segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Manuel Bastos Tigre, "Deus humano"


Assusta-me este Deus de barba imensa,
Pai severo e tirano à moda antiga,
Que com o fogo do inferno os maus castiga
Porém, na terra, os bons não recompensa. 

Este Deus que a adorá-lo nos obriga,
Mas que só ama a quem o adula e incensa
Nunca há de ser o Deus da minha crença
Que eu venere e entre cânticos bendiga. 

O Jeová que no Antigo Testamento
Os profetas nos pintam, truculento,
É um velho Deus, motivo de pavor. 

Moço é o meu Deus, de eterna juventude:
Perdoa. Todo o mal muda em virtude.
De tão humano, é quase um pecador.

 

domingo, 30 de agosto de 2015

Paulo Mendes Campos, "O suicida"

 
Quando subiu do mar a luz ferida,
Ao coração desceu a sombra forte,
Um homem triste foi buscar a morte
Nas ondas, flor do mal aos pés da vida.
 
Com lucidez tremeu olhando tudo,
Como um falcão de súbito no alto
Estremece sentindo o sobressalto
Do abismo que lhe fala porque é mudo.
 
Às vezes vou ali, fico a pensar
Na paz que lhe faltou e que me falta
E no confuso alarme do meu fim.
 
O infinito silêncio me diz –– “salta”,
Enquanto faz-me a brisa respirar
O fumo da cidade atrás de mim.

 

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Carlos Drummond de Andrade









"Necrológio dos desiludidos do amor"

Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.

 Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia.

 Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e segunda classe).

 Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Vejam quem é o Deputado Pastor Marco Feliciano (PSC-SP), ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.


Ruy Espinheira Filho, "Crepuscular"


Ainda poder
escutar a Musa,
embora já imerso
na sombra difusa

que vai se adensando
para se fazer
uma treva de
nunca amanhecer.

Ainda poder
chegar à extrema
duração do dia
na voz de um poema,

mesmo humilde, apenas
suspiro da Musa
num adeus à beira
da noite difusa.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Ruy Belo, Réquiem para um cão"


Cão que matinalmente farejavas a calçada
as ervas os calhaus os seixos os paralelipípedos
os restos de comida os restos de manhã
a chuva antes caída e convertida numa como que auréola da terra
cão que isso farejas cão que nada disso já farejas
Foi um segundo súbito e ficaste ensanduichado
esborrachado comprimido e reduzido
debaixo do rodado imperturbável do pesado camião
Que tinhas que não tens diz-mo ou ladra-mo
ou utiliza então qualquer moderno meio de comunicação
diz-me lá cão que faísca fugiu do teu olhar
que falta nesse corpo afinal o mesmo corpo
só que embalado ou liofilizado?
Eras vivo e morreste nada mais teus donos
se é que os tinhas sempre que de ti falavam
falavam no presente falam no passado agora
Mudou alguma coisa de um momento para o outro c
oisa sem importância de maior para quem passa
indiferente até ao halo da manhã de pensamento posto
em coisas práticas em coisas próximas
Cão que morreste tão caninamente
cão que morreste e me fazes pensar parar
até que o polícia me diz que siga em frente
Que se passou então? Um simples cão que era e já não é

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

José Paulo Paes, "British Museum"


voltem por favor dentro de alguns anos

a essa altura deus todopoderoso já terá sido certamente
    incorporado à nossa coleção de antiguidades orientais

sábado, 22 de agosto de 2015

Ferreira Gullar











"O Poço dos Medeiros"

Não quero a poesia, o capricho
do poema: quero
reaver a manhã que virou lixo
                     quero a voz
a tua  a minha
aberta no ar como fruta na casa
fora da casa
                   a voz
dizendo coisas banais
entre risos e ralhos
na vertigem do dia;
                                não a poesia
o poema o discurso limpo
onde a morte não grita


                                        A mentira
não me alimenta:
                            alimentam-me
as águas
              ainda que sujas rasas
              afogadas
              do velho poço
              hoje entulhado
              onde outrora sorrimos

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Eucanaã Ferraz, "Quem"


Cheguei à mais absoluta baixeza:

usei da lógica; segui em linha reta
até o chão da certeza;

fui à razão, bebi suas regras;
delimitei o que era e o que não era.

