segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Eucanaã Ferraz, "De ti"


Já não recorro às fotografias
- perfil, pose, paisagem -

como o cego ao cão
que fia o caminho.

Deixei que os dias
- outro cão, todo dentes -

te devorassem
os arames nítidos do foco.

Fiquei com o que sei
de cor

- outro cão em mim,
garra e faro -

no extremo
dos meus dedos.

sábado, 28 de setembro de 2013

Mário Cesariny, "a um rato morto encontrado num parque"


Este findou aqui sua vasta carreira

de rato vivo e escuro ante as constelações

a sua pequena medida não humilha

senão aqueles que tudo querem imenso

e só sabem pensar em termos de homem ou árvore

pois decerto este rato destinou como soube (e até como não soube)

o milagre das patas – tão junto ao focinho –

que afinal estavam justas, servindo muito bem

para agatanhar, fugir, segurar o alimento, voltar atrás de repente,

                                                                         [quando necessário

Está pois tudo certo, ó “Deus dos cemitérios pequenos”?

Mas quem sabe quem sabe quando há engano

nos escritórios do inferno? Quem poderá dizer

que não era para príncipe ou julgador de povos

o ímpeto primeiro desta criação

irrisória para o mundo – com mundo nela?

Tantas preocupações às donas de casa – e aos médicos – ele dava!

Como brincar ao bem e ao mal se estes nos faltam?

Algum rapazola entendeu sua esta vida tão ímpar

e passou nela a roda com que se amam

olhos nos olhos – vítima e carrasco


Não tinha amigos? Enganava os pais?


Ia por ali fora, minúsculo corpo divertido

e agora parado, aquoso, cheira mal.


Sem abuso

que final há-de dar-se a este poema?

Romântico? Clássico? Regionalista?


Como acabar com um corpo corajoso e humílimo

morto em pleno exercício da sua lira?


sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Cesário Verde, "Vaidosa"


Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensivel que o granito,
E eu que passo aí por favorito
Vivi louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério.

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas*,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração como as estátuas.

E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces,
És tão loira e doirada como as messes*,
E possuis muito amor... muito amor próprio.



*Fátua : adjetivo. Vaidosa, presumida, pretensiosa.

* Messe : substantivo feminino. Terreno dedicado ao cultivo, já em boas condições para a colheita.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Ana Cristina Cesar, "Noite de Natal..."


Noite de Natal.
Estou bonita que é um desperdício.
Não sinto nada.
Não sinto nada, mamãe.
Esqueci.
Menti de dia.
Antigamente eu sabia escrever.
Hoje beijo os pacientes na entrada e na saída
com desvelo técnico.
Freud e eu brigamos muito.
Irene no céu desmente: deixou de
trepar aos 45 anos.
Entretanto sou moça
estreando um bico fino que anda feio,
pisa mais que deve,
me leva indesejável pra perto das
botas pretas
pudera.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

David Mourão-Ferreira, "Soneto do Cativo"


Se é sem dúvida amor esta explosão
De tantas sensações contraditórias;
A sórdida mistura das memórias,
Tão longe da verdade e da invenção;

O espelho deformante; a profusão
De frases insensatas, incensórias;
A cúmplice partilha nas histórias
Do que os outros dirão ou não dirão;

Se é sem dúvida Amor a cobardia
De buscar nos lençóis a mais sombria
Razão de encantamento e de desprezo;

Não há dúvida, Amor, que te não fujo
E que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
Tenho vivido eternamente preso.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

domingo, 22 de setembro de 2013

Cecília Meireles, "Comunicação"


Pequena lagartixa branca,
ó noiva brusca dos ladrilhos!
sobe à minha mesa, descansa,
debruça-te em meus calmos livros.

Ouve comigo a voz dos poetas
que agora não dizem mais nada,
- e diziam coisas tão belas! -
ó ídolo de cinza e prata!

Ó breve deusa do silêncio
que na face da noite corres
como a dor pelo pensamento,
- e sozinha miras e foges.

Pequena lagartixa - vinda
para que? - pousa em mim teus olhos.
Quero contemplar tua vida,
a repetição dos teus mortos.

Como os poetas que já cantaram,
e que já ninguém mais escuta,
eu sou também a sombra vaga
de alguma interminável música.

Para em meu coração deserto!
Deixa que te ame, ó alheia, ó esquiva...
Sobre a torrente do universo,
nas pontes frágeis da poesia.

sábado, 21 de setembro de 2013

Eugénio de Andrade, "Pudesse o corpo e seu desassossego..."


