terça-feira, 31 de julho de 2018

Eucanaã Ferraz, "Naquele instante"


Amor só vem mais tarde, amar
só vem depois, amor é quando
tudo se foi, virá no próximo
trem, talvez no ano que vem

tudo será, por ora, pressentimento,
presságio, bilhete em branco do bem
gratuito para depois de gastos vultuosos
tributos de desamor e de nada.

Amarmos começa no fim? Amor
se escreve ao contrário? Roma,
porém, não abrirá palácios senão,
quem sabe, no próximo feriado.

Moroso, é após tudo pronto
o amor quando, tardiamente,
já não damos por nada ou
damos só tempo ao tempo.

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Abgar Renault, "7"


Este poema exigiu 7 folhas de papel.
Para escrevê-lo já fumei raivosamente 7 cigarros
e rasguei-o 7 vezes.
7 é um mau número: é o número 13 da minha vida.
Segundo várias aritméticas, não é divisível por 2,
e eu tenho horror a todos os números (e a todas as coisas)
não divisíveis por 2.
Sexta-feira, 7...
Isto hoje não acaba bem...
Vai a chuva ficar chovendo para sempre.
O meu relógio vai continuar disparado,
marcando horas inexistentes.
Ah, se os ponteiros andassem para trás!
Ah, se ao menos a chuva chovesse para cima
e eu fizesse destes nulos versos
uma folha noturna e molhada!

sábado, 28 de julho de 2018

Alexei Bueno, "Documentos vencidos"


As mudanças. Se abres uma gaveta
Dessas há uns vinte anos esquecidas
Só encontras cacos de diversas vidas,
Não só da tua, e como está repleta.

Há algum naufrágio tão longe da meta
Que, no entanto, nem teve? As doloridas
Faces a nos fitar, só concebidas
Para isso, não murmuram, a hora é quieta.

Exumação mais dura que a dos ossos
Tão incaracterísticos, que herança
Sublime é a nossa, escola de destroços?

E ainda há aqueles que falam da esperança
Neste lado feliz, fazendo esboços
De florzinhas e risos de criança.

sexta-feira, 27 de julho de 2018

Vinícius de Moraes e Paulo Mendes Campos, "Soneto a quatro mãos"


Tudo de amor que existe em mim foi dado
Tudo que fala em mim de amor foi dito
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-me escravizado.

Tão pródigo de amor fiquei coitado
Tão fácil para amar fiquei proscrito
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra o meu próprio dar demasiado.

Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.

Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.

quinta-feira, 26 de julho de 2018

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Konstantinos Kaváfis, "Melancolia de Jasão, filho de Cleândro, poeta em Comagena, 959 D.c."


O envelhecimento do meu corpo, do meu rosto
é a ferida de um punhal terrível.
Como não tenho resignação nenhuma,
recorro a ti, oh Arte da Poesia,
que algo sabes de remédios,
na tentativa de embotar a dor com Fantasias e Verbo.

É a ferida de um punhal terrível. –
Dá-me dos teus remédios, Arte da Poesia,
que me fazem – um instante – não sentir a ferida.

terça-feira, 24 de julho de 2018

Florbela Espanca, "Amar"


Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui… além…
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!…
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder… pra me encontrar…

domingo, 22 de julho de 2018

Adriano Espínola, "O poeta relê o velho manual de instruções"


Diante do branco, sangro:
aurora de papel que singro,
A palavra, angra.

2

O poema: lambida
da língua na fala ferida.

3

Triste, sim, de tão alegre:
a beleza que fica é breve. 

sábado, 21 de julho de 2018

Fernando Pessoa, "O rei"


O Rei, cuja coroa de oiro é luz
Fita do alto do trono os seus mesquinhos.
Ao meu Rei coroaram-nO de espinhos
E por trono Lhe deram uma cruz.

O olhar fito do Rei a si conduz
Os olhares fitados e visinhos
Mas mais me fitam, e mortas sem carinhos,
As palpebras descidas de Jesus.