Hoje porém posso vender a crédito
todos os meus pensamentos;

mas quem confiaria num comerciante
que a própria filosofia fia?

Minha pele, fiquem com ela,
é de graça e já não é minha.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Konstantinos Kaváfis, "Emiliano Monae, Alexandrino, 628-655 D.C."


Com palavras, com feições do rosto, e com maneiras
uma excelente armadura me farei,
e, assim, enfrentarei os homens maus,
sem ter medo ou fraqueza.

Vão querer prejudicar-me. Mas, de todos os que
se aproximarem de mim, ninguém saberá
onde estão minhas feridas, meus pontos vulneráveis,
sob as mentiras que me encobrirão.


Palavras de presunção de Emiliano Monae.
Porventura pode um dia fazer essa armadura?
Em todo caso, não se serviu dela por muito tempo.
Aos vinte e sete anos morreu na Sicília.

Tradução de Isis Borges da Fonseca.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Teixeira de Pascoaes, "A dor e o medo"


Quando sozinho, noite morta, rezo,
E a minha voz dos medos me defende,
E a tudo, à terra e ao céu, me sinto preso.
Vejo que a dor é a força que nos prende.

Enlouquecido de alma, canto e rezo.
Aflige-me o silêncio. Quem no entende?
A sombra me sufoca. É negro peso;
E, em fumo, do meu corpo se desprende. 


Ó noite triste, noite que apavora,
Golpeada de estrelas, a sorrir...
Desnorteado, o vento clama e chora !

E quem sou eu? Quem sou? Na noite escura.
— O medo à morte certa que há-de vir
E a dor de ser humana criatura.


domingo, 16 de agosto de 2015

Hilda Hilst, "VII poema da 'Vida Vazia'"


Tu sabes que serram cavalos vivos
Para que fiquem macias
As sacolas dos ricos?
Tu gozas ou defecas
Diante de ato sem nome
O rubro obsceno dessa orgia?

sábado, 15 de agosto de 2015

Ana Cristina Cesar, "Queria ..."


Queria falar da morte
e sua juventude me afagava.
Uma estabanada, alvíssima,
um palito. Entre dentes
não maldizia a distração
elétrica, beleza ossuda
al mare. Afogava-me.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Jorge Luis Borges, "A prova"


Do ouro lado da porta certo homem
deixa tombar sua corrupção. É inútil
elevar esta noite uma prece
a seu curioso deus, que é três, dois, um,
acreditando-se imortal. Agora
ouve a profecia de sua morte
e sabe que é um animal assentado.
Tu és, irmão, esse homem. Agradeçamos
aos vermes e o esquecimento.

Tradução de Josely Vianna Baptista

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Mário de Andrade

 

                   
 
 
 
 
 
 
 
 
"Poemas da Negra"
 
                                 a Cícero Dias

                     I
 
Não sei por que espírito antigo
Ficamos assim impossíveis...

A Lua chapeia os mangues
Donde sai um favor de silêncio
E de maré.
És uma sombra que apalpo
Que nem um cortejo de castas rainhas.
Meus olhos vadiam nas lágrimas.
Coberta de estrelas,
Meu amor!

Tua calma agrava o silêncio dos mangues.

                    II

Não sei si estou vivo...
Estou morro.

Um vento momo que sou eu
Faz auras pernambucanas.
Rola rola sob as nuvens
O aroma das mangas.
Se escutam grilos,
Cricrido continuo
Saindo dos vidros.
Eu me inundo de vossas riquezas!
Não sou mais eu!
 
Que indiferença enorme. ..
 
 
               III
 
 
Você é tão suave,
Vossos lábios suaves
Vagam no meu rosto,
Fecham meu olhar.
 
         Sol-posto.
 
É a escureza suave
Que vem de você,
Que se dissolve em mim.
 
        Que sono...
 
Eu imaginava
Duros vossos lábios,
Mas você me ensina
A volta ao bem.
 
 

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Eduardo Guimarães , "De Profundis Clamavi"


Desse profundo horror, de esplêndida memória,
ouve, Senhor, o brado unânime e maldito
que aos céus, vibrando, sobe! Ouve o sinistro grito
que é toda a angústia humana e toda a humana glória!

