quinta-feira, 30 de maio de 2013

Antun Branko Simic













"Inverno"
   
    O amor torturou minha alma
            Minha alma padece
                    e sonha
   
    Não a despertem: toda ideia dói

Minha alma é um lago escuro desnudo
  dentro de um branco dia frio
Gaivotas alvas não revoam sobre as águas
  Nuvens azuis não farfalham sob o céu
  
    Tudo é branco agudo enregelado

  Céu caído sobre as casas próximas
   Encostado às casas o céu sonha

  Deixem hoje tudo parado em sonho

      Hoje qualquer gesto dói


Tradução de Aleksandar Jovanovic



quarta-feira, 29 de maio de 2013

Raul de Carvalho













"Conduzo..."

Conduzo com cuidado o barco da minha morte.
Mas sou insensato em tudo.

terça-feira, 28 de maio de 2013

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Eugénio de Andrade, "Encostas a face à melancolia..."


Encostas a face à melancolia e nem sequer
ouves o rouxinol. Ou é a cotovia?
Suportas mal o ar, dividido
entre a fidelidade que deves

à terra de tua mãe e ao quase branco
azul onde a ave se perde.

A música, chamemos-lhe assim,
foi sempre a tua ferida, mas também

foi sobre as dunas a exaltação.
Não oiças o rouxinol. Ou a cotovia.
É dentro de ti
que toda música é ave.

domingo, 26 de maio de 2013

Sebastião Alba, "Deixa entrar no poema..."


                                       "Uma palavra que está sempre na
                                                     boca transforma-se em baba".
                                                   Provérbio Burundi.

Deixa entrar no poema
alguns clichês.

Submetidos à experiência inefável,
sua carga (eléctrica?)
escoar-se-á.

Não há uma vala comum para as palavras
decaídas,
um dicionário no inferno;

mas deixa-as vir à tona
da claridade,
e nada mais insufles. Vê:

não suportando a beleza
que as circunda, abismam-se
em seu ridículo.


sexta-feira, 24 de maio de 2013

Antun Branko Simic, "Céu vazio"


Há muito o céu é um vazio
sem deuses, sem serafins,
infinito deserto gris
cortado às vezes por aeronaves ou ave torpe.

As almas não sobem mais como as andorinhas.
O homem deita-se na terra pregado à cruz.
Perdemos a trilha que a deus conduz.
Mudos, os poetas contemplam o nada.

Tradução de Aleksandar Jovanovic

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Dante Milano, "A fonte"


Espelha-te na fonte de Narciso,
Olha bem para a forma de teu corpo,
Vê a tua figura refletida
E parecida com teu corpo morto.
Não és mais que uma sombra nua e fria,
Tremulamente aparecendo à tona
D'água, reflexo desmaiado, imagem
Afogada, boiando sobre uma onda.
Namora-te da tua formosura
E não tremas de ver no fundo espelho
Aquela verdadeira face tua,
Aparência sem luz, nulo fantasma,
Qual se estivesses morto. É o teu aquele
Sorriso que extasia a face da água.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

terça-feira, 21 de maio de 2013

José Albano, "Soneto"


Eu, que continuamente andei chorando,
Sem paz, sem alegria e sem repouso,
Ter esperanças e ilusões não ouso,
Assim desconsolado e miserando.

E corro e fujo para longe, quando
Imagino que vem surgindo um gozo,
E, nunca desejando ser ditoso,
Este meu duro estado não abrando.

Enfim, prefiro um dia de desgraça
A um momento enganoso de ventura,
Donde uma maior pena e mágoa nasça.

A vida me parece triste e escura
E na minha alma um bem, que logo passa,
Dói muito mais que um mal, que sempre dura.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Mario Quintana























"A Minha mensagem"

         A minha mensagem? Nenhuma. Não sou moço de recados. Aliás por que você não se deu ao trabalho de ler os meus versos antes de entrevistar-me?
Se os conhecesse, lembraria certamente aquele que diz:
"Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema."
Talvez dê, este claro e misterioso verso, a pensar que o poema é algo exterior ao poeta, uma realidade objetiva - e não relativa ao sujeito que a expressa.
É o que eu creio e receio.
Porque nisto de fazer poemas o que há, para mim, é uma necessidade de expressão e não de comunicação.
Tanto assim que, se eu descobrisse um dia que era a única criatura restante sobre a face da Terra, empregaria o meu longo lazer não necessariamente a cantar a minha situação única, mas a refazer aqueles meus poemas que não me parecessem ainda ter recebido um adequado tratamento expressivo, isto é, o devido trabalho técnico, ou os que, de tão indizíveis, não me animei até agora a defrontar.
E é isto que da um terrível sentido aos trabalhos do Poeta, uma enorme responsabilidade em face da Esfinge.

