpitar
Como uma flor carnívora na treva.
Copacabana! ah, cidadela forte
Desta minha paixão! a velha lua
Ficava de seu nicho me assistindo
Beber, e eu muita vez a vi luzindo
No meu copo de uísque, branca e pura
A destilar tristeza e poesia.
Copacabana! réstia de edifícios
Cujos nomes dão nome ao sentimento!
Foi no Leme que vi nascer o vento
Certa manhã, na praia. Uma mulher
Toda de negro no horizonte extremo
Entre muitos fantasmas me esperava:
A moça dos antúrios, deslembrada
A senhora dos círios, cuja alcova
O piscar do farol iluminava
Como a marcar o pulso da paixão
Morrendo intermitentemente. E ainda
Existe em algum lugar um gesto alto,
Um brilhar de punhal, um riso acústico
Que não morreu. Ou certa porta aberta
Para a infelicidade: inesquecível
Frincha de luz a separar-me apenas
Do irremediável. Ou o abismo aberto
Embaixo, elástico, e o meu ser disperso
No espaço em torno, e o vento me chamando
Me convidando a voar... (Ah, muitas mortes
Morri entre essas máquinas erguidas
Contra o Tempo!) Ou também o desespero
De andar como um metrônomo para cá
E para lá, marcando o passo do impossível
À espera do segredo, do milagre
Da poesia.

Tu, Copacabana,
Mais que nenhuma outra foste a arena
Onde o poeta lutou contra o invisível
E onde encontrou enfim sua poesia
Talvez pequena, mas suficiente
Para justificar uma existência
Que sem ela seria incompreensível.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Sosígenes Costa, "O pavão vermelho"

Ora, a alegria, este pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.

Clarim de lacre, este pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.

É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
neste pavão pomposo e de chavelho.

Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei este pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Hilda Hilst, "Eu era parte da noite..."

Eu era parte da noite e caminhava
Adusta e austera
Sem luz nem aventurança.
Tu eras praia e dia
Um fogo branco
O rosto da montanha sobre a terra.

E juntamos a treva
Ao mar do meio-dia
Cristas aguadas, pontas
Trilhas fosflorescentes
Na vastidão das sombras

Mas um instante apenas.

Por isso é que caminho como antes
Adulta e austera.
Acrescida de véus me mostro aos viajantes:
Vês a mulher, aquela?
Dizem que a cara é de caliça e pedra.
Que a luz das ilusões passou por ela.

sábado, 15 de outubro de 2011

Paulo Mendes Campos, "Congo"

Tua alma, minha amiga, é como a Bélgica suavizada de canais, mas a minha é como o Congo violentado, duma liberdade malnascida. Miséria misteriosa de meu sangue, suor negro de minha morte, martírio milenar de minh’alma, meu amor. A Bélgica é como a tua alma suave. O Congo é tumulto impenetrável, floresta de lama, felino ferido. Estou ao Norte, ao Sul, a Leste, a Oeste, crucificado em províncias paralíticas, em subúrbios de barro, onde se arrastam bestas mal abatidas, mulambos de Lisala, senzalas de Lusambo, Usumbara profunda com seu zabumba fúnebre, Inongo, Malonga – minha’alma. Mas a tua é suave de canais. Um crime se articula na aldeia petrificada, um guerreiro de lança percorre o vale ardente. Mas em tua alma, minha amiga, há um príncipe melancólico pendido para o crepúsculo. No Congo, violência, vingança, o ídolo vestuto que se estraçalha, o pântano de sangue, o voo do corvo, o rio da raiva, a garra do belga, a madrugada de carvão, a cova de Cristo, a luz de Lumumba. Na Bélgica, a suavidade dos canais, meu amor.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Paulo Henriques Britto, "Fisiologia da composição - V"

É preciso que haja uma estrutura,
uma coisa sólida, consistente,
artificial, capaz de ficar
sozinha em pé (não necessariamente
exatamente na vertical), dura

e ao mesmo tempo mais leve que o ar,
senão não sai do chão. E a graça toda
da coisa, é claro, é ela poder voar,
feito um balão de gás, e sem que exploda

na mão, igual a um fogo de artifício
que deu chabu. Não. Tem que ser na altura
de um morro, no mínimo, ou de um míssil

terra-a-ar. Sim. Menos arquitetura
que balística. É claro que é difícil.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Jorge Luis Borges




















"A fama"

Ter visto Buenos Aires crescer, crescer e declinar.
Lembrar o pátio de terra e a parreira, o átrio e o algibe.
Ter herdado o inglês, ter interrogado o saxão.
Professar o amor ao alemão e a nostalgia do latim.
Ter conversado em Palermo com um velho assassino.
Agradecer o xadrez e o jasmim, os tigres e o hexâmetro.
Ler Macedonio Fernández com a voz que foi sua.
Conhecer as ilustres incertezas que são a metafísica.
Ter honrado espadas e sensatamente desejar a paz.
Não ser cobiçoso de ilhas.
Não ter saído de minha biblioteca.
Ser Alonso Quijano sem me atrver a ser Dom Quixote.
Ter ensinado o que não sei a quem saberá mais do que eu.
Agradecer os dons da lua e de Paul Verlaine.
Ter urdido um ou outro decassílabo.
Ter voltado a contar velhas histórias.
Ter disposto no dialeto do nosso tempo cinco ou seis metáforas.
Ter eludido subornos.
Ser cidadão de Genebra, de Montevidéu, de Austim e
                                                [(como todos os homens) de Roma.
Ser devoto de Conrad.
Ser essa coisa que ninguém pode definir: argentino.
Ser cego.
Nenhuma dessas coisas é estranha e seu conjunto me depara
                        [uma fama que não consigo compreender.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Paulo Mendes Campos, "Litogravura"

Eu voltava cansado como um rio.
No Sumaré altíssimo pulsava
a torre da tevê, tristonha, flava.
Não: voltava humilhado como um tio
bêbado chega à casa de um sobrinho.
Pela ravina, lento, lentamente,
feria-se o luar, num desalinho
de prata sobre a Gávea de meus dias.
Os cães quedaram quietos bruscamente.
Foi no tempo dos bondes: vi um deles
raiar pelo Bar Vinte, borboleta
flamante, touro rútilo, cometa
que se atrasa no cosmo e desespera:
negra, na jaula em fuga, uma pantera.

Passei a mão nos olhos: suntuosa,
negra, na jaula em fuga, ia uma rosa.

domingo, 9 de outubro de 2011

Sophia de Mello Breyner Andresen, "O poema"


O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

sábado, 8 de outubro de 2011

Jorge de Sena, "Homenagem a Tomás Antonio Gonzaga"

Gonzaga: podias não ter dito mais nada,
não ter escrito senão insuportáveis versos
de um árcade pedante, numa língua bífida
para o coloquial e o latim às avessas.

Mas uma vez disseste:
“eu tenho um coração maior que o mundo”.
Pouco importa em que circunstâncias o disseste:

Um coração maior que o mundo —
uma das mais raras coisas
que um poeta disse.

Talvez que a tenhas copiado
de algum velho clássico. Mas como
a tu disseste, Gonzaga! Por certo

que o teu coração era maior que o mundo:
nem pátrias nem Marílias te bastavam.

(Ainda que em Moçambique, como Rimbaud na Etiópia,
engordasses depois vendendo escravos).