domingo, 31 de março de 2013

John Keats, trecho do poema "Endymion"


(Esta postagem é para a minha amiga K. do Incompletudes
http://incompletudes.wordpress.com/ )


O que é belo há de ser eternamente 
Uma alegria, e há de seguir presente. 
Não morre; onde quer que a vida breve 
Nos leve, há de nos dar um sono leve, 
Cheio de sonhos e de calmo alento. 
Assim, cabe tecer cada momento 
Nessa grinalda que nos entretece
À terra, apesar da pouca messe*
De nobres naturezas, das agruras, 
Das nossas tristes aflições escuras, 
Das duras dores. Sim, ainda que rara, 
Alguma forma de beleza aclara
As névoas da alma. O sol e a lua estão 
Luzindo e há sempre uma árvore onde vão 
Sombrear-se as ovelhas; cravos, cachos
De uvas num mundo verde; riachos 
Que refrescam, e o bálsamo da aragem 
Que ameniza o calor; musgo, folhagem, 
Campos, aromas, flores, grãos, sementes, 
E a grandeza do fim que aos imponentes 
Mortos pensamos recobrir de glória,
E os contos encantados na memória: 
Fonte sem fim dessa imortal bebida 
Que vem do céu e alenta a nossa vida.

* messe - colheita

Tradução de Augusto dos Campos.


sábado, 30 de março de 2013

Maria Victoria Atencia













"A cabra-cega"

Deixada neste mundo, tenteio* seus contornos
sem lenço que me cegue, como naquele jogo
que em menina aprendi. Torpe, apalpo palavras
e reconstruo gestos em busca de um estímulo
que me mantenha viva,
desde que surge o sol até ao seu ocaso.

Peço luz sem saber que não me é necessária
pois seus raios não chegam onde a sombra reside.
Peço pão e encontro pedras para a boca.
De uma esquina à outra deste corpo me invade
a amargura com crescente viscosidade morna.
Se eu encontrasse um vale, erguia aí a tenda.

Tradução de José Bento

* Tenteio - do verbo tentear:calcular, avaliar, sondar, examinar.

quinta-feira, 28 de março de 2013

quarta-feira, 27 de março de 2013

José Angel Valente, "O Adeus"


Entrou e inclinou-se até beijá-la
porque dela recebia a força.

(A mulher olhava-o sem resposta.)

Havia um espelho umedecido 
que imitava a vida vagamente.
Apertou a gravata,
o coração,
engoliu o café desvanecido e turvo,
explicou seus projetos
para hoje,
seus sonhos para ontem, seus desejos
para nunca mais.

(Silenciosa, ela contemplava-o.)

Falou de novo. Recordou a luta
de tantos dias e o amor
passado. A vida é algo inesperado,
disse (As palavras mais frágeis do que nunca.)
Por fim calou-se com o silêncio dela,
aproximou-se de seus lábios
e chorou simplesmente sobre aqueles
lábios já para sempre sem resposta.

Tradução de José Bento.


segunda-feira, 25 de março de 2013

Manuel Maria Barbosa du Bocage, "Incultas produções da mocidade..."


Incultas produções da mocidade
Exponho a vosso olhos, ó leitores:
Vede-as com magoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores.

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração de seus favores.

E se entre versos mil de sentimento
Encontrares alguns cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.

sábado, 23 de março de 2013

sexta-feira, 22 de março de 2013

Jorge Luis Borges, "Para uma versão do i ching"


Nosso futuro é tão irrevogável
Quanto o rígido ontem, Não há nada
Que não seja uma letra calada
Da eterna escritura indecifrável
Cujo livro é o tempo. Quem se demora
Longe de casa já voltou. A vida
É a senda futura e percorrida.
Nada nos diz adeus. Nada vai embora.
Não te rendas. A masmorra é escura,
A firme trama é de incessante ferro,
Porém, em algum canto de teu encerro*
Pode haver um descuido, a rachadura.
O caminho é fatal como a seta,
Mas Deus está à espreita entre a greta.

*Encerro - claustro, clausura.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Cecília Meireles, "Urnas e brisas"


Entre estas urnas tão claras e lisas,
escolherei a das minhas cinzas,

embora me pareça que as brisas
são urnas mais claras, mais lisas, mais finas,

e levem mais longe essas leves cinzas
que restaram de tão breves ruínas...

quarta-feira, 20 de março de 2013

Antonio Ferrigno, "Vista da Várzea do Carmo"














O córrego que se vê na pintura é o rio Tamanduateí, antes de ser canalizado no final do século XIX.
Esta região, atualmente, é o Parque D. Pedro.

terça-feira, 19 de março de 2013

Jorge de Aguiar, "Cantiga"


Pesares, nojos, tristezas,
não vos temo,
pois vivendo vi o extremo
de todas vossas cruezas.

Quem me podeis já fazer
com que me possa anojar,
nem que possa ouvir dizer
que me deva quebrantar?
Usai vossas asperezas,
não vos temo,
que já passei o extremo
de todas vossas cruezas.

Do Cancioneiro Geral de Garcia Resende.


segunda-feira, 18 de março de 2013

Helder Macedo














"A neve já não cai..."

A neve já não cai
o frio corta
e a noite se arrepia
ao anúncio da manhã subindo as casas.

Repousemos também
oh meu amor
os nosso corpos 
que sabem mais que nós.

sábado, 16 de março de 2013

Mário Cesariny, "Poema"


Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam do esplendor
com que se ergue o estio
e a lua derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
em casas como aquele
onde Rimbaud comeu
e dormiu e deitou
a vida desesperada
estreita casa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres
quando termina o dia
e o sol conseguiu um pouco 
abraçar a cidade
à luz rasante e forte
que dura dois minutos
nas árvores surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não 
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cinzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever 
de cidadãos britânicos
que nunca viram
os céus mediterrânicos.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Entrevista de Ferreira Gullar










Entrevista de Ferreira Gular a Antonio Carlos Secchin, Ivan Junqueira, Adriano Espínola, Jorge Wanderley, Moacyr Félix, Neide Archanjo e Suzana Vargas, publicada no número 9 (março de 1998) da "Revista Poesia Sempre", da Fundação Biblioteca Nacional.