 

sábado, 18 de maio de 2013

Roberto Piva, "Bules, bílis e bolas"


Nós convidamos todos a se entregarem à dissolução e ao desregramento.
A vida não pode sucumbir no torniquete da Consciência. A vida explode sempre no mais além. Abaixo as faculdades e que triunfem os maconheiros. É preciso não ter medo de deixar irromper a nossa Alma Fecal. Metodistas, psicólogos, advogados, engenheiros, estudantes, patrões, operários, químicos, cientistas, contra vós deve estar o espírito da juventude. Abaixo a Segurança Pública, quem precisa disso?
Somos deliciosamente desorganizados e usualmente nos associamos com a Liberdade.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Augusto dos Anjos, "O martírio do artista"


Arte ingrata! E conquanto em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
que em suas frontais células guarda!

Tarda-lhe a ideia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
É como o paralítico que à míngua
Da própria voz e na que ardente o lavra

Febre de em vão falar, com os dedos brutos
para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Eugénio de Andrade, "Não, não é ainda a inquieta luz de março..."


Não, não é ainda a inquieta
luz de março
à proa de um sorriso,
nem a gloriosa ascensão do trigo,

a seda duma andorinha roçando
o ombro nu,
o pequeno e solitário rio adormecido
na garganta;

não, nem o cheiro acidulado e bom
do corpo, depois do amor,
pelas ruas a caminho do mar,
ou o despenhado silêncio

da pequena praça,
como um barco, o sorriso a proa;

não, é só um olhar.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Eucanaã Ferraz, "Relevo"


Da janela, impossível distinguir o vestido
apressado, adeus na louça improvável, azul
dos paralelepípedos, menos ainda o passo,

tac-tac à borda esquerda do rio,
também ele tingido pela hora,
e a ponte, a torre, as árvores.

Nada contesta a monocromia da tarde
(exceto a tristeza que sinto,
traço negro, nota pouco extensa

e, de resto, inteiramente dispensável,
à margem deste tarde,
tão tarde).

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Vinícius de Moraes, "Pátria minha"


A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama…
Vinicius de Moraes."

sábado, 11 de maio de 2013

Vitorino Nemésio, "Outro testamento"


Quando eu morrer deitem-me nu à cova 
Como uma libra ou uma raiz,
Deem a minha roupa a uma mulher nova 
Para o amante que a não quis. 

Façam coisas bonitas por minha alma: 
Espalhem moedas, rosas, figos. 
Dando-me terra dura e calma, 
Cortem as unhas aos meus amigos. 

Quando eu morrer mandem embora os lírios: 
Vou nu, não quero que me vejam 
Assim puro e conciso entre círios vergados. 
As rosas sim; estão acostumadas 
A bem cair no que desejam: 
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes 
Que minha Mulher me trouxe: 
Ficam para o seu cabelo de viúva, 
Ali, em vez da minha mão; 
Ali, naquela cara doce... 
Ficam para irritar a turba 
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação. 

Quando eu morrer e for chegando ao cemitério, 
Acima da rampa, 
Mandem um coveiro sério 
Verificar, campa por campa 
(Mas é batendo devagarinho 
Só três pancadas em cada tampa, 
E um só coveiro seguro chega), 
Se os mortos têm licor de ausência 
(Como nas pipas de uma adega 
Se bate o tampo, a ver o vinho): 
Se os mortos têm licor de ausência 
Para bebermos de cova a cova, 
Naturalmente, como quem prova 
Da lavra da própria paciência. 

Quando eu morrer. . . 
Eu morro lá! 
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras, 
Pois quando me comovo até o osso é sonoro. 

Minha casa de sons com o morador na lua, 
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado: 
Minha morte civil será uma cena de rua; 
Palavras, terras onde moro, 
Nunca vos deixarei. 

Mas quando eu morrer, só por geometria, 
Largando a vertical, ferida do ar, 
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos; 
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar; 
Deem vinho, beijos, flores, figos a rodos, 
E levem-me - só horizonte - para o mar.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

João Cabral de Melo Neto















"Poemas da cabra"

Nas margens do Mediterrâneo
não se vê um palmo de terra
que a terra tivesse esquecido
de fazer converter em pedra.

