sábado, 30 de novembro de 2013

Vinícius de Moraes, "Poética II"


Com as lágrimas do tempo
E a cal do meu dia
Eu fiz o cimento
Da minha poesia.

E na perspectiva
Da vida futura
Ergui em carne viva
Sua arquitetura.

Não sei bem se é casa
Se é torre ou se é templo
(Um templo sem Deus).

Mas é grande e clara
Pertence ao seu tempo
- Entrai, irmãos meus!


sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Antonio Cicero, "Stromboli"*


Dormes,
Belo.
E eu não, eu velo
Enquanto voas ou velejas
E inocente exerces teu império.
Amo: o que é que tu desejas?
Pois sou a noite, somos
Eu poeta, tu proeza
E de repente exclamo:
Tanto mistério é,
Tanta beleza.


A ilha de Stromboli, no mar Mediterrâneo, foi onde Éolo, o Deus dos Ventos, deu a Ulisses um saco de couro onde estavam presos todos os ventos, exceto o "vento oeste", que o levaria de volta à sua ilha de Ítaca.


quarta-feira, 27 de novembro de 2013

José Paulo Paes












"Poética"

Não sei palavras dúbias. Meu sermão
chama ao lobo verdugo e ao cordeiro irmão.

Com duas palavras fraternas, cumplicio
A ilha prometida à proa do navio.

A posse é-me aventura sem sentido.
Só compreendo o pão dividido.

Não brinco de juiz, não me disfarço em réu.
Aceito meu inferno, mas falo do meu céu.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Hilda Hilst, "Poemas Malditos, Gozosos e Devotos"

O conjunto dos "Poemas Malditos, Gozosos e Devotos" são vinte e um poemas onde Hilda Hilst se dirige a Deus.
Ela tem uma leitura cristã, crê nele, mas é uma relação contraditória, onde convivem a devoção, a dúvida, a sedução e a heresia.
Os poemas foram publicados pela primeira vez em 1984.

Farei uma seleta de certos versos de cada um dos vinte e um poemas.


I
..........
Pés burilados
Luz-alabastro
Mandou seu filho
Ser trespassado

Nos pés de carne
Nas mãos de carne
No peito vivo. De carne.

Cuidado.
............

II
.................
Se tu é água
É tocha. É máquina
Poderosa se és rocha.

Um olfato que aspira.
Teu rastro. Um construtor
De finitudes gastas.

É Deus.
Um sedutor nato.
..........

III
................
Caio sobre teu colo.
Me retalhas.
Quem sou?
Tralhas, do teu divino humor.
.................

IV  (integral)

Doem-te as veias?
Pulsaram porque fizeste
Do barro os homens.
E agora dói-te a razão?
Se me visses
Panelas, cuias

E depois de prontas
Me visses
Aquecê-las a um ponto
A um grande fogo
Até fazê-as desaparecer

Dirias que sou demente
Louca?
Assim fizeste aos homens.

Me deste a vida e a morte
Não te dói o peito?
Eu preferia
A grande noite negra
A esta luz irracional da Vida.

V (integral)

Para um Deus, que singular prazer
Ser o dono de ossos, ser o dono de carnes
Ser o Senhor de um breve nada: o homem.
Equação sinistra
Tentando parecença contigo,. Executor.

O Senhor do meu canto, dizem?  Sim.
Mas apenas enquanto dormes.
Enquanto dormes, eu tento meu destino.
Do teu sono
Depende meu verso minha vida minha cabeça.

Dorme, inventado imprudente menino.
Dorme. Para que o poema aconteça.

VI

Se mil anos vivesse
Mil anos te tomaria.
Tu
E tua cara fria.
........................
Teu vício de palavras.
Teu silêncio de facas.
As nuas molduras
de tua alma.
...........................
Imagina-te a mim
A teu lado inocente
A mim, e a essa mistura
de piedosa, erudita, vadia
E tão indiferente.

Tu sabes.
Poeta buscando altura
nas tuas coxas frias.
...............

VII (integral)

É rígido e mata
Com seu corpo estaca.
Ama mas crucifica.

O texto é sangue
E hidromel.
E sedoso e tem garra
E lambe teu esforço

Mastiga teu gozo
Se tens sede, é fel.

Tem tríplices caninos.
Te trespassa o rosto
E chora menino
Enquanto agonizas.