Na tarde do dia 19 de fevereiro de 1997, na redação de Poesia Sempre, o poeta Ferreira Gullar concedeu uma entrevista à qual estiveram presentes o editor-geral da revista, Antônio Carlos Secchin que atuou também como mediador, o editor executivo Ivan Junqueira e os editores adjuntos Adriano Espínola, Jorge Wanderley, Moacyr Félix, Neide Archanjo e Suzana Vargas. Gravada e transcrita a partir de três fitas, a entrevista foi depois editada, sendo seu texto final aprovado por toda a editoria e pelo autor entrevistado. Em pauta, os atuais problemas da poesia, da crítica literária e da cultura brasileiras.
SECCHIN – Estamos aqui reunidos para uma conversa com o poeta Ferreira Gullar. Dando início aos trabalhos, passo a palavra ao poeta Moacyr Félix.
MOACYR – Gullar, quais os poetas da velha e da nova geração que mais têm chamado a sua atenção?
GULLAR – É uma pergunta difícil pelo fato de que não tenho muita memória dos livros que me enviam os poetas jovens, e a quantidade é muito grande. Não me recordo sequer dos que me impressionaram muito bem, de modo que, no momento, não sei que nome eu poderia citar, e não gostaria de cometer uma injustiça. O que percebo, entretanto, e que existe uma distinção regional da poesia com características próprias. A poesia que recebo do Rio Grande do Sul, por exemplo, tem um certo tom, algo de familiar em poetas dessa região. Para mim, a mais marcada dessas regiões é Recife, o que vale dizer: Pernambuco. Existe uma poesia pernambucana, uma genealogia entre poetas dessa região e algumas características que não tentarei definir aqui, mas que são muito acentuadas. Convém lembrar que falo de uma maneira genérica, e quero deixar claro que, na minha opinião, a poesia não obedece a leis ou profecias. Mas a verdade é que eu não saberia avaliar quais desses poetas jovens irão ficar na medida em que ficaram autores do nível de Drummond ou de um João Cabral. Gostaria de aproveitar a sua pergunta para pedir mais uma vez aos responsáveis pelos suplementos literários, no sentido de que deem mais espaço à poesia dos jovens, cuja pouca divulgação me parece um absurdo. A poesia foi excluída dos suplementos, e no entanto se escreve muito sobre poesia, publicam-se textos críticos e estudos exegéticos, menos a própria poesia, o que me levou a dizer o seguinte ao editor de um desses suplementos: “Olha, publicar um poema é como ter na mão o original de um pintor. A crítica sobre um quadro é uma coisa, mas você já imaginou ter nas mãos o próprio quadro? A diferença é que o quadro reproduzido no suplemento se resume a uma cópia fotográfica, enquanto o poema é uma obra de arte original. Se você publica em seu suplemento um poema, você está publicando o original de uma obra.” Então é preciso valorizar culturalmente os suplementos. Chega de entrevistas, de resenhas que às vezes não dizem nada. Eu gostaria de reafirmar tudo isso aqui porque estamos vivendo uma época em que os valores culturais vêm sendo substituídos pelo entretenimento. A mídia transforma tudo em entretenimento. O único valor que existe é a notícia, a novidade sob forma de notícia. E isso é uma ameaça ao ser humano porque esse pessoal jovem que está sendo manipulado pela mídia não se preocupa, em sua formação literária, com a experiência do que seja a obra de arte, que não é uma realização gratuita, mas uma necessidade profunda do ser humano. E o que acontece? Acontece que, quando se esgota o mito da juventude e o sujeito já não tem mais como pular o rock na praia de Ipanema, quando acaba tudo isso e ele começa a “bater pino”, não tem para onde se voltar porque lhe falta a verdadeira experiência da arte. Gostaria também, aproveitando ainda a pergunta do Moacyr, de falar outra coisa, ou seja, a tendência a ver poesia de uma maneira estrita. Houve uma época em que o único poeta que existia era Carlos Drummond de Andrade. Só se escrevia e só se falava de Drummond, o que, aliás, o aborrecia. Mas vieram afinal outros poetas demonstrar que a riqueza da literatura consiste na produção de personalidades e individualidades sem as quais não é possível a obra literária. E essas individualidades é que operam a síntese de seu tempo. Isso significa que Jorge de Lima não é João Cabral, que Drummond não é Murilo Mendes, que Manuel Bandeira não é Vinicius de Morais, que Joaquim Cardozo não é Dante Milano. Cada um desses poetas está dizendo algo que somente ele poderia dizer. E é nisso que reside a originalidade de cada um, e não a originalidade gratuita do paletó de três mangas. Quando me refiro à novidade, o que quero dizer é que o novo existe em cada poeta, que há na personalidade de cada um uma maneira própria de se sentir e de compreender o mundo. Se tomarmos como exemplo Augusto dos Anjos, haveremos de perceber que há nele uma maneira muito pessoal de tratar a linguagem e de enfocar o mundo que se transforma exatamente graças a essa linguagem. E não se pode distinguir entre a linguagem e a maneira de sentir o mundo, porque ambas essas coisas são uma só. E é tamanha essa identificação que, muitas vezes, a linguagem chega a determinar o que o poeta sente. Se não levarmos isso em conta, surgirá a tendência a estabelecer essa visão esquemática de que tanto padece, aliás, a literatura brasileira, sobretudo nossa crítica literária, honrosas exceções.
SECCHIN – Tem uma segunda pergunta, Moacyr?
MOACYR – Não! Foi excelente a resposta do Gullar, particularmente quando aborda a importância da individualidade no processo da criação poética, pois essa individualidade não desloca o seu condicionamento da totalidade em que está inserida. Na medida em que esse condicionamento for estudado, irá fornecer àquela totalidade dados tão individuais quanto a impressão digital que só ela tem. E cada livro de poesia tem a sua própria impressão digital. Lembro-me de que li certa vez um artigo em que metiam o pau em você, e isso me deixou profundamente irritado, já que você só era citado como poeta de esquerda stalinista e dogmático. Era de gente que atacava também quem fazia o verso de fundo social e longo, pois este não interessava mais aos poderes dominantes e estava proscrito pela ditadura militar das universidades, sob a alegação de que era discursivo e retórico. Embora faça questão de frisar que na área da filosofia, da história, da sociologia e dos comentários sobre nossa dominante linha política o “Mais” publica importantes matérias da nossa imprensa.
SECCHIN – Moacyr, você ainda quer mesmo fazer uma segunda pergunta?
MOACYR – Quero. E esta é fundamental para o Gullar. Gostaria que você falasse um pouco sobre a decadência espiritual e poética da época em que vivemos, essa decadência que vemos na maioria das badaladas poesias alemã e francesa, por exemplo, ao contrário do que ocorre com a poesia hispano-americana, que tem hoje mais de sessenta autores de qualidade sobre os quais ninguém diz nada. O que acha você dessa situação absurda? Enfim, diga uma palavra sobre a poesia da América Latina.
GULLAR – Quando me referi aqui ao problema da mídia, não me referi necessariamente à decadência. Quer dizer, não foi essa a palavra que eu usei, pois considero que ela pode implicar outras coisas que não configuram um diagnóstico, que não fazem parte do meu diagnóstico. O que penso, na verdade, é que estamos atravessando uma época em que a mídia passou a deter um poder muito grande e em que os poetas, por exemplo, que são por definição sobretudo os poetas jovens, esses poetas que não alcançaram ainda uma projeção maior, sentem-se muito isolados e são sub-repticiamente esmagados pelo fato de que só tem valor quem é citado na mídia. É como se aquele que a imprensa omite não tem valor, entende? Aquilo de que não se fala na mídia não existe. Fiz recentemente uma conferência na Universidade Federal do Maranhão e terminei dizendo o seguinte: “Quero informar a vocês que o meu gato nunca apareceu nos jornais ou na televisão, e no entanto existe. Existe e é urna maravilha de ser, carinhoso, leal. juro a vocês que meu gato existe porque… porque a verdade é esta.” E então o poeta fica duvidando do que está fazendo porque não aparece na mídia. E, se não aparece, não existe, não tem valor, compreende? É claro que os problemas de que você fala também existem, mas não quero me estender aqui sobre eles porque envolvem noções muito complexas.
NEIDE – Então você considera que a mídia se tornou um ponto de referência. O próprio poeta duvida de seu trabalho, de seu valor, quando não é lembrado pela imprensa?
GULLAR – Mais do que um ponto de referência, ela é uma ameaça. Aliás, já disse isso a um jornalista. Acho que a imprensa desempenha um papel importante, e até que alguns aspectos positivos já começam a configurar-se em alguns suplementos, como o recém-criado “Prosa e Verso”, de O Globo, ou o “Mais”, da Folha de S. Paulo. Há alguns anos atrás só dispúnhamos, nas grandes cidades brasileiras, do “Idéias”, do Jornal do Brasil, e do “Cultura” de O Estado de S. Paulo, que já acabou, aliás. Mas a maioria dos suplementos só Publicava matérias pautadas pelos editores para divulgar best-sellers. É preciso atentar para isso porque às vezes os responsáveis por esses suplementos os editam sem ter a consciência do que estão fazendo. Estou farto de ter textos sobre Baudelaire escritos por quem jamais leu um único verso do autor de "As Flores do Mal". Essa leviandade e essa ignorância são uma característica da nossa época. É como o sujeito que sabe tudo sobre Manet, mas nunca viu um quadro de Manet. Nossos valores estão todos de cabeça para baixo, e é por isso que se funde obra de arte com erudição, quando se sabe que aquela é fruição de um prazer estético, uma identificação profunda com as coisas. E o que o poeta quer comunicar sobre as que está na raiz da obra de arte. Costumo dizer o seguinte: Piero della Francesca, ou seja, Pedro da Francisca em bom português, fazia arte para uma cidade pequena onde era conhecido apenas como Pedro da Francisca. Mas havia também o Pedro da Maria, o Pedro da Joana. E hoje quando se fala do pintor, que era um gênio, as pessoas enchem a boca e capricham na pronúncia para se referir a Piero della Francesca, que na verdade é Pedro da Francisca que pintava para as pessoas de sua cidadezinha na Toscana. Perder essa noção é como levar uma pessoa à loucura, entende? De modo que costumo dizer aos poetas mais jovens: Piero della Francesca é Pedro da Francisca, cara, quer dizer, fique com a sua poesia, identifique-se com ela. O que você tem de fazer é o seu poema, esse é o único amparo. O resto é dúvida. Agora, uma coisa é certa: se você puser na sua poesia, no seu poema, aquilo que de fato foi uma experiência de vida, aí, sim, a verdadeira poesia começa a existir. Não sou catastrofista, não acho que o mundo vai acabar, as coisas são como são e as pessoas vão em frente. Mas há que se ter consciência para lutar. É só isso.
MOACYR – Você tocou na palavra-chave: consciência. E a propósito disso vou fazer minha última pergunta, que, na verdade, é a conseqüência de tudo o que conversamos até agora. Considerando tudo o que você já viveu, sofreu e refletiu ao longo da vida, se um jovem poeta lhe perguntar acerca de uma forma concisa capaz de sintetizar a expressão poética, o que você responderia? Que é preciso estudar, tomar-se literariamente culto, meditar sobre a realidade, cristalizar uma concepção do mundo ou tudo se resolve mesmo na base da inspiração?
GULLAR – Veja bem: eu acredito que o poeta não é nenhum ser excepcional, tanto assim que já propuseram desmistificar essa condição com que antigamente o poeta se apresentava. Concordo inteiramente com essa visão, mas não há dúvida alguma de que nem todo o mundo é poeta, o que não significa que este seja superior a ninguém. Nem todo mundo é capaz de realizar uma obra artística. Agora, se arte é pegar um trilho, amarrar num barbante e pendurar no teto, então todo mundo faz arte. Mas se arte é o que eu concebo, ou seja, a elaboração consciente de uma linguagem, já que os significados são criação do ser humano e não se encontram soltos no ar, então nem todos são artistas. É que a natureza, no meu entender, não tem sentido. Somos nós que lhe atribuímos um sentido através das linguagens. Quando você sai do âmbito da linguagem, a criação cessa. Mas a expressão em si mesma não é arte, apenas faz parte do processo artístico. Um grito, por exemplo, não é arte, mas somente expressão. Logo, a arte implica elaboração. E elaboração de uma herança, pois as linguagens estão impregnadas de significados que nos vêm de nossos predecessores, assim como daqueles com os quais convivemos no dia-a-dia. Sou um poeta que lida com as palavras corriqueiras desse dia-a-dia. Sei que essas palavras estão impregnadas de vida e de experiências, de um calor que vem da boca das pessoas. E se eu não elaboro todo esse material, não estarei fazendo a poesia tal como a entendo. Logo, poesia não é improviso, mas algo de muito mais complexo. A verdade, porém, é que existem vários tipos de poesia, alguns menos exigentes, como é o caso da poesia dos cantadores de feira. Mas a poesia tal como a concebo implica uma consciência que transcende o dado emocional. que ultrapassa até, minha capacidade conceitual. Todo poema que escrevo é, no fundo, uma ampliação de minha própria maneira de me expressar, de modo que, ao iniciar qualquer poema, não sei bem onde vou terminar. Agora, numa época como a nossa, cujas características são as de transformar tudo em mercadoria e cujo único valor que se reconhece é o da troca mercantil, o poeta, ao contrário do que se possa imaginar, tem um papel cada vez mais crucial. E não só o poeta, mas também o músico, o pintor, o artista, enfim. E isso para não falar daquele homem que se mantém fiel à sua natureza de ser humano, entende? Certa vez, quando eu estava no exílio e nos reuníamos para um jantar com outros exilados brasileiros, havia um economista, casado com uma morena muito bonita, que atormentava todo mundo com aquele papo de economia, com aquelas teorias arrogantes que pretendem explicar o mundo. Um dia a morena foi embora, e bastou que isso acontecesse para que ele mudasse de conversa. O cara sentou ao meu lado e passou a falar só de poesia: poesia inglesa, poesia espanhola, poesia francesa. Enfim, era um profundo conhecedor de poesia. Mas só começou a falar desse assunto quando a morena foi embora e ele soube o que era o desamparo. Quem sabe não seria essa uma das funções da poesia, ou seja, despertar-nos para o efêmero e a fugacidade da vida?