Ouve o que diz a boca exangue e merencória,
de amor gemendo! E o lábio ardente do precito*!
que em vão interrogou a sombra do infinito.
E o que sorveu, calado, a lágrima ilusória!

Ouve Deus de Sinai que tens o raio ao seio!
Nós clamamos a ti pelos perdões supremos
pela suprema paz ao nosso eterno anseio!

E queremos saber por que nos torturamos!
E clamamos a ti do Éden em que sofremos!
E clamamos a ti do Inferno em que gozamos!


* Precito: adj. Religião. O que, de acordo com determinada doutrina, está previamente condenado.
Que foi alvo de maldição; amaldiçoado, condenado, maldito, repudiado.

                                       

domingo, 9 de agosto de 2015

Reinaldo Ferreira, "Ânfora fui"


Ânfora fui;
O seu cadáver sou.

Emparedada neste museu,
Pasto do pó e dos olhares
Que não perscrutam a minha mágoa,
Eu sou quem fui,
Menos o fim que alguém me deu,
De conter vinho e mel e água...

Enfim, eu não sou nada,
Que há muito já se não propaga a mim
O calor de uma anca,
E o meu fresco conteúdo
Não encontra uma boca
E uma sede não estanca.

Do oleiro que me fez
- A poeira, talvez
Dispersa e reunida,
A contenha outra vida
Ou outra ânfora... -
Nem memória persiste do seu nome.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Gomes Leal, "A um corpo perfeito"


Nenhum corpo mais lácteo e sem defeito,
Mais róseo, escultural e feminino,
Pode igualar-se ao seu, branco e divino
Imóvel, nu, sobre o comprido leito! -

Nada te iguala! O ferro do assassino
Podia, hoje, mata-la, que o meu peito
Seria o esquife embalsamado e fino
D'aquele corpo sem rival, perfeito.

Por isso é muito altiva e apetecida; -
E o gozo sensual de a ver vencida
Há de ser forte, estranho e singular…

Como o das coisas dignas de castigo;
- Ou dum amante sacerdote antigo,
Derrubando uma deusa d'um altar.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Donizete Galvão, "Arte poética"


 A língua da vaca
lambe com gosto
o sal do cocho
e se não há mais sal,
a memória do sal
a madeira, o cocho,
até que tudo fique
polido por sua lixa.

A língua da vaca
recolhe com agrado
o restolho mijado
de rato do fundo do paiol
e mói, remói e tritura
o milho e a palha dura,
até que flores de espuma
brotem no canto da boca,
com suave perfume de leite.

A língua da vaca
lambe a cria trêmula,
num banho batismal,
e engole o mosto,
a gosma amniótica,
e a lamberá ainda,
quando quase novilha
exibir a filha
pústulas no lombo.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Miguel Torga, "Alvorada"


Amanhece...
E amanhece o desespero...
Dura condenação
Da vida humana!
Angústias a oprimir o coração,
Seguidas como os dias da semana.

Mais vinte e quatro horas
De negrura,
Que o sol nem-há de ver, na sua pressa,
Em vez dum claro apelo,
O pesadelo
Dum sonho mau, que apenas recomeça.



segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Jorge Luis Borges, "O espelho"


Quando menino, eu temia que o espelho
Me mostrasse outro rosto ou uma cega
Máscara impessoal que ocultaria
Algo na certa atroz. Temi também
Que o silencioso tempo do espelho
Se desviasse do curso cotidiano
Dos horários do homem e hospedasse
Eu seu vago extremo imaginário
Seres e formas e matizes novos.
(Não disse isso a ninguém, menino tímido.)
Agora temo que o espelho encerre
O verdadeiro rosto de minha alma,
Lastimada de sombras e de culpas,
O que Deus vê e talvez vejam os homens.

Tradução de Jocely Vianna Baptista

sábado, 1 de agosto de 2015

Carlos Drummond de Andrade












"Como um presente"

Teu aniversário, no escuro,
não se comemora.

Escusa de levar-te esta gravata.
Já não tens roupa, nem precisas.
Numa toalha no espaço há o jantar,
mas teu jantar é silêncio, tua fome não come.