É pai, filho, passarinho.

Ama. Pode ser fino
Como um inglês.
É genuíno. Piedoso.
Quase sempre assassino.
É Deus.

VIII (integral)

É neste mundo que te quero sentir
É o único que sei. O que me resta.
Dizer que vou te conhecer a fundo
Sem as bênçãos da carne, no depois,
Me parece a mim magra promessa.
Sentires da alma? Sim. Pode, ser prodigiosos.
Mas tu sabes da delícia da carne.
Dos encaixes que inventaste. De toques.
Do formoso das hastes. Das corolas.
Vês como fico pequena e tão pouco inventiva?
Haste. Corola. São palavras róseas. Mas sangram.

Se feitas de carne.

Dirás que o humano desejo
Não te percebe as fomes. Sim, meu Senhor,
Te percebo. Mas deixa-me amar a ti, neste texto
Com os enlevos
De uma mulher que só sabe o homem.

IX

Poderias ao menos tocar
As ataduras da tua boca?
Panos de linho luminescentes
Com que magoas
Os que te pedem palavras?
....................
Me permitirias te sentir a língua
Essa peça que alisa nossas nucas
E fere rubra
Nossas Humanas delicadas espessuras?
.................
Poderia, meu Deus, me aproximar?
Tu, na montanha.
Eu no meu sonho
de estar
Nos resíduos dos teus sonhos?

X

.......................
Busco tua boca de veios
Adentro-me nas emboscadas
vazia te busco
os meios.
Te fechas, teia de sombras
Meus Deus, te guardas.

A quem te procura, calas,
A mim que pergunto escondes
Tua casa e tuas estradas.
Depois trituras. Corpo de amantes
E amadas.

E buscas
A quem nunca te procura.

XI (integral)

Sobem-me as águas. Sobem-me as fúrias.
Fartas me sobem dor e palavras.
De vidro, nozes, de vinhas, me sabem dores
Tão tardas, tão carecentes.

Por que te fazes antigo, se nunca te demoraste
Na terra que preparei, nem nas calçadas
Da casa? Me vês e me pensas caça?
Ai, não. Não me pensas. Eu sim, nas noites

Que caminhadas. Que sangramento de passos.
Que cegueira pretendendo
Seguir teu próprio cansaço. Olha-me a mim.
Antes que eu morra de águas, aguada do que inventei.

XII

Estou sozinha se penso que tu existes.
Não tenho dados de ti, nem tenho tua vizinhança.
E igualmente sozinha se tu não existes.
De que adiantam
Poemas ou narrativas buscando

Aquilo, que se não é, não existe
Ou se existe, então se esconde
Em sumidouros e cimos, nomenclaturas

Naquelas não evidências
De matemática pura? É preciso conhecer
com precisão para mar? Não te conheço.
....................................

XIII

....................
Alguém me diz que esse alguém
eu gritava, a mim se parecia.
Mas era mais menina, percebes?
De certo modo mais velha
Como alguém que voltando de guerrilhas
Mulher das matas, filha das ideias.
......................

XIV (integral)

Se te ganhasse, meu Deus, minh'alma se esvaziaria?
Se a mim me aconteceu com os homens, por que não com Deus?
De início as lavas do desejo, e rouxinóis no peito.
E aos poucos lassidão, um desgosto de beijos, um esfriar-se

Um pedir que se fosse, fartada de carícias.
Se te ganhasse, que coisas ainda desejaria minh'alma?
Se ficasses? Que luz seria em mim mais luminosa?
Que negrume mais negro?

Não haveria mais nem sedução, nem ânsias.
E partirias. Em vazia de ti porque tão cheia.
Tu, em abastanças do sentir humano, de novo dormirias.

XV (integral)

Desenho um touro na seda.
Olhos de um ocre espelhado
O pelo negro, faustoso
Seduzo meu deus montado
Sobre este touro.

Desenhas Deus? Desenho o nada
Sobre este grande costado.
Um rio de cobre deságua
Sobre estas patas.
Uma mulher tem nas mãos
Uma bacia de águias

Buscando matar a sede
Daquele divino Nada.

O touro e a mulher sou eu.
Tu és, meu Deus,
A vida não desenhada
Da minha sede de céus.