O Rei fala, e um seu gesto tudo prende,
O som da sua voz tudo transmuda.
E a sua viva majestade esplende;

Meu Rei morto tem mais que majestade:
Fala a Verdade nessa boca muda;
Suas mãos presas são a Liberdade.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Al Berto, "Diários"



29.1.1985                                                                 rua do forte

lágrima

esqueci como se ama furiosamente. não venhas ter comigo, sobretudo hoje, que tanto tenho pensado em ti. não venhas.só na ausência ainda consigo desejar-te, se aqui vieres será um dia terrível para mim. terei de fingir, de enganar-me. quando estás não te amo, ou amo-te tão intensamente que às vezes me parece que isto não é amor. quando te sentas à minha frente e mexes as mãos ao falar, sinto-me atraiçoado. nenhum dos teus gestos me pertence verdadeiramente, nenhum deles foi criado só para mim. e fico cheio de ciúmes das tuas mãos. queria ser, ao menos, uma delas, ou um dedo apenas para poder andar sempre ligado a ti. saber o que tocas e acaricias. saber quem apontas e quem desejas, saber tudo que os dedos segredam quando adormecem enleados uns nos outros. estremeço ao pensar em ti, mas esqueci quase completamente como se ama. por isso vem, vem junto a mim e sorri. o teu sorriso aliviar-me-á da escuridão dos dias até amanhã.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Ferreira Gullar, "O musgo"


Em frente à janela do alpendre
por volta de 1949
                            o musgo
tomou todo o muro com seu veludo vivo
                            e verde
assim o mantinha dominado
sob a multidão de suas patinhas macias

e ali ficava como se dormisse
                             grudado a ele
                             feito o pêlo de um bicho
prenhe de luz e noite
pois nele formigava um escuro, úmido alarido
                             e que
                             de qualquer ponto da cidade
                             eu podia escutar

eu e os mortos todos
cristalizados no chão da ilha

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Sousândrade, "Dá meia-noite"


Alb.....

Dá meia-noite; em céu azul ferrete
Formosa espádua a lua
Alveja nua,
E voa sobre os templos da cidade.

Nos brancos muros se projetam sombras;
Passeia a sentinela
À noite bela
Opulenta da luz da divindade.

O silêncio respira; almos frescores
Meus cabelos afagam;
Gênios vagam,
De alguma fada no ar andando a caça.

Adormeceu a virgem; dos espíritos
Jaz nos mundos risonhos –
Fora eu os sonhos
Da bela virgem... Uma nuvem passa.

domingo, 15 de julho de 2018

Eucanaã Ferraz, "Por vezes, não raro"


Por vezes, não raro,
basta um gesto, sua borracha,
um quase nada de alvaiade,
um rasgo e só.

No entanto, o carvão
de certas palavras,
de alguns nomes,
não se apaga fácil.

Afogá-lo, inútil:
o maralto traz
de volta cada sílaba
em sal fortalecida.

Enterrá-lo? Logo renascerá:
árvore alta, trigo, praga.
No fogo, irrompe a letra,
inda mais sólida liga.

Há que esperar do esquecimento
o dente miúdo
e lento roer a nódoa na língua,
o travo no peito.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Junqueira Freire, "Desejo (Hora de Delírio)"


Se além dos mundos esse inferno existe,
    Essa pátria de horrores,
Onde habitam os tétricos tormentos,
    As inefáveis dores;

Se ali se sente o que jamais na vida
    O desespero inspira:
Se o suplício maior que a mente finge,
    A mente ai respira;

Se é de compacta, de infinita brasa
    O solo que pisa:
Se é fogo, e fumo, e súlfur, e terrores
    Tudo que ali se visa;

Se ali se goza um gênero inaudito
    De sensações terríveis;
Se ali se encontra esse real de dores
    Na vida não possíveis;

Se é verdade esse quadro que imaginam
    As seitas dos cristãos;
Se esses demônios, anjos maus, ou fúrias,
    Não são erros vãos;

Eu – que tenho provado neste mundo
    As sensações possíveis;
Que tenho ido da afecção mais terna
    Às penas mais incríveis;

Eu – que tenho pisado o colo altivo
    De vária e muita dor;
Que tenho sempre das batalhas dela
    Surgido vencedor;

Eu – que tenho arrostado imensas mortes,
    E que pareço eterno;
Eu quero morrer pra sempre,
    Entrar por fim no inferno!

Eu quero ver se encontro ali no abismo
    Um tormento invencível:
– Desses que achá-los na existência toda
    Jamais será possível!

Eu quero ver se encontro alguns suplícios
    Que o coração me domem;
Quero lhe ouvir esta palavra incógnita:
    – “Chora por fim, – que és homem!”