SUZANA – Gullar, então você acha que a poesia nos lembra de que somos mortais. não é mesmo?
GULLAR – Tudo bem, mas o fato é que ela nos propõe que sejamos imortais. Acho que o poeta constrói um corpo fora dele, um corpo para não morrer.
SECCHIN – Você faz poesia quando está com a morena?
GULLAR – Faço poesia para a morena.
MOACYR – Bem, este é meu último aparte. Quero cumprimentar toda a editoria de Poesia Sempre por haver entrevistado um poeta da sua estatura. E peço que conste dessa entrevista de que me sinto profundamente honrado de haver dela participado e proporcionado, com minhas perguntas, algumas lições desse poeta extraordinário que é Ferreira Gullar.
SECCHIN – Certo. Agradecemos então ao Moacyr Félix e vamos agora abrir espaço para os outros editores. Neide Archanjo quer fazer uma pergunta.
NEIDE – Gullar, o poeta deve ter um projeto para a sua obra e trabalhar sua poesia no sentido de realizar esse projeto?
GULLAR – Cada poeta é um poeta. Eu, pessoalmente, não tenho projeto. Aliás, nunca tive. Outros poetas têm, mas isso é uma coisa que depende de cada um, da necessidade de cada um. É absolutamente válido um poeta que projeta escrever, digamos, um determinado poema com determinadas características etc., como o João Cabral, por exemplo. Mas no fundo o que acontece é a mesma coisa, Tanto faz o poeta que parte para descobrir o poema ao escrever esse poema como o poeta que estabelece normas básicas antes de escrevê-lo. A rigor, entretanto, o que deve prevalecer é o seguinte: o poema é o lugar onde a linguagem se transforma. Se o poeta não consegue isso, tanto faz ele estabelecer um projeto quanto não ter esse projeto estabelecido que não acontece nada. Mas no fundo, é claro, os temperamentos determinam essa ou aquela postura diante da poesia. Agora, no momento em que o poema é escrito o que tem de acontecer é isso, essa alquimia da linguagem, sem a qual não existe poesia.
NEIDE – Então o "Poema Sujo", digamos, não foi algo que surgiu naturalmente depois de "A Luta Corporal". Ele é um poema longo já de início ou você o compôs em partes e depois as reuniu?
GULLAR – Veja bem: o Poema sujo foi uma coisa inesperada porque o que eu tinha em mente era escrever algo sobre São Luís do Maranhão, sobre a vida que levei ali. Isso era o que preexistia muitos anos antes, e tentei então fazer uma novela em que eu narrava os fatos de minha infância e de meu convívio com as pessoas que eu conhecia. Na primeira tentativa desisti ao chegar à página 90; depois de duas outras versões, desisti da tal novela. Mais tarde, quando eu já me encontrava no exílio, em condições bastante difíceis, quando parecia que a minha vida corria perigo porque eu estava cercado por ditaduras sem poder voltar para o meu país, com meu passaporte cancelado pelo Itamaraty e num país em que as pessoas estavam sendo explodidas com dinamite, decidi então escrever um poema em que pudesse dizer tudo o que eu tinha ainda a dizer, enquanto era tempo. No fundo foi isso.
NEIDE – Um poema-testamento?
GULLAR – Não era um poema-testamento, mas um poema derradeiro, definitivo, isso é o que ele era. Não se trata de memorialismo, pois o "Poema Sujo" não lida propriamente com as lembranças, e sim com a experiência de vida que eu acumulara até então. E o poema acabou sendo surpreendente, já que a primeira tentativa de escrevê-lo não deu certo. Mas logo em seguida o poema começou a crescer, e seu desenvolvimento foi muito favorecido pelo ócio em que eu vivia como exilado, já que minha única ocupação era dar aulas de português. O resto de meu tempo era todo livre, e dediquei-o durante meses e meses a este poema. Posso dizer que vivi nessa época uma experiência meio delirante. Eu dizia aos outros que me sentia como o Rei Midas: tudo o que eu tocava transmudava-se em poesia, todas as coisas, todos os temas, tudo estava impregnado de poesia. Eu já sabia que o poema somaria em tomo de cem páginas e pressentia seu estilo. Quando cheguei na página 5, escrevi uma carta ao Leandro Konder em resposta à que ele me enviara de Bonn. Nessa carta eu dizia o seguinte: “Comecei a escrever um poema que se chamará Poema Sujo e terá de 70 a 100 páginas.” Bem, essas foram as circunstâncias em que o escrevi. Agora, nem sempre acontece o mesmo. Tudo varia muito, são circunstâncias diferentes. Mas esse poema foi concebido dessa maneira.
NEIDE – Agora, minha última pergunta: qual é a verdadeira diferença entre poesia e letra de música? Há até algumas teses sobre o assunto, e a sua opinião é extremamente importante para os poetas, para quem faz música, porque no Brasil qualquer um que escreve letra de música passa a ser chamado de poeta, qualquer compositor de escola de samba se torna poeta. Qual seria essa diferença tão polêmica?
GULLAR – O que penso é o seguinte: gravura não é pintura, gravura não é desenho, e desenho é muito parecido com gravura, não é mesmo? Mas gravura não é desenho, o que não quer dizer que gravura seja melhor que desenho nem que desenho seja melhor que gravura, mas simplesmente gravura não é desenho. Logo, letra de música não é poema. Pode conter poesia, como o poema a contém ou não. Mas são gêneros específicos. Uma letra de música precisa da música. Você pode encontrar exceções, mas na grande maioria dos casos uma letra de música necessita da música para alcançar sua expressão cabal. Existe uma música conhecidíssima, verdadeira obra-prima da MPB, que diz assim: “Podemos ser amigos, simplesmente,/ Amigos simplesmente, e nada mais.” Chama-se Chuvas de verão; é da autoria de Fernando Lobo. Mas se suprimirmos a música, alguém poderia dizer que isso é poesia? Não é. Então, a diferença que existe é apenas a seguinte: quando o poeta escreve o poema, sabe que terá de utilizar ali todos os recursos necessários para que a expressão verbal esteja completa nesse mesmo poema. Por isso, o poema tem uma linguagem própria que constitui uma elaboração específica e distinta da letra de música. É tão difícil fazer uma letra de música boa quanto um bom poema, pois isso requer conhecimento e domínio da técnica musical enfim, sutilezas que o poema também exige. Só que é diferente, Parece-me uma coisa absolutamente escandalosa toda essa confusão. Criou-se, inclusive, uma situação de conflito, de disputa. A letra de música pode conter poesia, sem ser poema, isto é, sem ter a autonomia do poema.
NEIDE – Você poderia explicar um pouquinho mais essa diferença?
GULLAR – Sim. É que a poesia está na janela, na paisagem, na música, em qualquer coisa. Poesia é um sentimento, uma emoção. Conhece-se poesia através da música, do teatro, da pintura, do cinema. Em tudo isso há poesia. Agora, o gênero literário chamado poesia, que existe no poema, somente se expressa através do poema. Logo…
NEIDE – Seria então possível citarmos aqui, lado a lado, Bruno Tolentino e Caetano Veloso, por exemplo? Não precisa haver uma briga, pois ambos são bons no que fazem.
GULLAR – Nós, poetas profissionais do poema, podemos nos sentir até lisonjeados pelo fato de as pessoas nos considerarem como tais, já que não valemos nada no mercado, não servi para coisa alguma. No entanto, Caetano se sente honrado de ser chamado de poeta, embora não necessite dos poetas para nada. Ele é rico, famoso e está coberto de glórias, enquanto os poetas não passam de uns fodidos na vida.
SECCHIN – Ivan, se não me engano você trouxe algumas perguntas por escrito. Vamos à primeira?
IVAN – Gostaria aqui de fazer dezenas de perguntas não só como poeta e leitor da poesia de Gullar, mas também como autor de um longo ensaio sobre a obra dele. Mas vamos aqui nos limitar a três. A primeira é a seguinte: Gullar, em seu ensaio “Reinvenção da poesia”, incluído em "Indagações de Hoje", você sustenta que “a palavra que forma o poema sempre foi, no meu entender, uma entidade viva, nascida do corpo, suja sabe-se lá de que insondáveis significados”. Em que sentido esse conceito se poderia aplicar às entranhas conspurcadas do Poema Sujo?
GULLLAR – Acredito que o Poema Sujo seja até o exemplo dessa definição de poesia, pois quando o intitulei de “sujo” também o qualifiquei dessa forma. Foi como eu disse há pouco: chamei-o de Poema Sujo por três razões, e se posso afirmar isso é porque eu refletira muito sobre o que seria esse poema antes mesmo de escrevê-lo. Bem, em primeiro lugar ele é sujo porque é nordestino, e a visão do Nordeste que me impregnava naquele momento era a dos leprosos lá do Bonfim, que caminhavam até o centro de São Luís e causavam-me horror. Era a miséria, a doença, a morte, o lodaçal, a favela, as palafitas. Então, o poema era sujo como o povo brasileiro, como a vida do povo brasileiro. Em segundo lugar, era sujo também porque, de acordo com a moral estabelecida, um poema que fala de boceta, de cancro, de todas as obscenidades, é sujo. O poeta tem a boca suja, fala palavrão, fala obscenidades. Logo esse poema era também sujo porque buscava, em sua alquimia, transformar toda essa matéria indigna em poesia, já que não posso banir de minha vida essa coisa extraordinária e venturosa que é o sexo. Daí essa dita suposta sujeira, sujeira da vida, entende? E em terceiro: o poema era sujo porque, estilisticamente, também assim cabia ser chamado, pois não obedece a nenhuma norma. Mas ha algo sobre o que eu gostaria de me deter um pouco. É o seguinte: depois da fase política de minha poesia comecei a elaborar uma linguagem poética foi se tomando mais rigorosa, mais exigente e despojada, até o Poema Sujo, onde, a rigor, faço explodir minha própria linguagem. Então, nesse sentido é que ele é sujo estilisticamente e, porque mistura prosa, ritmo, rima – enfim, mistura tudo. Foi por isso também que o chamei de Poema Sujo. Foi graças a ele, aliás, que me conscientizei de que o poema é o lugar onde a linguagem se transforma. Agora, no meu caso, o poema é também é o lugar em que a prosa se transmuda em poesia. Parece contraditório, já que se pode deduzir que. sem prosaísmo, não há poesia. Mas a verdade é que nunca cogitei de escrever poesia pura ou de compor um poema limpo. De modo que minha poesia é suja mesmo, e isso talvez ocorra porque sou um poeta mais impregnado dessa linguagem popular, dessa linguagem comum e banal. Acho que isso se deve também a um outro fator: o Poema sujo é o resultado de minha experiência com a linguagem política. Mas sob esse aspecto ocorre uma coisa de que discordo: é que os críticos dão uma importância excessiva ao caráter político de minha poesia. Houve um deles que dedicou a metade de um estudo sobre mim aos meus poemas políticos, àquela poesia socialmente engajada que, no sentido pleno dessa acepção, cultivei apenas por dois ou três anos. O que ocorre é que a palavra política, a palavra banal, a palavra cotidiana foram por mim elaboradas juntamente com expressões extraídas ao vocabulário do capitalismo, da vida econômica, que são também comuns ao imperialismo de dominação. Mas tudo isso acabou sendo transformado pela alquimia da poesia. Atrevo-me até a fazer um paralelo entre esse processo e o de Augusto dos Anjos, que usa e abusa da linguagem científica, o que foi condenado por diversos críticos da época, que jamais o entenderam. Mas, na poesia dele, isso era apenas um contraponto na alquimia que lhe transformava as palavras, porque de repente ele recorre a duas ou três expressões cientificistas e, em seguida, cunha uma expressão poética alucinada e outra de um cotidiano banalíssimo e até vulgar, criando assim uma poesia que só vemos nele, que só aflora na poesia dele, entende?