Nas margens do Mediterrâneo
Não se vê um palmo de pedra
que a pedra tivesse esquecido
de ocupar com sua fera.

Ali, onde nenhuma linha 
pode lembrar, porque mais doce,
o que até chega a parecer
suave serra de uma foice,

não se vê um palmo de terra
por mais pedra ou fera que seja,
que a cabra não tenha ocupado
com sua planta fibrosa e negra.


                    1

A cabra é negra. Mas seu negro
não é o negro do ébano douto
(que é quase azul) ou o negro rico
do jacarandá (mais bem roxo).

O negro da cabra é o negro
do preto, do pobre, do pouco.
Negro da poeira, que é cinzento.
Negro da ferrugem, que é fosco.

Negro do feio, às vezes branco.
Ou o negro do pardo, que é pardo.
disso que não chega a ter cor
ou perdeu toda cor no gasto.

É o negro da segunda classe.
Do inferior (que é sempre opaco).
Disso que não pode ter cor
porque em negro sai mais barato.

                    2

Se o negro quer dizer noturno
o negro da cabra é solar.
Não é o da cabra o negro noite.
É o negro de sol. Luminar.

Será o negro do queimado
mais que o negro da escuridão.
Negra é do sol que acumulou.
É o negro mais bem do carvão.

Não é o negro do macabro.
Negro funeral. Nem do luto.
Tampouco é o negro do mistério,
de braços cruzados, eunuco.

É mesmo o negro do carvão.
O negro da hulha. Do coque.
Negro que pode haver na pólvora:
negro de vida, não de morte.

                       3

O negro da cabra é o negro
da natureza dela cabra. 
Mesmo dessa que não é negra,
como a do Moxotó, que é clara.

O negro é o duro que há no fundo
da cabra. De seu natural.
Tal no fundo da terra há pedra, 
no fundo da pedra, metal.

O negro é o duro que há no fundo
da natureza sem orvalho
que é a da cabra, esse animal
sem folhas, só raiz e talo,

que é a da cabra, esse animal
de alma-caroço, de alma córnea,
sem moelas, úmidos, lábios,
pão sem miolo, apenas côdea.

                    4

Quem já encontrou uma cabra 
que tivesse ritmos domésticos?
O grosso derrame do porco,
da vaca, do sono e de tédio?

Quem encontrou cabra que fosse 
animal de sociedade?
Tal o cão, o gato, o cavalo,
diletos do homem e da arte?

A cabra guarda todo o arisco,
rebelde, do animal selvagem,
viva demais que é para ser
animal dos de luxo ou pajem.

Viva demais para não ser,
quando colaboracionista,
o reduzido irredutível,
o inconformado conformista.

                    5

A cabra é o melhor instrumento
de verrumar a terra magra.
Por dentro da serra e da seca
não chega onde chega a cabra.

Se a serra é terra, a cabra é pedra.
Se a serra é pedra, é pedernal.
Sua boca é sempre mais dura
que a serra, não importa qual.

A cabra tem o dente frio,
a insolência do que mastiga.
Por isso o homem vive da cabra
mas sempre a vê como inimiga.

Por isso quem vive da cabra
e não é capaz do seu braço
desconfia sempre da cabra:
diz que tem parte com o Diabo.

                    6

Não é pelo vício da pedra,
por preferir a pedra à folha.
É que a cabra é expulsa do verde,
trancada do lado de fora.

A cabra é trancada por dentro.
Condenada à caatinga seca.
Liberta, no vasto sem nada,
proibida, na verdura estreita.

Leva no pescoço uma canga
que a impede de furar as cercas.
Leva os muros do próprio cárcere:
prisioneira e carcereira.

Liberdade de fome e sede
da ambulante prisioneira.
Não é que ela busque o difícil:
é que a sabem capaz de pedra.

                      7

A vida da cabra não deixa
lazer para ser fina ou lírica
(tal o urubu, que em doces linhas
voa à procura da carniça).

Vive a cabra contra a pendente,
sem os êxtases das decidas.
Viver para a cabra não é
re-ruminar-se introspectiva.

É, literalmente, cavar
a vida sob a superfície,
que a cabra, proibida de folhas,
tem de desentranhar raízes.

Eis porque é a cabra grosseira,
de mãos ásperas, realista.
Eis porque, mesmo ruminando,
não é jamais contemplativa.

                    8

O núcleo de cabra é visível
por debaixo de muitas coisas.
Com a natureza da cabra
outras aprendem sua crosta.

Um núcleo de cabra é visível
em certos atributos roucos
que têm as coisas obrigadas
a fazer de seu corpo couro.