Que de arrostar as dores desta vida
    Quase pareço eterno!
Estou cansado de vencer o mundo:
    Quero vencer o inferno!


quinta-feira, 12 de julho de 2018

Carlos Drummond de Andrade, "Instante"


Uma semente engravidava a tarde.
Era o dia nascendo, em vez da noite.
Perdia amor seu hálito covarde,
e a vida, corcel rubro, dava um coice,

mas tão delicioso, que a ferida
no peito transtornado, aceso em festa,
acordava, gravura enlouquecida,
sobre o tempo sem caule, uma promessa.

A manhã sempre-sempre, e dociastutos
eus caçadores a correr, e as presas
num feliz entregar-se, entre soluços.

E que mais, vida eterna, me planejas?
O que se desatou num só momento
não cabe no infinito, e é fuga e vento.

quarta-feira, 11 de julho de 2018

terça-feira, 10 de julho de 2018

André Verdet, "À hora da morte"


À hora da morte
ele tornou a ver os mansos cães vadios de outrora
que se abstinham
de lhe devolver suas pedradas.

Tradução de Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 9 de julho de 2018

David Mourão-Ferreira, "Herança"


Ouvir, ouvir de noite uma ambulância
e desejar que estejas a morrer;
fechar a porta à minha própria infância;
amigos, conhecidos, nem os ver;

quebrar nas mãos o aro da esperança;
mas de mim para mim depois dizer:
"Calma! Quem nada espera tudo alcança..."!
e guardar o revólver; e beber,

a sós, o vinho que na taça baste
a recompor-te, viva, na distância:
isto foi, como herança, o que deixaste.

E ainda o mais que não te quis dizer:
ouvir, ouvir de noite uma ambulância,
e desejar ser eu quem vai morrer...

sábado, 7 de julho de 2018

Edna St. Vincent Millay, "Canto fúnebre sem música"


Não me conformo em ver baixarem à terra dura os corações amorosos,
É assim, assim há de ser, pois assim tem sido desde tempos imemoriais:
Partem para a treva os sábios e os encantadores. Coroados
De louros e de lírios, partem; porém não me conformo com isso.

Amantes, pensadores, misturados com a terra!
Unificados com a triste, indistinta poeira.
Um fragmento do que sentíeis, do que sabíeis,
Uma fórmula, uma frase resta — porém o melhor se perdeu.

As réplicas vivas, rápidas, o olhar sincero, o riso, o amor
foram-se embora. Foram-se para alimento das rosas. Elegante, ondulosa
é a flor. Perfumada é a flor. Eu sei. Porém não estou de acordo.
Mais preciosa era a luz em vossos olhos do que todas as rosas do mundo.

Vão baixando, baixando, baixando à escuridão do túmulo
Suavemente, os belos, os carinhosos, os bons.
Tranquilamente baixam os espirituosos, os engraçados, os valorosos.
Eu sei. Porém não estou de acordo. E não me conformo.

Tradução de Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 6 de julho de 2018

Adriano Espínola, "A árvore"


Incêndio esverdeado no meio
da praça.
Chama vegetal.
As folhas bebem
de estalo
a luz matinal.

O sol
a tudo assiste: atento.
imperial.

Sim, o sol
- ó pai de todo pensamento.

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Carlos Drummond de Andrade













"Canção amiga"

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

terça-feira, 3 de julho de 2018

Alexei Bueno, "Camões, além do desconcerto"


Camões, nessas terras duras
De cafres, mouros, gentios,
Quantos mares, quantos rios,
Quantas terríveis lonjuras
Até as faces que são tuas.

Quantos meses, ou mais que eles,
Entre uma carta e outra carta,
Mundo vão que nos aparta,
Espumas que salgam, reles,
Nossas mãos só nisso imbeles.

A essência da solidão
Caminha em Goa, nas ruas,
Ao pensar que as mesmas luas
Banham de argênteo clarão
Olhos que cá e lá estão.

Mestre, não sei se é consolo,
Todos nós marchamos sós,
Mas é em nós que a tua voz
Vibra, não no coevo tolo
Que de Olisipo é hoje o solo.

De Ceuta, de Índia ou Macau
Nunca estiveste tão perto,
Tão sobre o salso deserto,
Sobre o torpe, sobre o mau,
Sobre o inconfiável vau

Quanto agora, em nosso peito,
Nosso pai, irmão e amigo,
Finda a Sorte, ido o Perigo,
Na Santa Cidade, eleito,
Para onde vai nosso preito.