SECCHIN – Agora, pegando uma carona na pergunta do Ivan, você escreveu também em "A luta Corporal" uma poesia limpa e de alta qualidade que se vê, por exemplo, nos “Sonetos Portugueses”. Parece-me que A luta corporal de alguma forma já prenuncia o caldeirão de estilos que é o Poema sujo. Ali você já encontra o poema em prosa, a pulverização da linguagem, a influência surrealista, o diálogo com a tradição lírica da língua portuguesa. Logo, toda essa inquietação já está presente em A luta corporal. Por outro lado cheguei a registrar num estudo a insuficiência de "Um Pouco Acima do Chão", seu livro de estréia, em 1949. E me surpreende que, apenas cinco anos depois, você tenha escrito uma obra como "A Luta Corporal", pois, bem ou mal, a obra com que um autor estréia já prenuncia ou contém algo relativo ao que o poeta vindouro irá realizar de uma forma possivelmente melhor. Acho que esse poeta prometido em "Um pouco acima do chão", felizmente para a poesia, não existe mais, pois "A luta corporal" o aboliu. Eu gostaria que você falasse desse salto, da transição do primeiro para o segundo livro e da eventual relação deste último com o Poema Sujo.
IVAN – Olha, a minha segunda pergunta coincide muitíssimo com o que acaba de dizer o Secchin, de modo que vou logo fazê-la. Os “Sete poemas portugueses” incluídos em A luta corporal atestam o exímio artista do verso que já aquela época você dominava como poucos. Como se explicaria então o fato de que, nesse mesmo livro, toda a tradição poética até então vigente entre nós seja pulverizada através de uma violenta ruptura com os cânones sintático-vocabulares dessa mesma tradição literária?
GULLAR – Vou dar uma resposta longa e que envolve todo esse problema. Veja bem: minha formação de poeta foi uma formação parnasiana. Aprendi a versejar e versejava tão bem que cheguei a falar em decassílabos. É, houve um momento a partir do qual passei a falar em decassílabos.
SECCHIN – Eu queria saber se você falava em decassílabos heróicos ou sáficos (risos). E se chegou a falar em alexandrinos.
GULLAR – Eu só não falava em alexandrinos por causa da censura (risos). Bem, então minha formação foi essa. Eu nasci em Macondo, quer dizer, em São Luís do Maranhão. As coisas custavam a chegar lá. Minha casa não tinha livros e eu, na verdade, vivia num quintal com as galinhas, os patos, os perus, esses bichos. E o resto do tempo era na rua jogando bola. Eu não sabia, por exemplo, que a oito quadras da minha casa ficava a praça Nuno Lisboa, cheia de poetas. Enfim, eu ignorava absolutamente tudo, tanto que, com toda a franqueza, naquela época eu imaginava que todos os poetas já haviam morrido. Quando comecei a escrever, só conhecia os poetas de livro, de modo que, para mim, estavam todos mortos. Se apareciam nos livros, é porque estavam mortos (risos). Anos depois, quando arrisquei os primeiros versos. perguntei-me por que resolvera me dedicar a uma profissão de defuntos, por que insistia em querer ser poeta. Agora, vejam bem que estou recuando àquele período entre 1945 e 1950. A essa altura, o movimento modernista já era objeto de estudo nas universidades e nas escolas. E eu inteiramente por fora de tudo. É por isso que "Um pouco acima do chão" irradia unia ingenuidade absoluta. Quando o livro chegou aqui no Rio, o Fausto Cunha baixou o cacete nele, o que me causou espanto porque eu não passava de um adolescente que não lera quase nada. Mais ou menos nessa época é que chegou ao Maranhão o volume Poesia até agora, de Carlos Drummond de Andrade, e os suplementos literários começaram a publicar alguns textos de poetas modernos. Quando abri o livro de Drummond e li “lua diurética”, disse comigo mesmo: isso não é poesia, isso é sacanagem, porque poesia, para mim, era “hão de chorar por ela os cinamomos”.
SUZANA – Que é muito bom, aliás.
GULLAR – Sim, é muito bom. Mas para mim, naquela época, poesia era só isso. E sair disso para uma “lua diurética”, porra, o autor estava maluco. “Escrevo teu nome com letras de macarrão na sopa.” Que porra era essa, cara? Então comecei a ler para entender alguma coisa. Li Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, O ""Empalhador de Passarinho", do Mário de Andrade, e por aí fui. A mudança ocorreu porque mergulhei fundo na coisa. A partir de então comecei a entender o que era a poesia moderna, o que pretendiam fazer os poetas modernos. E então, de repente, uma revelação em minha cabeça. Percebi de súbito todo aquele processo, tanto assim que, em 1950, escrevi um poema a partir de um anúncio do Sal de Frutas Eno que constava da silhueta de um galo com o bico aberto e um sol radiante por trás. E então aquele galo, aquela silhueta do galo, me fez escrever um poema, sob o titulo de “O galo”, que ganhou o Concurso Nacional de Poesia do Jornal de Letras. Não quis publicá-lo em livro por razões que ignoro. Só sei que, como eu já escrevera o “Galo galo”, preferi não publicar “O Galo”. Creio que foi um tipo de censura pessoal. A propósito, os “Poemas portugueses”, não sei se vocês se lembram, começam pelo no 3. Ninguém entende por quê. Porque os dois primeiros eu censurei por julgar que ainda não estavam no nível dos outros. Enfim, a explicação que eu quero dar é a seguinte: quando compreendi o processo da poesia moderna, percebi que a poesia que eu escrevera até então, rimada e metrificada, era uma automação, um vício. É que o poeta, como já disse aqui antes, só expressa o que percebe através de sua própria linguagem. E foi assim que cheguei à conclusão de que a poesia que eu escrevera até 1950 nada tinha a ver com o “Galo galo” ou o Poema sujo. Ela estava condicionada à linguagem parnasiana, que transforma todas as coisas naquela monotonia marmórea da métrica decassilábica.
IVAN – Gullar, você me permite um parêntese com relação ao verso decassilábico? Você se refere à sua formação parnasiana, e evidentemente você teve essa formação parnasiana como alguns outros poetas daquela época também a tiveram, mas, quando você insiste no decassílabo, não chego a entender muito bem, pois este era pouco utilizado pelos poetas parnasianos, cuja tônica era o verso alexandrino, de óbvia empostação retórica e herdado à poesia francesa desde os tempos de Racine.
GULLAR – É que muitos dos sonetos de Bilac e Raimundo Correia recorrem ao decassílabo. Mas veja bem: eu também esgrimava o alexandrino, cuja estrutura aprendi ao ler e reler o Tratado de versificação, de Olavo Bilac. Quando digo que cheguei a falar em decassílabos, é porque, como você sabe, falar em alexandrinos é pra leão.
SECCHIN – Eu gostaria que você retomasse a questão de sua formação literária e abordasse aquela passagem de um livro ao outro.
GULLAR – Tudo bem. Quando descobri esse caráter de automatismo que a linguagem parnasiana infundira em minha maneira de escrever e tomei contato com uma linguagem nova que abolia o espartilho da metrificação e as convencionices da língua, além de criar o verso livre, e a partir do momento em que li urna frase atribuída a Gauguin que dizia assim: “Quando eu aprender a pintar com a mão direita, passarei a pintar com a esquerda, e quando aprender a pintar com a esquerda, passarei a pintar com os pés”. Então eu disse comigo mesmo: é isso aí. Então, veja bem: A luta corporal é um livro no qual, a cada momento em que adquiro o domínio de um modo de expressão, arrebento com tudo e passo para outro. Não se trata de misturar ecleticamente estilos e tendências, como o surrealismo, por exemplo. Não é bem isso. 0 livro começa com um ajuste de contas relativamente à poesia rimada e metrificada, como é o caso do soneto. A maneira de construir o poema também já é diferente. Eu quis dizer o seguinte: como nunca mais vou utilizar esse instrumental, tirarei ouro de ouro, colocarei no papel o melhor que posso fazer com isso. E fiz então aqueles “Poemas portugueses”, embora os dois primeiros fossem irremediavelmente velhos. No que toca aos outros, creio que consegui realizar meu propósito. E dei a coisa por finda. Mas aí aconteceu algo estranho: depois que deixei de lado aquilo tudo, fiquei sem linguagem e mergulhei numa solidão total. É que eu não conseguia apreender as coisas, não sabia mais me expressar acerca das coisas. Sim, eu abandonara a linguagem. Seguiu-se então uma série de exercícios antes que eu cristalizasse a nova linguagem e desaprendesse a antiga. Até que numa tarde calorenta de São Luís vi de repente, mergulhado na sombra de uma varanda, um prato cheio de pêras. E escrevi um poema. Mas, como eu tinha aquela formação do verso rimado e metrificado, esse verso que eu me dispusera a não mais utilizar, então o que saiu foi prosa. E descobri então que eu criara uma poética. Comecei a quebrar os versos e a desenvolver aquela poesia cuja matriz emerge desses poemas de A luta corporal. Não que tivesse visto nenhuma experiência semelhante, como, por exemplo, a de Mallarmé, poeta que, até então, eu não lera. A verdade é que eu precisava de uma poética, pois havia me despojado de tudo o que aprendera. Como o meu propósito era o de não insistir mais naquele vício do verso medido, então toda vez que eu percebia que meu procedimento estava se transformando em linguagem habitual, eu arrebentava com tudo e entrava em crise. E no meio disso tudo ocorreu-me a idéia de que aquilo que eu estava buscando era, afinal, a própria essência da linguagem. Então estabeleci como meta chegar a uma linguagem nova. A luta corporal é, por isso mesmo, uma série de tentativas de aproximação para alcançar essa linguagem essencial que, é bom que se diga, se desenvolvia paralelamente ao ato de escrever o poema. E isso porque a linguagem tem um passado, é anterior ao poema. Às vezes me parecia que eu tinha pela frente um propósito irrealizável do ponto de vista prático. Houve um momento em que eu disse para mim mesmo: estou sempre prometendo chegar lá; pois bem, de agora em diante não darei um passo sequer se não for para atingir meu objetivo. Vou dar o salto no olho do furacão. E aí os poemas foram surgindo e configurando uma tentativa no sentido de abolir o tempo na linguagem do poema. Mas me vi de repente num beco sem saída, embora disposto a não recuar. Foi nesse exato momento que escrevi o poema “Roçzeiral”. Bem, eu não queria mesmo escrever um poema comportado, um poema sobre os canteiros de flores da praia de Botafogo, que estavam ressequidos, mas que eu vira vicejantes e coloridos. E então: “Ao sopro da luz a tua pompa se renova numa órbita”. Esse verso surgiu quando tentei desenvolver o poema, que ia se tomar um poema como outro qualquer. Mas de súbito comecei a resistir-lhe e disse para mim mesmo: não quero fazê-lo assim, não quero. E rasguei tudo. Era Sexta-Feira da Paixão e fui para o Vermelhinho, onde não havia ninguém porque era feriado e eu me esquecera disso. Comecei então a andar sozinho pela rua e, de repente, aquele verso virou isto: “ô sôflu; luz ta pompa inova órbita”. Alegrei-me, senti-me livre, rompera as cadeias da linguagem. E, como um louco, comecei a elaborar um poema da sintaxe, livre de tudo. Assim surgiu o poema “Roçzeiral”, que é roça misturada com rozeiral. Passei depois pelo Parque Guinle e comecei a ter estranhas visões, como a de um homem de calças pretas e camisa xadrez com suspensórios brancos que se multiplicava como um clone. Guardei então no bolso o papel onde anotara aquilo tudo e perambulei até os fundos da Biblioteca Nacional, onde terminei de escrever o poema. Bem, no dia seguinte acabou aquele delírio e me dei conta do seguinte: não vou agora ficar escrevendo com as ruínas da linguagem. É que eu destruíra tudo e acabara de escrever um poema com palavras incompreensíveis, com restos de palavras. E aí acabou a poesia, acabou o poema.
NEIDE – Olha, Gullar, começo a ver agora que aquela primeira pergunta que lhe fiz, no sentido de que o poeta deve ter um projeto e trabalhar com relação a isso, tinha a sua razão de ser, pois o que você acaba de contar demonstra que havia um projeto em sua mente, havia etapas a vencer, havia a urgência desesperada de conquistar uma nova linguagem poética. Isso é muito importante. Não se trata de algo que você foi fazendo aleatoriamente. Você tinha um projeto.
GULLAR – O que eu entendo por projeto é ter um propósito definido, o que não era o meu caso.
IVAN – Gullar, eu gostaria de lhe fazer ainda uma última pergunta. É o seguinte: em que medida o impasse criado pelo concretismo, movimento do qual você foi um dos fundadores, colaborou para que sua poesia deixasse de lado aquelas refinadas experiências estéticas para aderir à poética de participação social que encontramos em seus livros posteriores já a partir daqueles romances de cordel que, ao meu ver, nada têm em comum com o poeta que você foi, e continuou a ser, em Dentro da noite veloz e Na vertigem do dia?