XVI

Se eu já soubesse quem sou
Te saberia. Como não sei
Planto couves e cravos
e espero ver tua cara
Em tudo que semeei.
.................................

XVII (integral)

Penso que tu mesmo cresces
Quando te penso. e digo sem cerimônias
Que vives porque te penso.
Se acaso não te pensasse
Que fogo se avivaria não havendo lenha?
E se não houvesse boca
Por que o trigo cresceria?

Penso que o coração
Tem alimento na Ideia.
Teu alimento é uma serva
Que bem te serve á mão cheia.
Se tu dormes ela escreve
Acordes que te nomeiam.
Abre teus olhos, meu Deus.
Come de mim a tua fome.

Abre tua boca. E grita este nome meu.

XVIII

Se some, tem cuidado.
Se não some é fardo.
Cuida que ele não suma

Pois ficará mais pesado
Se sumir de tua alma.
................
Cuida que tal ideia
te tome. melhor um cheio de dentro
Que não conheces, um fartar-se
De um nada conhecimento

Do que um vazio de luto
Umas cascas sem os frutos
Pele sem corpo, ou ossos
Sem matérias que os sustente.
..............................

XIX

Teus passos somem
Onde começam as armadilhas.
Curvo-me sobre a treva que me espia.
......................
Então me deito sobre as roseiras.
Hei de saber o amor à tua maneira.

Me queimo em sonhos, tocando estrelas.

XX (integral)

Move-te. Desperta.
Há homens à tua procura.
Há uma mulher que sou eu.
A terra mora na Via-Láctea
Eu moro à beira de estradas
Não sou pequena nem alta.

Sou muito pálida
porque muito caminhei
Nas escurezas, no vício
De perseguir uns falares
Teus indícios.

Move-te. Tua aliança com os homens
Teu atar-se comigo
Tem muito de quebra e dessemelhança.
Muitos de nós agonizam.
A terra toda. Há de ser quase
brinquedo adivinhares
Onde reside o pó, onde reside o medo.

Não te demores.
Eu tenho medo: Poeira.

Move-te se te queres vivo.


XXI (integral)

Não te machuque a minha ausência, meu Deus,
Quando eu não mais estiver na Terra
Onde agora canto amor e heresia.
Outros hão ferir e amar
Teu coração e corpo. Tuas bifrontes
valias, mandarim e ovelha, soberba e timidez.

Não temas.
meus pares e outros homens
Te farão viver destas duas voragens:
Matança e amanhecer, sangue e poesia.

Chora por mim. pela poeira que fui
Serei e sou agora. pelo esquecimento
Que virá de ti e dos amigos,
Pelas palavras que te deram vida
E hoje me dão morte. Punhal, cegueira

Sorri, meu deus, por mim. De cedro
De mil abelhas tu és. Cavalo d'água
Rondando o ego. Sorri. Te amai sonâmbula
Esdrúxula, mas te amei inteira.

domingo, 24 de novembro de 2013

Eugénio de Andrade, "Matéria nobre"


Pode ouvir-se ainda o seu
bater contra o peito.
Há tantos, tantos anos exposto
à violência da luz do meio
dia. Quase amargo, quase
doce. Só a paixão o rouba
à morte, o impede de ser
panela esburacada
onde o vento assobia.
Ou pior, coisa viscosa, mole,
inerme. Coração,
matéria nobre.

sábado, 23 de novembro de 2013

António Ramos Rosa, "Para um amigo tenho sempre um relógio"


Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Carlos Machado, "Trama"


E se o amor - essa trama de pronomes
oblíquos e possessivos, frases feitas
e desatinos - adormecesse sereno
à sombra dos relógios? E se então

com o tecido a salvo e o fogo contido,
fosse possível abrandar o calor
das fornalhas e o fragor das batalhas,
quanto de sossego restaria? Quanto

de azul viria cortejar o amanhecer
do sábado? Quanto fermento seria
necessário para compor o pão de cada

dúvida? Quanto de amor, ele mesmo
- esse bicho sagaz e sangrento -, ficaria
para contar a história dos desatinos?
 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Bruno Tolentino, "Mecanismos"


Havia um azul sereno
naquele roxo florindo,
o jardim dava no tempo
e o tempo passava rindo.

É tudo de que me lembro.
Quase nada do que sinto.
Deu-se a flor ao pensamento
entre a memória e o instinto.

