terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Cecília Meireles, "Tempo viajado"


Dos meus retratos rasgados
me recomponho,
com minhas espumas de acaso,
meus solos vivos de fogo.

Muito se sofre.
As doces uvas sabem a enxofre.

Vulcões mordem as raízes
das minhas plantas.
Em barcos postos a pique,
naufragaram minhas lembranças.

Dizei-me por que lugares
que pastores pastoreiam
até sempre estas saudades
a mim mesmo tão alheias.

Muito se pena.
E vimos na areia morrer a sirena.

Procuro pelo meu rosto
o tempo que se desprende.
que agulhas de desencontro
separaram minha gente?

Dos meus retratos rasgados
me levanto.
E acho-me toda em pedaços,
e assim mesmo vou cantando.

Muito se perde:
pela terra negra ou pela água verde.

(Se Deus agora me visse,
abaixaria seus olhos
e ficaria mais triste.)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Camilo Pessanha, "Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho..."


Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
Onde esperei morrer, meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear - tábua tosca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
- Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...

Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais,
Alma da minha mãe... Não andes mais à neve,
De noite a mendigar às portas dos casais.

domingo, 29 de janeiro de 2017

sábado, 28 de janeiro de 2017

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Eu me perdi"


Eu me perdi na sordidez de um mundo
Onde era preciso ser
Polícia, agiota, fariseu
Ou cocote

Eu me perdi na sordidez do mundo
Eu me salvei na limpidez da terra

Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Augusto dos Anjos, "Eterna mágoa"


O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga

Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo Inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Alexei Bueno, "IIº poema das 'Três Visões Horizontais do Destino'"


A terra enxerga por viseiras destruídas
E rijos ferros dormem fundo após a guerra
Dentro de homens que se esquecem das partidas
Como o silêncio em cada boca que não berra.

Escudos, lanças, armaduras divididas
E uma espada em pé cravada sobre a terra
Lembrando cruz após a indulgência das feridas
Que já não doem numa carne que se encerra.

Antes da luta cada um lá estava certo
Que viveria após ter tudo se acabado,
Mas já ninguém se desilude no deserto.

E nem há dor para quem não vê como a hora falha
E como é o corpo conduzido ao golpe errado
Pelo destino que se rompe igual à malha.


terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Antonio Cicero, "O fim da vida"


Conhece da humana lida
a sorte:
o único fim da vida
é a morte
e anão há, depois da morte,
mais nada.
Eis o que torna esta vida
sagrada:
ela é tudo e o resto, nada.


segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

domingo, 22 de janeiro de 2017

Fernando Pessoa, "Abertura do itinerário"


Estes livros de versos juntos são
Uns Grandes Armazéns da Sensação
Onde o leitor casual encontrará
O que convenha a qualquer impressão,
Ou, talvez, o que nunca convirá.

E, assim, terá, com muito de profundo,
E alguma coisa de incompreensível,
Um razoável espectáculo do mundo,
Em várias formas de ilusão e nível,
E sentirá, se não for insensível.

Mas, verdadeiramente, quem lê versos
Lê só a própria alma, e eu não tenho
A certeza de que entre os meus diversos
Modos, consiga não ser estranho
Ao casual leitor que perco ou ganho.

Ninguém vê senão a alma em que ermo habita
Ninguém conhece senão quem nasceu.
Nos Armazéns que ofereço requisita
Quem quiser o que quer, e não medita
Que, apesar de ser tudo, eu sou só eu.

Sim, isolados, e não só no espaço,
Entre alma e alma não há nenhum laço,
E o que dizemos nunca é compreendido.
Reste ao menos em mim um som de passo
De viandante nem visto nem ouvido.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Eucanaã Ferraz, "Exorbitar amontoar"


vou chamá-lo assim a nossa história: a nossa história

de amor, que, escrita em mensagens eletrizantes, plasmou-se
em relâmpagos no espelho do velho computador; acredite,
nosso amor que morreu resiste tecnicamente em disquetes
depois de quase todo apagado de nossa memória.

da sua pelos menos,

e sonâmbulo continua, mesmo perdido em montanhas
de nada e nada; viverá assim por centenas de anos;
desaparecera, portanto, muito tempo depois de nós
próprios termos desparecido,

nossa história de amor, eternizada no lixo.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Ruy Espinheira Filho, "Soneto da Contemplação"


O dia raiou azul
e há coqueiros e mar,
noutro dia eu sairia
para andar e navegar,

mas não neste dia em que
quero apenas contemplar
esse azul amplo do céu,
e os coqueiros, e o mar.