GULLAR – É verdade, a ruptura com a poesia concreta e, depois, com a dissidência da poesia neoconcreta. Aliás, nunca concordei com a visão de poesia do grupo de São Paulo. Tanto não concordei que desisti até de participar do movimento. Desenvolvi meu trabalho a partir de uma poesia assintática, é verdade. Todo mundo conhece a opinião que eu tenho sobre a poesia concreta, mas, assim como os stalinistas reescreviam a história, os concretistas também o fizeram. A diferença, porém, é a seguinte: eu jamais endossei a visão deles quanto ao novo verso, e isso consta dos artigos do Haroldo de Campos publicados em O Estado de S. Paulo e na Folha de S. Paulo. Respondendo na época a uma carta do Augusto de Campos, disse-lhe que não se tratava de um novo verso. Eu acabara de arrebentar com a linguagem discursiva, e foi isso que constituiu a base teórica do movimento. Porque o que é a poesia concreta senão a tentativa de construir uma poesia espacial, assintática, apenas com elementos visuais? E essa é a proposta que está implícita no fim de A luta corporal. Mas, apesar de haver rompido com eles, continuei a desenvolver a poesia espacial que estava na minha cabeça, nos meus propósitos, e terminei por fazer uma poesia muito mais audaciosa do ponto de vista da ruptura com as formas tradicionais: os poemas espaciais, o livro-poema e, depois, o poema enterrado, que é um cubo enterrado no chão e que chegou a ser construído. Foi na casa do Hélio Oiticica, na Gávea Pequena. 0 pai dele ia construir uma caixa-d’água, e ele brigou com o pai dizendo que tinha de construir um poema. 0 velho acabou concordando e fomos inaugurar o poema num domingo. Eu, Lygia Clark, Mário Pedrosa, Oiticica, um bando de gente, Mas chovera muito na véspera, e o poema estava coberto por dois palmos de água. Os cubos flutuavam à superfície da água e o poema acabou inundado, virou caixa d’água, como, aliás, era o propósito inicial do pai do Oiticica. Você descia por uma escada, entrava numa sala de 2mx2m e lá dentro havia um cubo vermelho. Você tirava o cubo vermelho e aparecia um cubo verde. Tirava o verde e surgia um branco. E embaixo do cubo branco estava escrita a palavra “Rejuvenesça”, Quer dizer, era uma construção arquitetônica para uma palavra. Eu achava que era uma coisa bonita, algo que me lembrava os túmulos egípcios, ressonâncias do inconsciente, como se eu estivesse descendo no Inconsciente. Agora, quando eu percebi que armara aquela coisa toda para abrigar uma palavra apenas, perguntei a mim mesmo: aonde é que eu vou chegar? Estou me tomando um artista plástico? E o poeta para aonde vai? E comecei a me sentir mal dentro daquilo tudo.
JORGE – Sempre achei que o que difere os poetas concretos dos demais é a sua vizinhança do silêncio, estão muito próximos do silêncio, como quem procura o silêncio, ao contrário da idéia da palavra e da frase.
ADRIANO – Ao contrário, Gullar, do que você propõe em Barulhos.
GULLAR – Sim, é claro. Mas veja bem: quando rompi com minha própria experiência, quando que ainda era pouco, quando compreendi que aquilo tudo me cerceava e me impedia ir mais fundo no conhecimento das coisas, na indagação sobre o mundo, então entrei em crise, porque eu havia me tornado, diante de todo mundo, uma espécie de líder do concretismo e, depois da ruptura com os paulistas, do neoconcretismo, movimentos que alcançaram grande repercussão nacional. Diante de todo o país, eu era aquele poeta de vanguarda que, de repente, desceu das nuvens para fazer poesia de cordel. Houve um sujeito que escreveu um artigo numa revista da época dizendo que eu era um traidor da poesia, que eu era isso e aquilo porque renunciara ao concretismo para escrever poesia de participação social. Evidentemente, ele não estava acompanhando meu processo interior.
IVAN – Acho que nem o melhor psicanalista do Brasil poderia acompanhar seu processo interior, Gullar (risos).
GULLAR – Bem, tudo isso coincide com a minha ida para Brasília e o meu reencontro com o Brasil.
IVAN – Sua ida para Brasília como presidente da Fundação Cultural do Distrito Federal?
GULLAR – É, foi em 1961, a convite do José Aparecido e do Carlos Castelo Branco, meu companheiro no Jornal do Brasil. E lá em Brasília reencontrei o Nordeste, o candango, sabe? Então esse reencontro me fez refletir em outra direção. Porque eu saí do Nordeste com destino ao Rio e aí, de repente, vejo lá o candango, o nordestino. E lá, também, caiu-me nas mãos um livro sobre Karl Marx de autoria de um padre francês. Na primeira parte do livro, ele explica o que é o marxismo e, na segunda, demonstra que um católico não pode ser marxista. Estão aí minhas origens marxistas. Tornei-me um homem de esquerda graças à identificação que senti com a concretude do pensamento de Marx. Eu lia muito filosofia, mas não descobria nos outros filósofos nenhuma identidade espiritual. Foi aí que se iniciou o meu engajamento político. De volta ao Rio, entrei para o Centro Popular de Cultura e, pouco depois, escrevi aqueles quatro romances de cordel sob o título de Cabra marcado para morrer. O Vianinha me pediu que concebesse a estrutura de uma peça que eles pretendiam montar sobre a reforma agrária, que eu fizesse um poema capaz de funcionar como estrutura de uma peça. E aí eu imaginei aquela história que seria a história da peça, uma história a ser narrada durante a peça. Então, veja bem, respondendo a uma observação do Ivan, o que eu gostaria de deixar claro aqui para vocês é o seguinte: eu nunca considerei aqueles romances de cordel como literatura, como poesia. Ao contrário, aquilo ali foi uma atitude de rejeição da poesia num momento em que passei a julgar que a sociedade brasileira e, sobretudo, a literatura brasileira eram coisas desligadas do povo, e que seria necessário transformar o país. Eu não queria mais fazer literatura, e sim mobilizar minha capacidade de escrever, de usar o verso, para fazer a revolução. Não havia o propósito de fazer literatura, e sim de realizar a coisa mais simples, mais fácil, mais acessível a todos, de modo que cada um pudesse tomar consciência dos problemas sociais do país.
JORGE – Gullar, sou um velho admirador seu, como você sabe. 0 que vi até agora, de uma certa maneira, foi que, pelas colocações do Moacyr, de um lado, examinou-se com mais atenção a vertente político-social de sua poesia, mas temos aqui também o seu oposto, resultante de uma colocação mais estética, mais acadêmica até, no bom sentido dessa palavra, feita pelo Ivan. Bem, uma coisa não deve excluir a outra, pois penso que ambas são muito instigantes. E o Gullar é um poeta. Quem escreveu um poema absolutamente notável como “Galo galo” é certamente um poeta que atende a qualquer requisito. Tenho aqui três perguntas. E gostaria de fazer pelo menos uma delas. É o seguinte: queria que você nos decifrasse o exato sentido de um verso que o ouvi declamar há tempos no Botanic. Esse verso diz assim: “Engordar em São Paulo citando Ezra Pound.” Você comentará se quiser.
GULLAR – Esse verso pertence a um poema que escrevi sobre uma inesperada visita que fiz ao prédio do antigo IAPC, aqui no Rio, onde trabalhei. Muitos anos depois fui lá fazer não sei bem o que, e vi de uma janela a marquise coberta de lodo, aquele poço interno do edifício para o qual tantas vezes eu olhara, e, de súbito, aquela massa negra era a minha memória, o meu passado. Não sei bem por que fiquei então muito comovido, e saí dali transtornado, perguntando-me se deveria tornar-me um acadêmico, um burocrata da poesia, já que a idade me sugeria que eu me fizesse um sujeito sério, que eu envelhecesse em São Paulo citando Ezra Pound. Foi uma sacanagem minha com o Haroldo de Campos, e ele merece, pois vive me esculhambando. Outro dia mesmo, num programa de tevê a que não assisti, mas que depois me contaram, ele me acusou de stalinista. Ora essa, nunca fui stalinista. Basta que leiam o que escrevi sobre Stalin. Entrei para o Partido Comunista no dia do golpe militar de 1964, depois de recusar todos os convites anteriores para fazê-lo. Pois é, no dia do golpe, quando todos nós estávamos derrotados. Entrei por causa dessa derrota, para me solidarizar e lutar contra o autoritarismo. Eu tinha horror ao partido porque em São Luís do Maranhão li uma revista Paratodos em que esculhambavam a poesia, em que diziam que a poesia era uma coisa secundária. É que, aos 16 ou 17 anos, a única coisa que me restava era a poesia. Então, quem era contra a poesia era contra mim. Eu tinha horror ao comunismo, ao sindicalismo. De modo que como poderia ser eu stalinista? Ninguém mudou de opinião mais na vida do que eu, certo? Certa vez, conversando com o nosso querido Darcy Ribeiro, que infelizmente já se foi, disse-lhe o seguinte: “A coisa que mais me horroriza é pensar que alguém possa tomar ao pé da letra o que eu digo e fazer disso uma bandeira, pois eu adoro a discussão, o conflito, eu me apaixono por aquilo em que acredito e defendo-o com unhas e dentes, mas, ao mesmo tempo, acho que o outro tem o direito de lutar por aquilo que pensa, pois não acredito na verdade absoluta, mas sim em verdades temporárias, eventuais, circunstanciais.” Ora, isso é o oposto de qualquer stalinismo. Sempre tive horror a Stalin, a seus métodos, a seu caráter totalitário. Jamais aceitei os expurgos e os massacres stalinistas. Se o ser humano precisa de justiça social, precisa também de liberdade e direitos individuais.
JORGE – Gullar, eu queria um depoimento seu sobre aquele que considero um dos maiores poemas da língua – não sei se exagero, mas creio que não -, que é o “Galo galo”. Queria que você me falasse desse poema.
GULLAR – Fico muito lisonjeado com sua opinião. Agora, quanto a esse poema, que foi escrito, se não me engano, em 1951, ainda em São Luís, ele nasceu da seguinte maneira: como disse a vocês, criei-me numa casa com quintal e galinheiro. Minha infância está povoada de galinhas, frangos, galos, patos, perus. Eu vivia no meio das galinhas e aquele cheiro de galinha era para mim uma coisa familiar. Num texto que nunca ninguém leu porque jamais publiquei, eu comparo as constelações aos galinheiros e os cocôs de galinha às galáxias. Eu ainda sinto dentro de mim as galinhas se ajeitando para dormir. É como se fosse uma coisa vital, ligada para sempre à minha vida. Sempre me impressionei com os pintinhos nascendo dos ovos; e depois irem crescendo, se emplumando, desenvolvendo a musculatura para se tornarem galetos. Certa vez, eu estava debruçado de manhã cedinho na varanda lá de casa, que dava para o quintal, e aí, de repente, aquele galo, aquele galo batendo as asas com um vigor extraordinário, como se quisesse explodir. Quer dizer, uma coisa espantosa. Não sei se vocês já viram um galo cantar, ele bate as asas como se quisesse fundar a realidade. É uma coisa extraordinária.
IVAN – Acho que essa sua visão do galo a bater as asas é que justifica e dá título ao poema. “Galo galo”. Se você recorresse a um adjetivo para qualificar esse galo, seria mais que o próprio galo, concreto e irredutível a um ser que não fosse ele mesmo.
GULLAR – Claro, eu não encontrava nenhum adjetivo e, ao mesmo tempo, via o bicho ali na minha frente, com aquele poder extraordinário, aquela vitalidade telúrica, como se fosse a terra berrando. Com o tempo, porém, esse galo tão soberbo dá um passo e se apaga, não deixa marcas, vai acabar, vai morrer, vai desaparecer. E então tudo se resume a essa coisa estranha a que chamamos vida, porque nada para mim poderia expressar tanto a vida quanto para aquele galo é aquele canto rouco que vinha do fundo da terra. E no entanto ele ia morrer sem que seu canto modificasse coisa alguma. A tarde continuaria tal como era, como se fosse inútil ele haver cantado. A rigor, sempre quis que a poesia pudesse modificar o mundo. Eu ainda não sabia de nada, estava em São Luís do Maranhão. Mas era necessário que a poesia modificasse alguma coisa. Ela não podia ser inútil, algo sem sentido, porque eu tinha feito dela o sentido da minha vida. Então esse galo, a identificação com esse animal, é uma coisa muito profunda em mim, porque toda a minha infância está ligada àquelas aves sem retrato. Ninguém tira retrato de galinha, não é mesmo? Elas não têm álbum de fotografia, não têm nada. Elas chegam, ciscam e desaparecem. Eu achava isso injusto, entende? Esse galo me infundia espanto e solidariedade. Então era isso.
JORGE – E agora minha última pergunta para o “Gullar Gullar”, que é a seguinte: conversando recentemente comigo na Biblioteca Nacional, quando inclusive lhe falei sobre o “Galo galo”, você me disse que não iria mais fazer poesia, que já escrevera tudo, que concluíra o ciclo de sua expressão em nível poético. Fiquei muito espantado com aquela afirmação, pois ela me lembrou a imagem de uma fábrica que houvesse cerrado suas portas antes do tempo. De modo que eu gostaria de saber agora o que você está fazendo ou o que pretende fazer. Enfim, como é que está no momento essa questão?
GULLAR – Lembro-me dessa conversa na Biblioteca. Passei um período critico depois do último poema de Barulhos, que é minha última coletânea poética. Esse livro é de 1987 e estamos em 1997. Faz, portanto, dez anos que estou sem publicar livro de poemas. 0 último livro não chega a 50 poemas. E veja bem que, meu livro anterior é de 1980. Quer dizer, sete anos para escrever esses últimos poemas. E mais dez para escrever muito pouco. Ao terminar o último poema de Barulhos, que se chama “Nasce o poema”, tive a impressão de que o veio se esgotara. Mas curioso é que esse poema nasceu de uma conversa, quando contei que gosto de escrever caminhando entre as pessoas na rua, que é uma coisa que costumo fazer e que me dá muita alegria. Fui andar pelas ruas de Copacabana, no meio daquela gente toda, enquanto o poema nascia e ninguém sabia de nada. Eles ali, ao meu lado, e o poema nascendo…
ADRIANO – Quer dizer, você aí é antiparnasiano no sentido de que a rua não é esse “turbilhão estéril”?