Pudesse o corpo e o seu desassossego
acabar antes do verão
a casa, pôr sobre a mesa
o pão, no cimo do telhado alguma flor.

Encosto o rosto ao chão,
o olhar magoado não regressa,
nenhum amigo,
nenhuma voz se levanta acesa.

Aceito estar aqui - só um rumor
rente à relva,
a chuva, os seus pés friorentos,
a chuva me fará companhia.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Antonio Cicero, "Huis Clos"


Da vida não se sai pela porta:
só pela janela. Não se sai
bem da vida como não se sai
bem de paixões jogatinas drogas.
E é porque sabemos disso e não
por temer viver depois da morte
em plagas de Dante Goya ou Bosch
(essas, doce príncipe, cá estão)
que tão raramente nos matamos
a tempo; por não considerarmos
as saídas disponíveis dignas
de nós, que em meio a fezes e urina,
sangue e dor nascemos para lendas,
mares, amores, mortes serenas.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Juan Ramón Madariaga, "Verticalmente"


te distanciastes verticalmente para sempre
tão decidida como a espada estendida no mar

agora sou como um desses velhos pássaros
que não podem emigrar de teu coração.

Tradução de Angela Caon Pieroccini.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Roberto Piva, "Abandonar tudo ..."


abandonar tudo. conhecer praias. amores novos.
                     poesia em cascatas floridas com aranhas
                                 azuladas nas samambaias.
           todo trabalhador é escravo. toda autoridade
                         é cômica. fazer da anarquia um
                                 método & modo de vida. estradas.
                                       bocas perfumadas. cervejas tomadas
                                             nos acampamentos. Sonhar Alto.

domingo, 15 de setembro de 2013

Alexei Bueno













"Glória"

Bêbado, às duas da manhã,
Parei na loja de ovos e aves.
Subi na grade e, em grande afã,
Cacarejei, de ecoar nas traves.

Os galos todos acordaram
Cheios de brio e, num só coro,
Com seu cacarejo enfrentaram
O meu, mais forte, mais sonoro.

Saltavam todas as galinhas.
Penas voavam loja afora.
Ligavam luzes nas vizinhas
Casas. Parti. Criara a aurora.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Jorge Luis Borges, "Os enigmas"


Eu que sou o que agora está cantando
serei em breve o misterioso, o morto,
o morador de um mágico e deserto
orbe sem antes nem depois nem quando.
Assim afirma a mística. Não julgo
que mereça o Inferno nem a Glória,
porém nada prevejo. Nossa história
se altera como as formas de Proteu*.
Que errante labirinto, que brancura
cega pelo fulgor será minha sorte,
quando me entregue o fim desta aventura
essa curiosa experiência, a morte?
Quero beber seu cristalino Olvido,
ser para sempre; mas nunca ter sido.

* Proteu - Fig. Indivíduo que facilmente muda de opinião.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

William Shakespeare, "Por que meus versos ..."


Por que meus versos são tão nus de ornato novo?
Por que é que em não mudar se mostram persistentes?
Por que, com o nosso tempo, o meu olhar não movo
Para combinações e métodos recentes?
Por que é que uma só coisa escrevo, sem varia-la,
E guardo em vestes tão notórias a invenção
Que cada termo meu quase o meu nome fala,
Mostrando onde nasceu e qual a sua intenção?
Só escrevo sobre ti, meu amor, não vês?
Somente tu e o meu amor formais meu argumento;
O que já está usado usando ainda uma vez,
Dou veste nova ao verbo antigo, eis meu talento.
  Pois como o sol é velho e novo cada dia,
  Coisas já ditas meu amor reenuncia.

Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

terça-feira, 10 de setembro de 2013

José Saramago, "Receita"


Tome-se um poeta não cansado,
Uma nuvem de sonho e uma flor,
Três gotas de tristeza, um tom dourado.
Uma veia sangrando de pavor.
Quando a massa já ferve e se retorce
Deita-se a luz dum corpo de mulher,
Duma pitada de morte se reforce,
Que um amor de poeta assim requer.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Alexei Bueno, "Vidência"


Se os nossos olhos te enxergassem, rosa,
E não só: “É uma rosa” nos dissessem
Na vulgar gradação que nunca esquecem,
Que epifania na manhã tediosa!