É tudo o que quero agora,
desejando não ter fim
a doçura desta hora

em que a alma está suave assim,
e o mundo tão bem lá fora
que não precisa de mim.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Teixeira de Pascoaes, "Poeta"


Quando a primeira lágrima aflorou
Nos meus olhos, divina claridade
A minha pátria aldeia alumiou
Duma luz triste, que era já saudade.

Humildes, pobres cousas, como eu sou
Dor acesa na vossa escuridade...
Sou, em futuro, o tempo que passou;
Em num, o antigo tempo é nova idade.

Sou fraga da montanha, névoa astral,
Quimérica figura matinal,
Imagem de alma em terra modelada.

Sou o homem de si mesmo fugitivo;
Fantasma a delirar, mistério vivo,
A loucura de Deus, o sonho e o nada.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Mário de Sá-Carneiro, "Último soneto"


Que rosas fugitivas foste ali!
Requeriam-te os tapetes, e vieste...
- Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.

Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste!
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi...

Pensei que fosse o meu o teu cansaço -
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava...

E fugiste... Que importa? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?

domingo, 15 de janeiro de 2017

Almeida Garrett, "Este inferno de amar ..."


Este inferno de amar - como eu amo! -
Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida - e que a vida destrói -
Como é que se veio a atear,
Quando - ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... - foi um sonho -
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei...

sábado, 14 de janeiro de 2017

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Cecília Meireles, "Tenho pena de estar contigo..."


Tenho pena de estar contigo,
 de SABER-TE. - Por isso, digo:
Nada se pode comparar
à dor de já não mais te amar.

Escuros dias tenho visto,
e amargas noites sem socorro.
- Nada que fosse igual a isto!

Ficaram-me os olhos na cara,
por muito que chorasse! E morro
vendo quem és, ó imagem cara!

Não merecia tal castigo,
meu coração! Por isso, digo:
Nada se pode comparar
à dor de já não mais te amar!

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Sóror Violante do Céu, "Ao amado ausente"


Se apartada do corpo a doce vida,
Domina em seu lugar a dura morte,
De que nasce tardar-me tanto a morte,
Se ausente d'alma estou, que me dá vida?

Não quero sem Sylvano já ter vida,
Pois tudo sem Sylvano é viva morte;
Já que se foi Sylvano venha a morte,
Perca-se por Sylvano a minha vida.

Ah, suspirado ausente, se esta morte
Não te obriga a querer vir dar-me vida,
Como não me vem dar a mesma morte?

Mas se n'alma consiste a própria vida,
Bem sei que se me tarda tanto a morte,
Que é porque sinta a morte de tal vida.


Violante da Silveira ou Violante de Montesino nasceu em 1601 e faleceu em 1693.  
Passou a chamar-se Sóror Violante do Céu após entrar para um convento de freiras enclausuradas aos trinta anos de idade.
Consta que não exilou-se da vida mundana por vocação, mas para se proteger de sentimentos amorosos que a arrebataram e fizeram sofrer.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Cecília Meireles, "Ninguém me venha dar vida"


Ninguém me venha dar vida,
que estou morrendo de amor,
que estou feliz de morrer,
que não tenho mal nem dor,
que estou de sonho ferida,
que não me quero curar,
que estou deixando de ser
e não me quero encontrar,
que estou dentro de um navio
que sei que vai naufragar,
já não falo e ainda sorrio,
porque está perto de mim
o dono verde do mar
que busquei desde o começo,
e estava apenas no fim.

Corações, por que chorais?
Preparai meu arremesso
para as algas e os corais.

Fim ditoso, hora feliz:
guardai meu amor sem preço,
que só quis a quem não quis.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Alexei Bueno, "La mort des pauvres"


É muito ruim morrer tendo dinheiro,
Podendo, salvo, ir rápido a Paris.
Almoçar no Vefour, beber inteiro
Um lote de Bordeaux. Flanar, feliz,

No cais. Comprar um Dürer verdadeiro,
Uns bronzes do Ceilão, a flor-de-lis
De ouro real sobre um códice em carneiro,
Uns vasos gregos, e aí tomar pastis*...

