sábado, 30 de junho de 2012










"Canção"

Hoje trouxeram-me as nuvens
a voar, o mapa de Espanha.
Que pequeno sobre o rio
e que grande sobre o pasto
a sombra que projetava!

De cavalos se cobriu
a sombra que projetava.
A cavalo, por sua sombra
procurei a minha casa.

Entrei no pátio que um dia
fora uma fonte com água.
Embora lá não estivesse,
a fonte sempre soava.
E a água que não corria
voltou para me dar água.

Tradução de José Bento.

Rafael Alberti (1902-1999) exilou-se após a Guerra Civil da Espanha, permanecendo 38 anos no exílio.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Alberto da Cunha Melo, "À Egípcia"


Era uma moça de subúrbio
e daquela beleza leve
que a menor pétala do lírio
às vezes tem, quando amanhece;

mas uma simples balconista,
sem os tiques de toda artista,

o que produzia um efeito
simplesmente devastador
de quem tivesse esse defeito

de sempre amar o belo puro;
esta Cleópatra sem futuro.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Ferreira Gullar












"Digo sim"

Poderia dizer
que a vida é bela, e muito,
e que a revolução caminha com pés de flor
nos campos do meu país,
com pés de borracha
nas grandes cidades brasileiras
             e que meu coração
é um sol de esperanças entre pulmões
             e nuvens

Poderia dizer que meu povo
é uma festa só na voz
de Clara Nunes
                                  no rodar
das cabrochas no carnaval
da Avenida.
                          Mas não. O poeta mente.

A vida nós a assamos em sangue
             e samba
enquanto gira inteira a noite
sobre a pátria desigual. A vida
nós a fazemos nossa
alegre e triste, cantando
             em meio à fome
             e dizendo sim
– em meio à violência e a solidão dizendo
             sim –
pelo espanto da beleza
pela flama de Tereza
pelo meu filho perdido
meu vasto continente
             por Vianinha ferido
             pelo nosso irmão caído
pelo amor e o que ele nega
pelo que dá e que cega
             pelo que virá enfim,
             não digo que a vida é bela
             tampouco me nego a ela
             – digo sim

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Cora Coralina












"A lavadeira"

Essa Mulher...
Tosca.Sentada. Alheada...
Braços cansados
Descansando nos joelhos...
olhar parado, vago,
perdida no seu mundo
de trouxas e espuma de sabão
- é a lavadeira.


Mãos rudes, deformadas.
Roupa molhada.
Dedos curtos.
Unhas enrugadas.
Córneas.
Unheiros doloridos
passaram, marcaram.
No anular, um círculo metálico
barato, memorial.


Seu olhar distante,
parado no tempo.
À sua volta
- uma espumarada branca de sabão


Inda o dia vem longe
na casa de Deus Nosso Senhor
o primeiro varal de roupa
festeja o sol que vai subindo.


vestindo o quaradouro
de cores multicores


Essa mulher
tem quarentanos de lavadeira.
Doze filhos
crescidos e crescendo.


Viúva, naturalmente.
Tranqüila, exata, corajosa.


Temente dos castigos do céu.
Enrodilhada no seu mundo pobre.


Madrugadeira.

Salva a aurora.
Espera pelo sol.
Abre os portais do dia
entre trouxas e barrelas.


Sonha calada.
Enquanto a filharada cresce
trabalham suas mãos pesadas.


Seu mundo se resume
na vasca, no gramado.
No arame e prendedores.
Na tina d’água.
De noite – o ferro de engomar.


Vai lavando. Vai levando.
Levantando doze filhos
Crescendo devagar,
enrodilhada no seu mundo pobre,
dentro de uma espumarada
branca de sabão.


Às lavadeiras do Rio Vermelho
da minha terra,
faço deste pequeno poema
meu altar de ofertas.


domingo, 24 de junho de 2012

Mário Faustino, "O mundo que venci deu-me um amor".


O mundo que venci deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que venci deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer fosse de sexo.
O mundo que venci deu-me um amor,
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória...

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Lorenzo Gomis













"Com meu pai, em silêncio"

"Na verdade, pouco temos falado"
- nos seus últimos dias me dizia -
porém, temos nos feito companhia
um dentro do outro sempre tem estado.

Como então eu ponho-me ao teu lado,
olho-te como só então te via
lutando com nobreza na agonia,
mais animando que sendo animado.

Junto ao teu leito penso que algum pacto
selamos, muito assim, silêncio adentro,
compromissos de fé e de esperança.

Não conto uma palavra, conto um acto,
e ao silêncio daquele acto encontro
um último calor que ainda me alcança.

Tradução de José Bento.



quinta-feira, 21 de junho de 2012

Muhammad Ibn Wãzir, "Encontramo-nos. Cruzaram-se os sabres..."