Se eles vissem, ao vê-la, cada coisa
E não seu nome, se afinal pudessem
Fugir da furna abstrata onde destecem
A vida, um morto partiria a lousa
Maciça de aqui estar. Flor, nuvem muro,
Árvore, que é uma só e não tal nome,
Se tudo entrasse o corredor escuro

Que há em nós, algo de exato se ergueria,
Algo que para o tempo ou que o consome,
Que alveja a noite e entenebrece o dia.

sábado, 7 de setembro de 2013

Carlos Drummond de Andrade, "Relógio do Rosário"


Era tão claro o dia, mas a treva,
do som baixando, em seu baixar me leva

pelo âmago de tudo, e no mais fundo
decifro o choro pânico do mundo,

que se entrelaça no meu próprio chôro,
e compomos os dois um vasto côro.

Oh dor individual, afrodisíaco
sêlo gravado em plano dionisíaco,

a desdobrar-se, tal um fogo incerto,
em qualquer um mostrando o ser deserto,

dor primeira e geral, esparramada,
nutrindo-se do sal do próprio nada,

convertendo-se, turva e minuciosa,
em mil pequena dor, qual mais raivosa,

prelibando o momento bom de doer,
a invocá-lo, se custa a aparecer,

dor de tudo e de todos, dor sem nome,
ativa mesmo se a memória some,

dor do rei e da roca, dor da cousa
indistinta e universa, onde repousa

tão habitual e rica de pungência
como um fruto maduro, uma vivência,

dor dos bichos, oclusa nos focinhos,
nas caudas titilantes, nos arminhos,

dor do espaço e do caos e das esferas,
do tempo que há de vir, das velhas eras!

Não é pois todo amor alvo divino,
e mais aguda seta que o destino?

Não é motor de tudo e nossa única
fonte de luz, na luz de sua túnica?

O amor elide a face... Ele murmura
algo que foge, e é brisa e fala impura.

O amor não nos explica. E nada basta,
nada é de natureza assim tão casta

que não macule ou perca sua essência
ao contacto furioso da existência.

Nem existir é mais que um exercício
de pesquisar de vida um vago indício,

a provar a nós mesmos que, vivendo,
estamos para doer, estamos doendo.

Mas, na dourada praça do Rosário,
foi-se, no som, a sombra. O columbário

já cinza se concentra, pó de tumbas,
já se permite azul, risco de pombas.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

José Fernandez De La Sota, "Fidelidade"


Não são os que tivemos
entre os braços úmidos
uma noite, há muito tempo.

Nem são os que quisemos
para toda a vida
enquanto durou o verão.

Não podem ser tampouco
os que reconhecemos
com sua sombra na nossa.

A esses atraiçoamos
pois só ao desejo
podemos ser fiéis.

Não são os que tivemos.
São os corpos pensados
os que nunca abandonamos.

Tradução amadora minha.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Mario Quintana, "Nunca"


Nunca ninguém sabe se estou louco para rir ou para chorar...
Por isso o meu verso tem
esse quase imperceptível tremor...
A vida é triste, o mundo é louco!
Nem vale a pena matar-se por isso.
Nem por ninguém.
Por nenhum amor...
A vida continua, indiferente.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Fabrício Carpinejar, "Meu filho comigo"


Meu filho, não terminamos
de conversar mesmo dormindo.
Nossas tosses continuam o assunto.

Uma responde à outra.
Uma completa a outra.
São tosses educadas,

que não ofendem a noite.
Somos tremendamente
felizes na doença.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

domingo, 1 de setembro de 2013

João Cabral de Melo Neto












"Conselhos do Conselheiro"

                    1

Temer quedas sobremaneira
(não as do abismo, da banheira).

Andar como num chão minado,
que se desmina, passo a passo.

Gestos há muito praticados,
melhor seria ressoletrados.

                    2

A coisa mais familiar
já pode ser o patamar

onde um corredor conhecido,
que se caminha ainda tranquilo,

leva a uma certa camarinha*
que ninguém sabe o que continha.

                    3

Uma porta qualquer que se abre
só ao fechá-la é que se sabe

que não foi afinal a porta
que só abre do lado de fora:

embora como porta se abra
é só de um lado sua bisagra*

                    4

De cada cama em que se sobe
se descerá? E que se pode?

E cada cama em que se deita
não será acaso a derradeira,

que tem tudo de cama, quase;
menos a tampa em que fechar-se.


*Camarinha - Quarto pequeno, geralmente de dormir; pequena câmara.
* Bisagra - Dobradiça