Bom é morrer falido, endividado,
Cortados gás e luz, o nome imundo
Na praca, todo o crédito negado.

E, num nicho que alugue algum parente,
Mors omnia solvit**, no mais vagabundo
Caixão ser sepultado inadimplente.


* Pastis é o nome dado às bebidas alcoólicas aromatizadas com anis.

**mors omnia solvit  é uma locução latina que diz "a morte resolve tudo".
No Direito Penal, é usada  com o sentido de "a morte do agente extingue a sua punibilidade".

sábado, 7 de janeiro de 2017

Lúcio Cardoso, "Poema"


Eu vi seu olhar deslizar sobre meus sentidos;
sua compreensão penetrar no mistério do meu ser,
e águas douradas cantar o salmo da minha devoção
quando teu cabelo rolou e a noite absorveu meu presente.

Eu vi sua alma agitar-se na retentiva em sangue
que é a face do meu corpo;
seu espírito debater-se nos meus punhos de ferro
e ajoelhar como o vencido que aguarda o inevitável.

Eu vi a cor dos fogos que relampejavam na sua noite;
a têmpera dos seus fusíveis na minha comoção de homem;
a avalanche que brotou do alto e lapidou meus pés.

Eu vi a música que transtornou seus astros
e fez do meu silêncio o Grande Mar;
o grito naufragado no desejo que não partiu...

.................................................................................
Eu vi tudo na tarde, mas ela já não existe.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Hilda Hilst, VIII º poema da série AMAVISSE "Guardo-vos manhãs de terracota e azul..."


Guardo-vos manhãs de terracota e azul
Quando o meu peito tingido de vermelho
Vivia a dissolvência da paixão.
O capim calcinado das queimadas
Tinha o cheiro da vida, e os atalhos
Estreitos tinham tudo a ver com o desmedido
E as águas do universo se faziam parcas
Para afogar meu verso. Guardo-vos, Iluminadas
Recendentes manhãs tão irreais no hoje
Como fazer nascer girassóis do topázio
E dos rubis, romãs.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Manuel Maria Barbosa du Bocage, "Fiei-me nos sorrisos da ventura..."


Fiei-me nos sorrisos da ventura,
Em mimos feminis, como fui louco!
Vi raiar o prazer; porém tão pouco
Momentâneo relâmpago não dura:

No meio agora desta selva escura,
Dentro deste penedo húmido e ouco,
Pareço, até no tom lúgubre, e rouco
Triste sombra a carpir na sepultura:

Que estância para mim tão própria é esta!
Causais-me um doce, e fúnebre transporte,
Áridos matos, lôbrega floresta!

Ah! não me roubou tudo a negra sorte:
Inda tenho este abrigo, inda me resta
O pranto, a queixa, a solidão e a morte.

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Fernando Pessoa - Álvaro de Campos, "Pecado original"


Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?
Será essa, se alguém a escrever,
A verdadeira história da humanidade.

O que há é só o mundo verdadeiro, não é nós, só o mundo;
O que não há somos nós, e a verdade está aí.

Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.

Que é daquela nossa verdade — o sonho à janela da infância?
Que é daquela nossa certeza — o propósito a mesa de depois?

Medito, a cabeça curvada contra as mãos sobrepostas
Sobre o parapeito alto da janela de sacada,
Sentado de lado numa cadeira, depois de jantar.

Que é da minha realidade, que só tenho a vida?
Que é de mim, que sou só quem existo?

Quantos Césares fui!

Na alma, e com alguma verdade;
Na imaginação, e com alguma justiça;
Na inteligência, e com alguma razão —
Meu Deus! meu Deus! meu Deus!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

domingo, 1 de janeiro de 2017

Konstantinus Kaváfis, "Cinzentos"


Olhando uma opala meio cinzenta,
lembrei-me de dois belos olhos cinzentos
que vi; isto deve fazer vinte anos...
..................................................................
Por um mês nos amamos.
Depois, ele partiu, creio que para Esmirna,
para aí trabalhar, e nunca mais nos vimos.

Devem ter-se afeado - se ele vive - os olhos cinzentos;
deve ter-se estragado o belo rosto.

Memória minha, conserva-os tu como eram.
E o que possas, memória, desse meu amor,
o que possas traze-me de volta esta noite.