O mais é aquilo que invento,
as músicas que mal digo,
orvalhos ficam sendo
daquele jardim antigo.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Jorge de Sena, "Independência"


Recuso-me a aceitar o que me deram.
Recuso-me às verdades acabadas:
Recuso-me, também, às que tiverem
Pousadas no seu fim as sete espadas.

Recuso-me às espadas que não ferem
E às que ferem por não serem dadas.
Recuso-me aos eus-próprios que vierem
E às almas que já foram conquistadas.

Recuso-me a estar lúcido ou comprado
E a estar sozinho ou estar acompanhado.
Recuso-me a morrer,. Recuso a vida.

Recuso-me à inocência e ao pecado
Como a ser livre ou ser predestinado.
Recuso tudo, ó Terra dividida.



domingo, 17 de novembro de 2013

Fernado Pessoa, Álvaro de Campos, "A Praça da Figueira..."


A Praça da Figueira de manhã,
Quando o dia é de sol (como acontece
Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,
Embora seja uma memória vã.

Há tanta coisa mais interessante
Que aquele lugar lógico e plebeu!
Mas amo aquilo, mesmo assim... Sei eu
Por que o amo? Não importa nada... Adiante!

Isto de sensações só vale a pena
Se agente se não põe a olhar para elas.
Nenhuma delas em mim é serena...

De resto, nada em mim é certo e está
De acordo consigo próprio... As hora belas
São as dos outros, ou as que não há.

sábado, 16 de novembro de 2013

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Alphonsus de Guimaraens Filho, "Ventava"


Ventava muito. Era a hora
estranha em que luz, se havia,
se misturava à agonia
que, em todos, tudo estertora.

Ventava em dias perdidos,
vidas perdidas...Ventava,
e a noite se dispersava
nos mortos, cegos, feridos.

Ventava nas guerras idas,
guerras de sempre... Ventava,
e o coração abrigava
faces desaparecidas.

Ventava. Ventava tanto
que o mundo convulsionava
a escuridão que ventava
de dor, de sangue, de espanto.

E o coração pressentia
que nada mais o amparava
senão a chama que uivava,
de irrecuperável dia.


quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Ana Cristina Cesar











"Sem você..."

Sem você bem que sou lago, montanha.
Penso num homem chamado Herberto.
Me deito a fumar debaixo da janela.
Respiro com vertigem. Rolo no colchão.
E sem bravata, coração, aumento o preço.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Cecília Meireles, "Murmúrio"


Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
- vê que nem te peço alegria.

Traze-me um pouco da alvura dos luares
que à noite sustenta, no seu coração!
A alvura, apenas, dos ares;
- vê que nem te peço ilusão.

Traze-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saudade da flor!
- Vê que nem te digo - esperança!
- Vê que nem sequer sonho - amor!

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Carlos Pena Filho, "Soneto"


Por trás do musgo silencioso e espesso
que cresce no teu ventre desolado,
nasce um mundo obscuro e inusitado
que eu não sei se mereço ou desmereço.

Sei apenas que às vezes, quando teço
canções noturnas do prazer frustrado,
sou, nem sei porque sombras, exilado
para além do meu fim e meu começo.

Esse teu mundo, concha que é morada
de anêmonas e polvos, é mais raro
que a luz de Deus na noite abandonada.

E é por isso talvez que não se entrega
e me deixa a esperar teu corpo claro
de fêmea esquiva que ao prazer se nega.


domingo, 10 de novembro de 2013

sábado, 9 de novembro de 2013

A poesia, segundo Mario Quintana.


Meu caro poeta,

Por um lado foi bom que me tivesses pedido resposta urgente, senão eu jamais escreveria sobre o assunto desta, pois não possuo o dom discursivo e expositivo, vindo daí a dificuldade que sempre tive de escrever em prosa. A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar. O poema, não; descreve uma parábola traçada pelo próprio impulso (ritmo); é que nem um grito. Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada; algo de instintivo, carregado de emoção.