Encontramo-nos. Cruzaram-se os sabres,
Golpes sobre golpes em voltas de mó.
Espadas agudas jogavam em torno
De nossas gargantas e dos contrários.
Enquanto uns na sela se mantinham
Outros havia rolando pelo chão.
Peito eu não vi sem seta cravada
Nem veia sem provar a cimitarra.
Sem descanso nós fomos combatendo
Refúgio buscando no elmo e na lança.
Ah, quanta bravura de ambos os lados!
Por fim carregamos, eles vacilaram,
E o que vacila, sem remédio cai!


Abu Bakr Muhammad Ibn Sidrã 'Abd al-Wahab Ibn Wãzir al-Qais viveu no século XIII. Era natural de Silves, no Algarve, em Porugal. Foi governador de Alcácer do Sal (Al-Kassr), no litoral do Alentejo, e combateu os portugueses.

Tradução de Adalberto Alves, do livro "O meu coração é árabe".

terça-feira, 19 de junho de 2012

Casimiro de Brito, "Sombras"


Passam
corpos
colados ao silêncio

Sabeis acaso distinguir
um homem
da sua sombra?


segunda-feira, 18 de junho de 2012

Paulo Henriques Britto, "Cuidado, poeta ..."


Cuidado, poeta: o tempo engorda a alma.
Depois de um certo número de páginas
anjos não pousam mais nas entrelinhas.
E até a lucidez, essa moderna,
também se gasta, como qualquer moeda.

O ter o que dizer é jogo arriscado,
não se resolve com um só lance de dados.
Não basta a precisão do gesto apenas.
O gesto mais felino é quase nada
sem o lastro da existência, essa cansada,

com sua textura por demais espessa
pra traspassar a tímida peneira
da pálida poesia, essa antiga.
O tempo é escasso. O dicionário é gordo.
Cuidado: Todo silêncio é pouco.

sábado, 16 de junho de 2012

Maria Teresa Horta










"Poder esquecer"

Poder esquecer que conheci
contigo
o interior antigo da cidade

a tua incerta boca
que corria
nas pontas dos meus seios
e minha face

Poder esquecer que ignorei
contigo
aquilo que quisemos e pensamos

as tuas lentas mãos
que percorriam
a curva dos meus rins
e as pernas que se abrem

Poder esquecer que conheci
contigo
os sítios mais meigos da cidade

os teus dedos que na minha
boca
entravam - percorriam
vorazes - insaciados

Poder esquecer que conheci
contigo
aquilo que escondemos. Não fizemos

a minha língua
no teu baixo ventre
a traçar caminhos que
perdemos

Poder esquecer que conheci
contigo
a recusa de nós...

Que ignorei contigo
tão meigas vontades que esquecemos




sexta-feira, 15 de junho de 2012

Miguel Torga













"Balada da Morgue"

Olho este corpo morto aqui deitado
E sinto impulso de beijá-lo e ter
Toda força de beijá-lo
Com sugestões de prazer...

Que bruta sinceridade!
Que humildade!
Que vaidade!
Que mentira! Que verdade!
Todo nu! Eu pressenti-o
Dando desejo e fastio...

Não é de mulher, não é;
Nem d'homem; nem d'animal
Irracional:
É d'Anjo predestinado
Que foi sacrificado
Para dar a noção exacta da renúncia!...

Ai! Dos corpos metidos em sarcófagos!...
Ai! De quem morre vestido!...
Nesta luxúria da Morgue
Há todo o satanismo
No final...

São os gestos parados;
Os olhos vidrados;
Os sexos castrados
E, por cima de tudo, o silêncio das bocas!

Quero amar este sol da terra
Que mostra o calor do céu...
Anda aqui toda a loucura
Da razão que não morreu
Nos sonhos dessa lonjura
Que nos fez, que nos perdeu...


quarta-feira, 13 de junho de 2012

Antonio Machado










"XXIX º  Poema dos Provérbios e Cantares"

Caminhante, são teus rastros
o caminho, e nada mais;
caminhante, não há caminho,
faz-se o caminho ao andar.
Ao andar faz-se o caminho,
e ao olhar-se para trás
vê-se a a senda que jamais
se voltará a pisar.
Caminhante, não há caminho,
somente sulcos no mar.

Tradução de José Bento.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Pablo Neruda, "Ode à gratidão".

Grato pela palavra
que agradece.
Grato a grato
pelo
quanto essa palavra
derrete neve ou ferro.

O mundo parecia ameaçador
até que suave
como uma pluma
clara,
ou doce como pétala de açúcar,
de lábio em lábio
passa,
grato,
grandes a boca plena
ou sussurrantes,
apenas murmuradas,
e o ser voltou a ser homem
e não janela,
alguma claridade
entrou no bosque:
foi possível cantar embaixo das folhas.

Grato, és pílula
contra
os óxidos cortantes do desprezo,
a luz contra o altar da dureza.