GULLAR – Não é mesmo. Mas, enfim, assim nasceu “Nasce o poema”, onde tento descrever como surge a poesia quando um flâneur caminha solitário em meio à multidão. Ninguém sabe exatamente como a poesia irrompe de onde menos se espera, às vezes cheirando a flor, outras vezes com o olor de fruta podre e que na podridão se abisma. E quanto mais perto da noite, mais grita o aroma, ora num mar de silêncio, ora num pequeno armarinho do Estácio ao cair da tarde. É que, quando eu entrei naquele armarinho do Estácio, caí na minha própria realidade. O armarinho do Estácio, imagine, foi em 1955, e eu não esperava falar sobre isso. Lembro-me de que eu estava ali com o Amílcar de Castro. Paramos para esperar o ônibus. 0 sol estava brabo e então resolvi entrar naquela loja ordinária, onde vi uma caixa de papelão com xícaras empoeiradas: “xícaras empoeiradas / numa caixa de papelão / enquanto os ônibus passam ruidosamente // à porta e ali / dentro do silêncio da tarde menor do comércio / do Rio de janeiro / na loja do Kalil / estaria nascendo / o poema?”. Eu já estava mergulhando no poema, mas o ônibus chegou e o encanto se esvaiu. Esse poema acabou nascendo 32 anos depois e no justo momento em que comecei a escrever outro. Se alguém o ler com atenção, irá perceber que esse poema diz assim: “Eu não devia ter pego aquele ônibus.” São frases que não chegam a ser poéticas, e sua própria construção é prosaica. Então trata-se do poema em que fui mais prosaico, como se eu houvesse descido até o rés-do-chão. É isso mesmo: descer dos cumes da poesia até o rés-do-chão da prosa. A importância deste poema é justamente esta: a de transformar em poesia uma imensa constelação de prosaísmo, porque, veja bem, se o poema é o lugar onde a prosa vira poesia, onde o carvão vira fogo, quanto mais carvão, mais fogo, quanto mais prosa, mais poesia, quanto mais matéria para transformar, mais matéria a ser transformada. Mas sucede que a palavra não é carvão. Assim, quando terminei o poema, disse para num mesmo: mais abaixo do que isso, eu toco o chão. E, mais uma vez, entrei em crise. Durante meses não me preocupei com a questão do novo. Mas a verdade é que o poeta de A luta corporal continuou a existir e, com ele, o poeta que não quer recorrer a artifícios. Não sou um artífice nem um artesão. O poema, para mim, é uma aventura, uma felicidade, assim como o amor. Não faço poesia para angariar glória, não penso em entrar para a Academia nem ficar rico. Só escrevo poesia por prazer e amor, pelo que o poema significa como experiência, existencial. E só o comparo ao amor sexual, ao abismar-se na mulher. Não sei se alguém poderá entender, mas considero esse poema como um dos melhores que já escrevi. Porque esse poema “nasce do poema” e de sua riqueza existencial, porque os melhores poemas são os que nascem da vida, são os poemas que a vida engendra. Então, depois de escrevê-lo, recusei-me a me valer do que a vida engendrou para transformá-lo em técnica poética, para produzir poemas como a Volkswagen produz automóveis. Não sou uma linha de montagem, mas apenas um poeta que se emociona. A poesia só existe quando nasce de um acontecimento existencial. Se não for assim, não me interessa. E então silencio. Fico meses e anos sem escrever nada. Foi por isso que, naquela conversa com o Jorge Wanderley, me parecia que eu chegara a um beco sem saída.
ADRIANO – Certa vez, na televisão, você disse que também não escrevia muito porque havia livros demais no mercado e que você só escrevia quando percebia essa maturação necessária à produção do poema. Esse comentário me chamou a atenção.
GULLAR – O meu poema nasce do espanto.
ADRIANO – Então eu queria lhe perguntar o seguinte: diante do espanto da morte de sua grande companheira, Thereza Aragão, uma belíssima figura e que o introduziu em tantas coisas, e diante da morte de seu filho, da perda do seu filho, como é que você reagiu? Trata-se de uma fonte de inspiração? Como é que você encara a morte em sua poesia?
GULLAR – 0 que há de poemas sobre a morte em meus livros não é brincadeira. 0 último poema que escrevi e que, salvo algum contratempo, deverá sair no suplemento “Mais”, da Folha de S. Paulo, intitula-se “Nova concepção da morte”, que é um poema longo em versos alexandrinos, mas sem respeitar muito as normas de metrificação. Esses golpes que eu sofri, como tanta gente já sofreu – quem é que não perdeu um irmão ou uma pessoa querida? -, levaram-me à conclusão de que eu tinha da morte uma visão teórica, apesar de haver perdido até amigos muito próximos e sobre cujas mortes cheguei a escrever, como nos casos de Clarice Lispector e Armando Costa. Mas quando meu filho morreu, não consegui escrever pois foi um golpe de que nunca me refiz, uma dor de que nunca me curei. E jamais houve o necessário distanciamento emocional para que eu escrevesse sobre isso.
SECCHIN – Quer dizer que você não escreveu sobre essa morte?
GULLAR – Não. Ou melhor, depois escrevi, mas não foi um poema, e sim umas poucas palavras num pedaço de papel. É que, no primeiro Dia de Finados depois que ele morreu, fui ao cemitério para encontrá-lo. E encontrei apenas um bloco de granito negro sem nenhuma inscrição. Nada. Ele estava absolutamente inalcançável. Então peguei uma flor que estava no chão e escrevi num pedaço de papel: “Eu te amo, meu filho.” Coloquei a flor em cima do papel e saí chorando. Uma flor e um pedaço de papel, como se isso fosse chegar até ele!
SUZANA – Você ainda diria então, como disse no poema “Alegria”, que “o sofrimento não tem nenhum valor”?
GULLAR – Não é bem assim. É que naquele instante eu estava sofrendo demais. Veja bem: não só eu mas todos os meus companheiros de exílio sofremos muito. Não sofri mais do que ninguém, mas a dor chegou num ponto tal que dois filhos enlouqueceram no exílio. Eu já estava num desamparo absoluto, desligado de tudo, dos meus amigos, da minha cultura, da minha vida, da minha cidade, do meu país, da minha língua. E de repente dois filhos enlouquecem. Enfim, um desespero absoluto. E então o sofrimento quase me engoliu. Mas resisti. E resisti porque o que desejo é a felicidade. É apenas nesse sentido que “o sofrimento não tem nenhum valor”.
ADRIANO – Você escreveu os seguintes versos: “Do mesmo modo que te abriste / a alegria abre-te agora ao sofrimento / que é fruto dela e seu avesso ardente.” Que sentido se pode atribuir a isso?
GULLAR – Veja bem: eu me abri ao sofrimento porque não se pode falsear nada. Não posso me negar à vida. Agora, o sofrimento não tem nenhum valor. E quando eu o digo é porque, se eu fizer dele um valor, irei me conformar ao sofrimento. E aí começarei a me lastimar: ah, sou um pobre coitado, sou um mártir da humanidade … Essas coisas.
NEIDE – Mas o sofrimento não faz parte da condição humana?
GULLAR – Isso é óbvio. Se assim não fosse, nenhum de nós sofreria. 0 que estou dizendo é que o sofrimento não tem valor. Que cada um faça dele o que bem entender. Os católicos, por exemplo, transformaram o sofrimento no valor absoluto. já os budistas o dissolveram no nirvana, onde não se sente mais nada. Há um poema meu que termina com estes versos: “As baratas lá do fundo do esgoto estão olhando a luz, / querem ser felizes.” Eu quero a felicidade, e não o sofrimento. Se a única coisa que restasse fosse o sofrimento, ainda assim eu o rejeitaria.
IVAN – O que você está dizendo pode servir de aval a uma frase que Chesterton escreveu num ensaio sobre Byron. Diz ele que, mesmo quando Byron ou qualquer outro poeta se encontra no ápice do sofrimento, doente, desamparado, sem a menor perspectiva de vida, a parte que neles cria alguma coisa é aquela que ainda não adoeceu.
GULLAR – É claro. O que é a obra de arte, mesmo quanto tem por tema o sofrimento, senão uma forma de transformá-lo em alegria estética? Veja o caso de Sófocles, por exemplo. Quando ele c,hegou ao conhecimento absoluto da dor humana, escreveu Antígona. E o que significa isso? Significa que ele transformou aquela coisa insuportável num monumento à alegria. Veja bem a beleza que há em todos aqueles versos, nas atitudes humanas das personagens, na nobreza dos gestos e pensamentos.
IVAN – Mudando um pouco de assunto, Gullar, eu gostaria que você me respondesse a uma pergunta sobre algo que sempre me intrigou. É o seguinte: o titulo de seu livro Barulhos tem alguma relação com ruídos ou rumores, ou significa apenas “barulhos”? Pergunto isso porque os termos “rumor” e “ruído” me parecem poetizações de barulho.
GULLAR – É Barulho porque “barulho” é a palavra “barulho”. Então só existe barulho em português, pois em qualquer outra língua será outra palavra. Logo, barulho, arrulho, marulho. Por isso é que a poesia, no fundo, é intraduzível. Porque barulho é e só pode ser barulho.
SUZANA – Voltemos àquelas questões mais técnicas da poesia. Eu queria saber qual é o limite entre a prosa e o verso. Como é que você percebe, dentro de um texto, quando você está próximo de transformar um poema em prosa?
GULLAR – Eu disse que, a certa altura de minha vida, implodi a linguagem, propondo em seguida que se fizesse uma poesia assintática, ou seja, sem discurso. Depois de todas essas experiências, a minha opinião sobre isso é a seguinte: a poesia é um falso discurso. Não é que ela seja falsa no que diz. Mas é um falso discurso no sentido de que o poeta talvez gostasse realmente de transformar o poema num objeto. Acontece, porém, que a linguagem verbal tem a sua natureza própria, ou seja, ela só se move no discurso. 0 grande erro da poesia concreta – e confesso-me aqui culpado por haver sido o autor daquela proposta – foi acreditar que se poderia fazer poesia sem discurso, quando a linguagem verbal é, por natureza, discursiva: sujeito, verbo, objeto. Pois a palavra que está no dicionário é abstrata, a palavra em estado de dicionário, conforme o poeta Carlos Drummond de Andrade, ainda não é poesia. A palavra “flor” é uma abstração. Agora, a flor que existe é aquela flor que eu cheiro, a flor da minha infância, a flor que se debruça sobre o muro. A palavra, para existir, implica vida, vivência, convivência. Essa é a palavra do poeta. Bem, como eu disse há pouco, a linguagem só se no discurso. Então, o poeta está condenado ao discurso, mas ele não quer discursar, porque o discurso conduz inevitavelmente ao conceito e a uma simplificação das coisas, da experiência humana. Se vejo um jarro de flores, ele pode ser indiferente a mim, mas se de repente ele se revela, sua atualidade é que é poesia. A poesia, para mim, é a atualização do atual, porque o mundo é um mistério de uma riqueza extraordinária. Seria insuportável viver num mundo em que toda a atualidade das coisas estivesse presente, mas, na verdade, não está. Quando sob as camadas dessa coisa cinzenta chamada rotina alguma coisa brilha, faísca, então, sim, dá-se o espanto platônico. Em meu último livro há um poema em que falo do cheiro da tangerina. Mas o que seria esse cheiro e como descrevê-lo num poema? Se eu tentar transmitir num discurso o que é o cheiro da tangerina, não vou conseguir. Irei apenas empobrecer essa experiência. Na verdade, o poema é um circunlóquio, em que recorro ao discurso para acabar com ele, para criar, no fundo, uma coisa que é uma grande e complexa metáfora.
NEIDE – É nesse sentido, Gullar, como você mesmo sustenta, que o poeta “é contra a linguagem”?
GULLAR – É. É porque, veja bem, “rosa” não é a rosa. Tenho que destruir a palavra “rosa” para mostrar a rosa, o frescor e o perfume da rosa. Ou o cheiro da tangerina. Tenho que revelar o que está para além da superfície do fenômeno, pois é sob a aparência sensorial das coisas que se desenvolve um processo complexíssimo chamado linguagem. Num de seus poemas, Drummond escreve: “Eu, mistura de seda e péssimo.” O que se vê aí é a transformação da linguagem, pois seda não é mais seda e péssimo não é mais péssimo.
MOACYR – Você disse que o sofrimento não tem nenhum valor. Agora, para mim, o sofrimento é muito importante, o sofrimento existe como motivação na medida em que leva o homem a lutar consigo mesmo, ou seja, o homem é um ser que resulta da negação do não-ser na medida em que tem consciência daquilo que ele não é, ou não pode ser, ou do que pulsa dentro dele: a morte, o mistério, o acaso. Eu luto contra a dor para conquistar esse não-ser de que tenho consciência, ou seja, como diz Marx no quarto capítulo de O capital, somente o homem tem a consciência de que é necessário resgatar a humanidade de que o privaram. De repente ele se vê amputado do ser que ele devia ser e toma a consciência desse ser do qual foi exilado. Então ele passa a ser movido pela melancolia, a solidão, o desespero, o sofrimento. Toda a minha poesia é impulsionada por isso e, na medida em que sou impelido por isso, sonho com a utopia que o nosso Gullar chama de alegria, isto é, um sentimento de que seremos irmãos de nossos semelhantes e passaremos a viver em comunhão. Sendo assim, tomo-me cúmplice desse movimento que nos leva a fazer com que a alegria apareça dessa forma. Foi mais ou menos isso que você disse?
SUZANA – Quando você está escrevendo um poema, como é que esse processo se realiza? Você corta muito, reescreve o texto ou o poema já sai pronto?