A fazer de seu couro sola,
a armar-se em couraças, escamas:
como se dá com certas coisas
e muitas condições humanas. 

Os jumentos são animais
que muito aprenderam com a cabra. 
O nordestino, convivendo-a,
fez-se de sua mesma casta.

                    9

O núcleo de cabra é visível
debaixo do homem do Nordeste.
Da cabra lhe vem o escarpado
e o estofo nervudo que o enche.

Se adivinha o núcleo de cabra
no jeito de existir, Cardozo,
que reponta sob seu gesto
como esqueleto sob o corpo.

E é outra ossatura mais forte
que o esqueleto comum, de todos;
debaixo do próprio esqueleto,
no fundo centro de seus ossos.

A cabra deu ao nordestino
esse esqueleto mais de dentro:
o aço do osso, que resiste
quando o osso perde seu cimento.

                      *

O Mediterrâneo é mar clássico,
com águas de mármore azul.
Em nada me lembra das águas
sem marca do rio Pajeú.

As ondas do Mediterrâneo
estão no mármore traçadas.
Nos rios do Sertão, se existe,
a água corre despenteada.

As margens do Mediterrâneo
parecem deserto balcão.
Deserto, mas de terras nobres
não da piçarra do Sertão.

Mas não minto o Mediterrâneo
nem sua atmosfera maior
descrevendo-lhe as cabras negras
em termos da do Moxotó.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Alphonsus de Guimaraens Filho, "É dia, sim"


É dia, sim; também é uma terrível
esperança, não sei em que fundada.
Tudo em nós é o ofego do invisível;
cai nossa mão na luz, paralisada.

E de tudo - fungível, infungível -
de tudo esta corola decepada.
Alguém te diz além: "Sim, é possível"
Mas sabes que já não é possível nada.

Relê teus versos, pois relê! Percorre
teus papéis empilhados, nas estantes
procura o livro que ninguém teria.

Ou então, deita-te aí, deita-te e morre,
morre por todos os agonizantes,
pleno do sol de um nunca visto dia.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

terça-feira, 7 de maio de 2013

Armando Freitas Filho, "I.X.82, sexta, meia-noite e meia ..."


I.X.82, sexta, meia-
noite e meia, Rio, e tenho
todo tempo do mundo
para escrever isto
e ao mesmo tempo
nenhum.
Não há leitores à vista,
ninguém
me pediu nada, não há
prelo esperando as letras
deste repórter de si mesmo
- urgente, à toa, atropelado -
que prepara uma edição extra
para ser lida (?) em 1985
já que na posteridade
só cabem os gritos
i.e., os gregos.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Helder Moura Pereira, "Estou aqui à espera da alegria..."


Estou aqui à espera da alegria, marquei 
um encontro contrário ao provável, saber 
neste momento é não saber, ficar é uma dor
que me imponho. Os pormenores giram a volta
do local, a atenção está medida para tudo.
O autocarro vem e ninguém vem, as janelas
quase encostadas ao chão e as árvores
redondas não fazem esquecer por que aqui
espero. Um corpo dedica uma vida a um corpo
ausente, nenhuma coragem. As vozes reúnem-se
nos motivos vãos, que palavras vou ter
que dizer? O olhar evoca então um gesto
antigo, tantas vezes segui o modo como a mão
vinha lenta sobre a testa, são assim sempre
todos os lugares da espera. Não virá
a pé, no grupo que vem do trabalho. Espero.

sábado, 4 de maio de 2013

João Guimarães Rosa, " A terceira margem do rio"


Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.

Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.

Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.

Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Jorge Luis Borges, "Final de ano"


Nem o pormenor simbólico
de substituir um três por um dois
nem essa metáfora baldia
que convoca um lapso que morre e outro que surge
nem o cumprimento de um processo astronômico
aturdem e solapam
o altiplano desta noite
e nos obrigam a esperar
as doze irreparáveis badaladas.
A causa verdadeira
é a suspeita geral e embaçada
do enigma do Tempo;
é o assombro ante o milagre
de que a despeito de infinitos acasos,
de que a despeito de que somos
as gotas do rio de Heráclito,
perdure algo em nós:
imóvel.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Miguel Torga, "Cântico gradual"


Somos todos irmãos.
Desde o primeiro homem
Que desejou mulher,
A nossa lei fraterna
É uma certeza eterna
A crescer.

Somos todos irmãos.
Mesmo aqueles que o não querem,
lavam, como medo, as mãos,
Se nos ferem.