sábado, 11 de maio de 2013

Vitorino Nemésio, "Outro testamento"


Quando eu morrer deitem-me nu à cova 
Como uma libra ou uma raiz,
Deem a minha roupa a uma mulher nova 
Para o amante que a não quis. 

Façam coisas bonitas por minha alma: 
Espalhem moedas, rosas, figos. 
Dando-me terra dura e calma, 
Cortem as unhas aos meus amigos. 

Quando eu morrer mandem embora os lírios: 
Vou nu, não quero que me vejam 
Assim puro e conciso entre círios vergados. 
As rosas sim; estão acostumadas 
A bem cair no que desejam: 
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes 
Que minha Mulher me trouxe: 
Ficam para o seu cabelo de viúva, 
Ali, em vez da minha mão; 
Ali, naquela cara doce... 
Ficam para irritar a turba 
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação. 

Quando eu morrer e for chegando ao cemitério, 
Acima da rampa, 
Mandem um coveiro sério 
Verificar, campa por campa 
(Mas é batendo devagarinho 
Só três pancadas em cada tampa, 
E um só coveiro seguro chega), 
Se os mortos têm licor de ausência 
(Como nas pipas de uma adega 
Se bate o tampo, a ver o vinho): 
Se os mortos têm licor de ausência 
Para bebermos de cova a cova, 
Naturalmente, como quem prova 
Da lavra da própria paciência. 

Quando eu morrer. . . 
Eu morro lá! 
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras, 
Pois quando me comovo até o osso é sonoro. 

Minha casa de sons com o morador na lua, 
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado: 
Minha morte civil será uma cena de rua; 
Palavras, terras onde moro, 
Nunca vos deixarei. 

Mas quando eu morrer, só por geometria, 
Largando a vertical, ferida do ar, 
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos; 
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar; 
Deem vinho, beijos, flores, figos a rodos, 
E levem-me - só horizonte - para o mar.

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