GULLAR – Veja bem: a verdade é que nem todo poema nasce da mesma maneira. Então, às vezes, ele surge pronto, às vezes não. Agora, de um modo geral, o fundamental para mim é o grau de intensidade psicológica que eu alcanço quando estou escrevendo. já o disse aqui metaforicamente: é preciso atingir a temperatura em que todos os metais se fundem, porque, se estou no nível da prosa, o poema não alça vôo. É necessário que eu alcance um grau de consciência distinto do que normalmente tenho. Essa é, aliás, uma das razões pelas quais escrevo pouco. E aqui não importa se você domina a técnica ou tem a sabedoria para controlar a palavra. A propósito disso costumo citar o mestre Oswaldo Goeldi, mestre da moderna gravura brasileira. Quando ele dizia “não sei gravar”, queria dizer com isso apenas o seguinte: embora eu saiba gravar e conheça todas as técnicas de meu oficio, isso não é suficiente para que surja a obra de arte. O mal dos parnasianos, dos bons e dos maus parnasianos, é que eles detinham um tal domínio da arte poética que dela podiam se valer a qualquer momento para escrever o que bem entendessem. Foi contra isso que se rebelou João Cabral de Melo Neto, e essa é, na verdade, a essência da poética cabralina, ou seja, ela não se deixa levar pelo automatismo da linguagem. Trata-se de um poeta que cuida da forma de uma maneira rigorosa, mas que, ao mesmo tempo, rejeita o decassílabo, que é o verso da língua, da índole da língua, e se vale de medidas métricas pouco espontâneas na língua portuguesa, fazendo-o exatamente para poder controlar com mão de ferro o fluxo verbal.
JORGE – “Hay que tener el duende”, diriam os espanhóis.
GULLAR – Sim, é claro. A técnica é imprescindível, mas não é o bastante, pois, caso contrário, qualquer poeta maduro e experimentado faria alta poesia quando bem quisesse. Todo poema que Drummond ou Lorca escrevesse seria sempre um grande poema, e cada vez melhor, porque cada vez eles dominariam mais o processo. E não é bem isso o que acontece.
ADRIANO – Tenho aqui uma pergunta para lhe fazer. É que escrevi um texto crítico sobre seu livro Barulhos que continua inédito. Bem, há nesse livro um poema que me desperta sempre muita atenção, que é o “Poema poroso”, que julgo emblemático de sua obra por uma série de razões. Uma delas reside no fato de que aí você retoma aquele papo galináceo. Gosto desse poema porque me parece que ele estabelece uma certa poética que eu chamaria aqui de poética da porosidade e que se contrapõe a toda a sua poesia. Ela se opõe, por exemplo, à obscuridade, à deformação do real, ao silêncio, à impessoalidade, que é uma tradição da lírica que nos vem desde Baudelaire, mas sobretudo de Mallarmé. Então você recupera nele essa coisa existencial que julgo extremamente importante. Como você já disse aqui antes, o que move o artista é a necessidade de exprimir sua própria emoção e sua visão pessoal da existência. Mas esse artista não seria movido também por uma necessidade, digamos, expressional que se situasse na tradição, uma necessidade de marcar um discurso próprio em oposição, àquilo que já foi feito e que você também faz em sua própria trajetória poética? Essa é uma pergunta. A outra é a seguinte: Barulhos não representaria aquela poética da porosidade, avessa à opacidade e ao enigmático? Enfim, aquele poema seria “poroso” no sentido de que busca vivenciar a aventura da comunicabilidade?
GULLAR – Você tem razão. É tanto uma coisa quanto a outra. Confesso a você que, em razão de minhas preocupações de querer compreender a poesia e sobretudo o fenômeno estético, vivo tentando encontrar definição para tudo. Mas, ao mesmo tempo, percebo que sempre fica algo de fora. Estou convencido de que é impossível encontrar uma definição perfeita e cabal para as coisas. É verdade que o poeta luta para definir e afirmar sua própria existência, mas é verdade também que há nele uma vontade expressional, como você diz. Por exemplo: eu afirmei aqui que, de um modo geral, minha poesia nasce do espanto. Platão diz que o conhecimento nasce do espanto. É isso, pelo menos, o que acontece comigo e com a grande maioria de meus poemas. Mas “Nasce o poema”, por exemplo, não nasceu do espanto como, aliás, já confessei nesta entrevista. Esse poema tem outra origem, ou seja, foi um poema que “se traduziu” a si mesmo. É assim que tento explicá-lo, se admitirmos aqui que um poema possa ser explicado. Como sou uma pessoa meio esquisita e tenho a fama de participar intensamente de tudo, já que sou também um poeta político, ninguém se dá conta que sou, ao mesmo tempo, uma pessoa muito reflexiva, solitária, e que vive trancada de si mesma. A única coisa que posso dizer a você é que o poema nasce não se sabe como e de quantas formas, mas também por um impulso que temos de nos expressar, de uma obra diferenciada. E o pior é que, concluído o poema, o encanto do processo se desfaz. E só o resgatamos se escrevermos outro.
ADRIANO – Quero acrescentar aqui um dado pessoal, ou seja, a importância que você exerceu em minha própria formação de poeta. Algumas pessoas dizem que o meu poema “Práxis” tem forte influência sua. Admito até que muitas de minhas idéias sobre poesia pagam tributo à sua obra, sobretudo a seu conceito sobre essa relação que existe entre a poesia e a experiência existencial concreta. E há uma passagem em sua obra de ensaísta que chamou muito a atenção. É quando você cita Goethe para deixar claro que a natureza da poesia “está na circunstância de que ela expressa um particular sem cogitar do universal”. Você, por sua vez, afirma que o específico da obra de arte é o particular e, portanto, uma experiência determinada, única, concreta. Será que a partir disso poderíamos afirmar que a poesia busca aquela unidade perdida entre a pessoa lírica e a pessoa empírica que vêm do romantismo goethiano?
GULLAR – De algum modo, sim, não é mesmo? Essa é, sem dúvida, uma verdade.
ADRIANO – O “Poema poroso” seria um exemplo disso?
GULLAR – Estranho, mas eu já havia até me esquecido desse poema. De fato essa galinha entra nele de uma maneira inesperada, mesmo para mim, que o escrevi, e não há aparentemente nenhuma lógica nessa aparição. Mas há uma lógica profunda que nem mesmo eu sei explicar. Talvez uma identidade com aqueles quintais e galinheiros da infância.
ADRIANO – Gullar, o que acho interessante em sua poesia é essa tensão que se estabelece entre você e aquela realidade rente ao chão, mas que de alguma forma se ilumina, como se o corpo fosse trespassado por um eclipse. É muito evidente essa sua ligação com o corpo, essa fogueira de um metro e setenta”, como você diz num poema de Barulhos.
GULLAR – Na verdade, a questão é essa, quer dizer, a felicidade, a beleza da vida, porque você vive acuado pela morte, a injustiça, a perseguição sob todas as formas e, ao mesmo tempo, dentro de cada um de nós está pulsando aquele apelo de felicidade, de alegria. Que coisa esplêndida é a própria existência! E como está sepulta debaixo de tantas coisas! E aí, de repente, é como se cada um de nós renascesse na modorra enfadonha do dia-a-dia. É quando sentimos a irresistível necessidade de celebrar a vida, a beleza que há na vida e mesmo na decomposição. Quando falo da banana podre, não há como dizer que ela não apodrece. Não posso dizer que as pessoas não morrem, mas, ao mesmo tempo, sinto-me impelido a exaltar a beleza do que, apesar da morte, continua vivo.
ADRIANO – Gullar, você tem uma ligação muito forte com a infância, não é mesmo? Há até um verso em que se refere ao “menino que não quer morrer”.
GULLAR – É, sou ainda esse menino.
ADRIANO – Você é também esse menino nordestino, maranhense, que resgata com sua memória também a poesia?
GULLAR – De certo modo, sim, porque o problema é o seguinte: ou você faz poesia porque ambiciona entrar para a história da literatura, ou faz poesia para as pessoas. Às vezes, recebo cartas de pessoas comovidas e até de gente que estava morrendo mas conseguiu iludir a morte. Houve um rapaz que estava com um problema muito sério, com uma paralisia que lhe imobilizara um braço e uma perna e já começava a lhe roubar a fala. E foi então que, certo de que não tinha mais jeito, passou por uma livraria e comprou um livro meu. Na carta que me escreveu depois de ler o livro, quando já estava recuperado daquela paralisia, ele me confessou que aquilo que mais o tocara era o fato de que eu, como poeta, não lhe ocultara o sofrimento, as desgraças, a dor, e, ao mesmo tempo, celebrava a vida. Naquela situação de condenado à morte, ele não queria alguém que lhe dissesse que tudo estava bem, mesmo porque não estava, e sim alguém que lhe falasse de coisas que tivessem a ver com a realidade dura da vida.
NEIDE – Bem, de certa forma você, paradoxalmente, afirma o valor do sofrimento. Então eu gostaria de saber qual seria o lugar da poesia numa sociedade cada vez mais informatizada e globalizada que me leva, pelo menos a mim, a um certo desespero e mesmo ao sofrimento.
GULLAR – Penso que, mais do que nunca, a poesia é necessária. Quanto mais a sociedade se torna antipoética, mais necessária se torna a poesia. Eu gostaria de dizer aqui uma coisa que, de certa forma, responde à sua pergunta. É o seguinte: sempre temos a ilusão de que existe um público que lê todos os jornais, que ouve todos os canais de tevê e que devora todos os livros. Supõe-se que esse público exista porque a sociedade de massa cria essa ilusão. Quando lançamos a revista Piracema lá na Funarte, instituição de que fui presidente, a mídia não deu a mínima importância. Acontece que o interesse desse público leitor é muito diversificado, de modo que jamais aquelas 600 mil pessoas lêem esses jornais inteiros. Esse interesse está pulverizado pelas várias editorias e são raros os leitores que lêem um jornal de cabo a rabo. Então é ilusão pensar que esses mesmos leitores saibam de tudo o que acontece no país e no mundo, de maneira que essa informação de massa se torna uma grande confusão e até mesmo uma falácia. O sujeito que leu o seu livro e lhe envia uma carta, este, sim, é o seu leitor. Os poetas têm na verdade poucos leitores, e um que seja vale por mil, pois não são aqueles 600 mil que compram o jornal que irão ler os seus poemas. Se assim fosse, aliás, as obras dos grandes poetas se esgotariam numa semana, e não é isso o que acontece. De modo que a globalização de que você fala, Neide, nos atinge numa escala irrisória. Aconselho-a, inclusive, a não sofrer muito com isso.
SECCHIN – Eu gostaria de sair desse assunto e, momentaneamente, da questão da poesia para entrar em duas áreas laterais, mas importantes de sua produção, que são o ensaísmo e a dramaturgia. Naquela primeira observamos que você, em Vanguarda e subdesenvolvimento, vincula a questão da produção literária à questão social. Por outro lado, percebemos que sua ensaística se volta cada vez mais para as artes plásticas. Então eu pergunto: em que medida ficou sufocada em você uma vocação de crítico literário e por que essa linha ensaística literária, de que se poderia esperar muito, permaneceu relativamente minimizada do ponto de vista ensaístico? E segundo: qual é a importância de sua produção teatral e televisiva em um diálogo com sua poesia? Seria algo isolado e que você fez com objetivo mais comercial, com ou sem aspas, e que não se comunica com a poesia?
GULLAR – Primeiro: com raras exceções, eu sempre escrevi ensaio com o objetivo de defender a minha poesia e a minha visão estética. Se você prestar atenção, estou sempre brigando e costumo dizer que minha ensaística é, na maioria das vezes, fogo de barragem para permitir que eu siga meu caminho. Na época da vanguarda, por exemplo, eu estava ali defendendo uma poesia ligada à vida brasileira. É claro que existe um monte de equívocos, de coisas com que hoje concordo e também algum sectarismo político. Existe alguma simplificação, ou melhor, existiu. Mas considero fundamental aquele livro. No fundo, o que quero dizer é que a experiência estética é particular. Não cabe afirmar que a vanguarda em Nova York deve ser vanguarda no Brasil, o que, a rigor, seria uma antecipação do fenômeno da mídia, da globalização, e isso eu rejeito. O que eu sempre disse e continuo a dizer é o seguinte: você chega na Grécia e lá encontra o mesmo rádio que você já viu em Madri, em Paris, no Rio de Janeiro, assim como a mesma camisa, o mesmo tipo de paletó, o mesmo tipo de capa. Tudo bem, é a globalização. O mundo inteiro tornou-se uma coisa só. Mas o fato é que não se tornou. Vai conversar com as pessoas, vai mais fundo na vida delas. Aquele sujeito que nasceu em Atenas, que vive em Atenas, ele tem uma porção de coisas que são só dele, que são só de Atenas, que pertencem apenas àquela cultura, àquela história. E isso é natural, isso é o homem, todo mundo tem a sua própria história, sua história coletiva e sua história individual, Somos brasileiros, não podemos nos tomar ingleses ou alemães. De modo que, por mais que você disfarce essa origem específica, ela é que constitui de fato a fonte da arte. Mário de Andrade dizia que a arte internacional é nacional de algum país. Quanto a sua outra pergunta, respondo que comecei a fazer teatro quando, à semelhança de O marinheiro, de Fernando Pessoa, escrevi uma peça que não tinha ação dramática e que, na verdade, era um recitativo ou, como diz o poeta português, um “drama extático”. Só comecei a fazer teatro mesmo quando entrei para o CPC da UNE, onde me envolvi com o pessoal que fazia realmente teatro. O teatro tem a virtude de atuar aqui e agora, mas tudo que se encena é perecível, efêmero. Trata-se de uma tentativa de ação direta e imediata, e eu comecei a fazer teatro por razões políticas. É claro que estudei dramaturgia, pois não gosto de improvisações. Então aprendi a linguagem que hoje me possibilita escrever tampara a televisão.