Não mais te peço a mão enrugada
para beijar-lhe as veias grossas.
Nem procuro nos olhos estriados
aquela interrogação: está chegando?

Em verdade paraste de fazer anos.
Não envelheces. O último retrato
vale para sempre. És um homem cansado
mas fiel: carteira de identidade.

Tua imobilidade é perfeita. Embora a chuva,
o desconforto deste chão. Mas sempre amaste
o duro, o relento, a falta. O frio sente-se
em mim que te visito. Em ti, a calma.

Como compraste calma? Não a tinhas.
Como aceitaste a noite? Madrugavas.
Teu cavalo corta o ar, guardo uma espora
de tua bota, um grito de teus lábios,
sinto em mim teu corpo cheio, tua faca,
tua pressa, teu estrondo… encadeados.

Mas teu segredo não descubro.
Não está nos papéis
do cofre. Nem nas casas que habitaste.
No casarão azul
vejo a fieira de quartos sem chave, ouço teu passo
noturno, teu pigarro, e sinto os bois
e sinto as tropas que levavas pela Mata
e sinto as eleições (teu desprezo) e sinto a Câmara
e passos na escada, que sobem,
e soldados que sobem, vermelhos,
e armas que te vão talvez matar,
mas que não ousam.
Vejo, no rio, uma canoa,
nela três homens.
“Inda que mal pergunte, o Coronel sabe nadar?
Porque esta canoa, louvado Deus, pode virar,
e sua criação nunca mais que o senhor há de encontrar.”
Tua mão saca do bolso uma coisa. Tua voz vai à frente.
“Coronel, me desculpe, não se pode caçoar?”

Vejo-te mais longe. Ficaste pequeno.
Impossível reconhecer teu rosto, mas sei que és tu.
Vem da névoa, das memórias, dos baús atulhados,
da monarquia, da escravidão, da tirania familiar.

És bem frágil e a escola te engole.
Faria de ti talvez um farmacêutico ranzinza, um doutor confuso.
Para começar: uma dúzia de bolos!
Quem disse?
Entraste pela porta, saíste pela janela
– conheceu, seu mestre? – quem quiser que conte outra,
mas tu ganhavas o mundo e nele aprenderias tua sucinta gramática,
a mão do mundo pegaria de tua mão e desenharia tua letra firme,
o livro do mundo te entraria pelos olhos e te imprimiria sua completa
                                                                                        [e clara ciência,
mas não descubro teu segredo.

É talvez um erro amarmos assim nossos parentes.
A identidade do sangue age como cadeia,
fora melhor rompê-la. Procurar meus parentes na Ásia,
onde o pão seja outro e não haja bens de família a preservar.
Por que ficar neste município, neste sobrenome?
Taras, doenças, dívidas; mal se respira no sótão.
Quisera abrir um buraco, varar o túnel, largar minha terra,
passando por baixo de seus problemas e lavouras, de eterna agência
                                                                                              [do correio,
e inaugurar novos antepassados em uma nova cidade.
Quisera abandonar-te, negar-te, fugir-te, mas curioso:
já não estás, e te sinto,
não me falas, e te converso.
E tanto nos entendemos, no escuro,
no pó, no sono.

E pergunto teu segredo.
Não respondes. Não o tinhas.
Realmente não o tinhas, me enganavas?
Então aquele maravilhoso poder de abrir garrafas sem saca-rolha,
de desatar nós, atravessar rios a cavalo, assistir, sem chorar, morte de filho,
expulsar assombrações apenas com teu passo duro,
o gado que sumia e voltava, embora a peste varresse as fazendas,
o domínio total sobre irmãos, tios, primos, camaradas, caixeiros, fiscais
                                         [do governo, beatas, padres, médicos, mendigos,
                                         [loucos mansos, loucos agitados, animais, coisas:
então não era segredo?

E tu que me dizes tanto
disso não me contas nada.

Perdoa a longa conversa.
Palavras tão poucas, antes!
É certo que intimidavas.

Guardavas talvez o amor
em tripla cerca de espinhos.
Já não precisas guardá-lo.

No escuro em que fazes anos,
no escuro,
é permitido sorrir.