Talvez
também tapete
entre os mais distantes homens
foste.
Os passageiros que disseminaram
na natureza
e então
na selva
dos desconhecidos,
merci, enquanto o trem frenético
muda de pátria,
borra as fronteiras,
spasivo
junto aos pontiagudos
vulcões, frio e fogo,
thanks, sim, gracias, e então
a terra se transforma em uma mesa:
uma palavra a limpou,
brilham os pratos e copos,
ressoam os talheres
e parecem toalhas as planuras.

Grato, gracias,
que viajes e que voltes,
que subas
ou que desças.
Está entendido, não
preenches tudo,
palavra grato,
mas
onde aparece
tua pequena pétala
escondem-se os punhais do orgulho
e aparece um centavo de sorriso.


domingo, 10 de junho de 2012

Helder Macedo, "O lamento de José"


Amei. Não fui amado. Sem paixão.
O mundo que inventaste não permite
nem que o rancor defina meu amor.
Teu corpo fecundei
inchou de mim
mas como um estupro do que te ofereci
recusaste a verdade do meu corpo
no filho que pariste
em vez do meu.
Meu destino cumpri em não ter sido.
Estou velho e só.
Que venha a morte
mas que seja minha.


(O José do poema é São José).

sábado, 9 de junho de 2012

Cecília Meireles, "Eu vejo o dia, o mês, ano ..."

Eu vejo o dia, o mês, o ano
- Por que viver sem ser preciso?
Eu não te minto, eu não te engano,
eu não te fujo: - eu agonizo.

Como um suspiro em pleno oceano,
digo-te adeus. Deixo-te o aviso
para outro encontro sobre-humano,
à luz de um vago Paraíso.

Sob o divino meridiano,
o sereno lábio conciso
beija o seu dolorido arcano*
como se fosse outro sorriso.

* arcano - Operação misteriosa dos alquimistas, coisa misteriosa ou secreta.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Carlos Drummond de Andrade, "Evocação Mariana"


A igreja era grande e pobre. Os altares humildes.
Havia poucas flores. Eram flores de horta.
Sob a luz fraca, na sombra esculpida
(quais as imagens e quais os fiéis?)
ficávamos.

Do padre cansado o murmúrio de reza
subia às tabuas do forro,
batia no púlpito seco,
entranhava-se na onda, minúscula e forte, de incenso,
perdia-se.

Não, não se perdia...
Desatava-se do coro a música deliciosa
(que esperas ouvir à hora da morte, ou depois da morte, nas campinas do ar)
e dessa música surgiam meninas - a alvura mesma -
cantando.

De seu peso terrestre a nave libertada,
como do tempo atroz imunes nossas almas,
flutuávamos
no canto matinal, sobre a treva do vale.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Miguel Torga, "Jardim da Lembrança"


No jardim da lembrança,
Onde cultivo as flores
Da perpétua e alada primavera,
Nem a terra se cansa,
Nem desmaiam as flores,
Nem o pólen dos sonhos desespera.

Tudo ali permanece
Fiel ao devotado jardineiro,
Que na distância tece
O halo que merece
Cada rosa acordada no canteiro,
Quando o dia das rosas amanhece.

Horto da infância entre areais adultos,
Há nele ainda a sombra de dois vultos
Que debruam de amor a pequena extensão
Desse mundo florido
Onde sempre feliz tenho vivido,
Graças à graça da imaginação.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Carpinejar, "Entardeço ..."


Entardeço sem ênfase.
Não sei fechar um livro
ou vedar uma frase.

As confissões são inventadas.
Meus personagens foram maiores
do que o enredo.

domingo, 3 de junho de 2012

Al-Mu'tamid, "Só eu sei ..."


Só eu sei quanto me dói a separação!
Na minha nostalgia fico desterrado
À míngua de encontrar consolação.
À pena no papel escrever não é dado
Sem que a lágrima trace, caindo teimosa,
Linhas de amor na página da face.
Se o meu grande orgulho não obstasse
Iria ver-te à noite: orvalho apaixonado
De visita às pétalas da rosa.

Al-Mutamid Alã-l-lãh ibn 'Abbãd Abu-l-Qasin Muhammad nasceu em Beja (Portugal) em 1040 e morreu em Agmat (Marrocos) em  1095.
Tradução de Adalberto Alves, do livro "O meu coração é árabe".

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Paulo Henriques Britto













"Primeira peça acadêmica"

Isto, também, não é uma solução.
Não chega a ser sequer uma promessa.
Desesperar está fora de questão,

porém, por mais inútil que pareça,
é necessário prosseguir. O jeito
é continuar a procurar a peça

que encaixa certo no lugar perfeito,
ocupando o ponto vazio do esquema -
se o esquema foi entendido direito,

pressupondo-se também que o dilema
foi bem equacionado matematica-
mente. Porém resta ainda um problema:

mesmo que seja correta a temática,
e se a linguagem for apenas fática?