JORGE – Eu diria até que o Hamlet, dramaturgicamente, é um pequeno desastre. E no entanto é uma obra-prima. E aqui uma pergunta: que leituras permitiram que você se instrumentasse dramaturgicamente?
GULLAR – Leituras de peças e discussões de trabalho. A dramaturgia nada mais é que a encenação de uma história. já a novela de televisão é como a negaça da dramaturgia. E quando digo que a telenovela não tem dramaturgia, não é por culpa dos autores, e sim porque lhes propõem que escrevam uma história em duzentos capítulos, e claro está que não existe dramaturgia que resista a duzentos capítulos. Nenhuma história da humanidade, por exemplo, comportaria duzentos capítulos. Daí resulta que o autor é obrigado a gastar horas e horas para não dizer coisa alguma. O exemplo da boa narrativa seria o do cinema, não é mesmo? Porque o cinema se baseia numa linguagem sintética. E o bom teatro também se vale de linguagem sintética. Bem, foi isso o que aprendi. Depois fui convidado para fazer roteiros de televisão. E só os escrevo porque sou pago, pois ninguém, em sã consciência, escreve uma novela, para depois oferecê-la à televisão. Só trabalho para a televisão porque sou pago. Enfim, faço com seriedade mas por dinheiro.
SECCHIN – Será sempre uma coisa menor e que nada tem a ver com sua poesia, não é assim?
GULLAR – É claro, não tem nada a ver com minha poesia. Só queria acrescentar que escrevo esses roteiros com prazer, sobretudo porque estou sempre criando situações, estou sempre brincando. Só me recuso mesmo a escrever textos lacrimogêneos e sentimentais. Isso eu não faço.
SECCHIN – E justamente por causa dessa vertente lúdica o texto flui mais fácil, não é mesmo?
GULLAR – Sim. Mas sabe por quê? Porque adquiri a tarimba do teatro. Agora, há na televisão uma exigência de objetividade, seja numa novela, seja numa minissérie. O difícil é você montar o esqueleto do capítulo, pois há um ritmo que, na verdade, é dramatúrgico.
SECCHIN – Você escolhe o que vai desenvolver, Gullar?
GULLAR – Não. Não é bem assim. A Central Globo de Produções propõe uma novela. Ou uma minissérie. O roteirista é então chamado para escrever o texto em tantos capítulos. Sempre trabalho com o Dias Gomes e o Marcílio Moraes. O Dias é o titular das minisséries ou novelas. Certa vez encomendaram à nossa equipe uma adaptação de Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado. Cada um de nós foi reler o romance e propor como fazer a história. Só que a emissora propôs 35 capítulos. Eu reli, o livro e disse ao Dias: dá cinco capítulos. Aliás, já deu um longa-metragem que é bom. O Dias e o Marcílio concordaram comigo e concluímos que seria uma mão-de-obra esticar o texto ao longo de 35 capítulos. E olha que, na verdade, haviam sido propostos 40. O Dias é que negociou aquela pequena redução. No final, ficou com apenas 24 capítulos.
IVAN – Embora veja muito pouco essas produções teledramatúrgicas, quero aqui cumprimentá-lo por sua participação no roteiro da minissérie As noivas de Copacabana, que considero uma obra-prima no gênero. Qual foi o segredo, Gullar?
GULLAR – As pessoas em geral sabem pouco sobre o nosso trabalho em equipe, mas, no caso As noivas de Copacabana, tenho até uma certa vaidade de haver sido em parte responsável. E sabe por quê? Porque pediram ao Dias que apresentasse três sinopses. A primeira tinha umas dez laudas e a terceira – a das Noivas – apenas meia lauda. Eu é que insisti com ele para desenvolver a história. Ele alegou que seriam 16 capítulos e que o assassino não poderia matar uma noiva por capítulo, não ia dar certo. Então propus que “matássemos” noiva a cada quatro capítulos, como se fossem quatro diferentes histórias de assassinato. O Dias achou ótimo. Então decidimos que a ação transcorria em Copacabana, que é um bairro emblemático do Rio e que conheço muito bem. De modo que a história teria como algo tangível, concreto, o que daria margem ao desenvolvimento de aspectos poéticos da intriga dramática, instigando assim o imaginário das pessoas que ali residem. Em outras palavras: o tarado conheceu uma das vítimas na esquina da rua Hilário de Gouveia com a avenida N. Sr.a de Copacabana. O que há de admirável em Jorge Amado, por exemplo, é que ele criou ficcionalmente a cidade de Salvador. Então você vai à Bahia e encontra aquela cidade que está em seus romances, uma cidade que é, ao mesmo tempo, imaginária e real. Outra coisa: o título inicial da minissérie também não era esse. Também eu, Ivan, considero essa minissérie uma pequena obra-prima. Não por causa de minha participação, é evidente, mas porque o trabalho de nós três resultou numa história fascinante. O Dias é o melhor teledramaturgo da tevê brasileira. O domínio que ele tem de seu oficio é extraordinário.
SECCHIN – O Adriano queria voltar ao tema da poesia.
ADRIANO – É por causa daquilo que você disse há pouco sobre a especificidade do pais e da a que se pertence. E então eu pergunto: onde se encontra, na sua poesia, na sua literatura, a pesquisa da palavra poética brasileira ao lado da pesquisa estética? Sob que ângulo se deve examinar a originalidade da fala brasileira? E por que você salienta o fato de que Cabral de Melo Neto incorpora no Cão sem plumas uma originalidade de linguagem ele poderia expressar?
GULLAR – Veja bem: eu não tenho preocupações nacionalistas nem regionalistas. A palavra que uso é a palavra cotidiana, a palavra de todo mundo. Ela está impregnada de tudo isso. Como minha poesia é a poesia do cotidiano, a palavra que utilizo é a mais vulgar. É claro que misturo com as outras, mas a base é essa linguagem coloquial de todo mundo.
SECCHIN – Gullar, eu queria fazer ainda duas perguntas. Para fazer a primeira tenho de ponderar o seguinte: você disse, e com muita pertinência, que a autocrítica o levou a eliminar aquele livro de estréia do conjunto de sua obra completa, mas, por outro lado, mesmo admitindo uma certa fragilidade daquela experiência do cordel, você a mantém em sua obra reunida, embora sabendo que será sempre o ponto fraco, aquilo que os críticos ranhetas dirão que não vale a pena. Bem, se você mesmo considera que esses poemas de cordel não constituem uma expressão maior daquilo que você foi capaz de realizar como poeta, e não como pregador político, por que você insiste em incorporá-los à sua obra, em vez de deixá-los como um episódio, digamos, à margem de sua produção? A segunda pergunta se refere à própria produção de seus livros. Por exemplo: você publicara Por você e por mim como um livro aleatório, um livro autônomo, e depois o inseriu em Dentro da noite veloz. Eu também percebi que Na vertigem do dia os poemas têm uma ordem inversa da que vemos em Toda poesia, e isso me chamou a atenção. Como é que você monta o livro e qual seria o seu critério ordenador?
GULLAR – Já pensei várias vezes em tirar esses poemas de cordel do meu livro. Eles foram incluídos quando publiquei, em 1980, minha poesia reunida sob o titulo de Toda poesia. A questão política ainda estava na ordem do dia. Estávamos apenas saindo da ditadura, e fazia somente três anos que eu voltara do exílio. A história da minha poesia está toda ligada àquela luta. Então eu não poderia, naquele momento, expurgar de minha obra poética reunida aqueles poemas de cordel. Pelo contrário, até acrescentei dois: um que nunca tinha sido publicado, que é “História de um valente”, sobre Gregório, Bezerra, e “Zé da Molesta contra Tio Sam”. Mas minha dúvida continua e não sei bem como resolver isso. Sei perfeitamente que esses poemas politicamente comprometidos não têm a qualidade dos outros, mas, ao mesmo tempo, eles fazem parte da história da minha poesia. Reconheço que, depois daquela poesia desidratada do neoconcretismo, daquele despojamento verbal a que submeti minha linguagem, esses poemas de cordel constituem, sob certo aspecto, um retomo à linguagem da poesia que ouvi quando criança nas feiras e nos mercados de São Luís. Mas não há dúvida de que, do ponto de vista da qualidade literária, eles teriam que ser excluídos de Toda poesia.
IVAN – A propósito disso, Gullar, lembro-me até que, em Uma luz no chão, você chegou. a escrever o seguinte: “Não me foi fácil desvencilhar-me de toda uma experiência cultural e poética requintada para expressar-me com a linguagem tosca dos cantadores de feira, e tampouco era meu propósito manter-me nesse nível de expressão. Tratava-se, com efeito, de um recomeço, que me possibilitava romper com o silêncio e o isolamento a que chegara.”
GULLAR – E, na verdade é isso mesmo.
SECCHIN – Gullar, eu gostaria de insistir aqui sobre a questão dos critérios a que você obedece para organizar um livro, não o Poema sujo, mas outros, como Na vertigem do dia e Barulhos, por exemplo. E faria ainda uma derradeira pergunta: se você fosse para uma ilha deserta, que poemas seus você levaria?
GULLAR – Resposta à sua primeira pergunta: organizo meus livros cronologicamente porque essa é a ordem a que os poemas têm de obedecer, já que, para mim, a poesia é uma experiência contínua e cada poema é um passo que dou: às vezes é um retorno, outras vezes um avanço, mas esse passo faz parte de um processo. Minha poesia é também uma reflexão sobre si mesma. Logo, não vejo por que alterar essa ordem. Quanto à sua segunda pergunta, antes de respondê-la especificamente, gostaria de dizer que considero os poemas que publiquei como a expressão cabal do que eu estava querendo fazer. Eram poemas cuja publicação se justificava por sua qualidade literária. Minha obra é muito pequena, cerca de 400 páginas, e resulta de quarenta anos de poesia. Sou muito exigente como poeta e só escrevo quando movido por alta-tensão. Recuso tudo aquilo que julgo indigno de mim, de modo que minha obra completa pode também ser entendida como uma antologia critica. Quando sinto que determinado poema não vai cumprir seu desígnio, rasgo-o.
JORGE – Você não abre mão da qualidade e da especialidade dos seus textos, mas vou aqui reforçar a pergunta do Secchin: que poemas seus você elegeria como os melhores ou levaria para uma ilha deserta?
GULLAR – Bem, todo autor tem poemas de que gosta mais. Alguém já disse que a qualidade de uma obra literária está determinada pela força de origem que ela tem, pelo impulso que a faz nascer. Você aprimora suas habilidades, mas em certos momentos a vida insufla uma emoção tão poderosa que o poema levanta vôo imediatamente.
IVAN – Você justificaria então o que Manuel Bandeira escreve numa das passagens do Itinerário de Pasárgada: “Eu não faço poesia quando quero e, sim, quando ela, a poesia, quer.”?
GULLAR – É isso aí. Bem, quanto àqueles poemas de que mais gosto, não sei se estou pronto para selecioná-los aqui e agora. Se vocês tivessem me avisado antes da entrevista, seria mais fácil. Mas vou tentar me lembrar. Eu citaria, por exemplo, “As pêras”, “Galo galo”, “Galinha”, “Vai o boi no campo” e “Roçzeiral”, todos de A luta corporal. E aí vamos dar um salto. Cito em seguida “Por você, por mim”, “Vietnã”, “Dentro da noite veloz”, “Traias do caju”, “Notícia da morte de Alberto da Silva”, “Uma fotografia aérea” e “Cantiga para não morrer”, que escrevi para uma bela mulher por quem me apaixonei – e ela por mim – na União Soviética, quando eu estava ali exilado. Entreguei esse poema a ela às vésperas de deixar Moscou. Gosto muito desse poema, cujo verso inicial diz: “Quando você for embora,/ moça branca como a neve me leve.” Em vez de dizer que eu ia embora, digo que ela é que se vai e que me leve em seu coração, e quando não o puder mais, me leve no esquecimento, Há também “Narciso e Narciso”, “Meu povo, meu abismo”, que escrevi quando voltei ao Brasil e me senti derrotado, “o cheiro da tangerina”, “Manhã de sol” e “Nasce o poema”. E alguns outros de que não me recordo agora.
SECCHIN – Agora, os poemas que não alcançaram esse nível você joga fora, rasga, guarda na gaveta? Como é isso?
GULLAR – Na maioria das vezes, eu sequer termino de escrever esses poemas. Pressinto que não vai dar certo e paro.
MOACYR – Você escreve primeiro à mão?
GULLAR – Depende. O Poema sujo, por exemplo, datilografei porque já sabia que seria muito extenso. Quanto aos poemas curtos, costumo escrevê-los primeiro à mão. Bem, já estamos aqui há quase três horas e acho que podemos concluir. E quero fazê-lo dizendo o seguinte: sempre que me chamam para fazer alguma coisa, dou o melhor de mim. Às vezes não sai tão bom porque simplesmente não fui capaz, mas procuro sempre fazer o melhor. Agora, se me perguntarem o que acho de mim, responderei que a única coisa que quero ser no mundo é o poeta que sou. Só isso. 0 único orgulho que tenho na vida é o de ser isso e apenas isso. Se não puder sê-lo, ou se não o consegui, tudo bem, mas foi o que tentei desde aqueles tempos em que a poesia me chamou em São Luís do Maranhão.