Com isso não quero dizer que o poema seja uma descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma carga emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá. Por isso há versos de Camões que nos abalam tanto até hoje e há versos de hoje que os pósteros lerão com aquela cara com que lemos os de Filinto Elísio. Aliás, a posteridade é muito comprida: me dá sono. Escrever com o olho na posteridade é tão absurdo como escreveres para os súditos de Ramsés II, ou para o próprio Ramsés, se fores palaciano. Quanto a escrever para os contemporâneos, está muito bem, mas como é que vais saber quem são os teus contemporâneos? A única contemporaneidade que existe é a da contingência política e social, porque estamos mergulhados nela, mas isto compete melhor aos discursivos e expositivos, aos oradores e catedráticos. Que sobra então para a poesia? — perguntarás. E eu te respondo que sobras tu.

Achas pouco? Não me refiro à tua pessoa, refiro-me ao teu eu, que transcende os teus limites pessoais, mergulhando no humano. O Profeta diz a todos: “eu vos trago a verdade”, enquanto o poeta, mais humildemente, se limita a dizer a cada um: “eu te trago a minha verdade.” E o poeta, quanto mais individual, mais universal, pois cada homem, qualquer que seja o condicionamento do meio e da época, só vem a compreender e amar o que é essencialmente humano. Embora, eu que o diga, seja tão difícil ser assim autêntico. Às vezes assalta-me o terror de que todos os meus poemas sejam apócrifos!

Meu poeta, se estas linhas estão te aborrecendo é porque és poeta mesmo. Modéstia à parte, as digressões sobre poesia sempre me causaram tédio e perplexidade. A culpa é tua, que me pediste conselho e me colocas na insustentável situação em que me vejo quando essas meninas dos colégios vêm (por inocência ou maldade dos professores) fazer pesquisas com perguntas assim: “O que é poesia? Por que se tornou poeta? Como escreve os seus poemas?”. A poesia é dessas coisas que a gente faz mas não diz.

A poesia é um fato consumado, não se discute; perguntas-me, no entanto, que orientação de trabalho seguir e que poetas deves ler. Eu tinha vontade de ser um grande poeta para te dizer como é que eles fazem. Só te posso dizer o que eu faço. Não sei como vem um poema. Às vezes uma palavra, uma frase ouvida, uma repentina imagem que me ocorre em qualquer parte, nas ocasiões mais insólitas. A esta imagem respondem outras. Por vezes uma rima até ajuda, com o inesperado da sua associação. (Em vez de associações de ideias, associações de imagem; creio ter sido esta a verdadeira conquista da poesia moderna.)

Não lhes oponho trancas nem barreiras. Vai tudo para o papel. Guardo o papel, até que um dia o releio, já esquecido de tudo (a falta de memória é uma bênção nestes casos). Vem logo o trabalho de corte, pois noto logo o que estava demais ou o que era falso. Coisas que pareciam tão bonitinhas, mas que eram puro enfeite, coisas que eram puro desenvolvimento lógico (um poema não é um teorema) tudo isso eu deito abaixo, até ficar o essencial, isto é, o poema. Um poema tanto mais belo é quanto mais parecido for com o cavalo. Por não ter nada de mais nem nada de menos é que o cavalo é o mais belo ser da Criação.

Como vês, para isso é preciso uma luta constante. A minha está durando a vida inteira. O desfecho é sempre incerto. Sinto-me capaz de fazer um poema tão bom ou tão ruinzinho como aos 17 anos. Há na Bíblia uma passagem que não sei que sentido lhe darão os teólogos; é quando Jacob entra em luta com um anjo e lhe diz: “Eu não te largarei até que me abençoes”. Pois bem, haverá coisa melhor para indicar a luta do poeta com o poema? Não me perguntes, porém, a técnica dessa luta sagrada ou sacrílega. Cada poeta tem de descobrir, lutando, os seus próprios recursos. Só te digo que deves desconfiar dos truques da moda, que, quando muito, podem enganar o público e trazer-te uma efêmera popularidade.

Em todo caso, bem sabes que existe a métrica. Eu tive a vantagem de nascer numa época em que só se podia poetar dentro dos moldes clássicos. Era preciso ajustar as palavras naqueles moldes, obedecer àquelas rimas. Uma bela ginástica, meu poeta, que muitos de hoje acham ingenuamente desnecessária. Mas, da mesma forma que a gente primeiro aprendia nos cadernos de caligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria, espelho grafológico da sua individualidade, eu na verdade te digo que só tem capacidade e moral para criar um ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto clássico.

Verás com o tempo que cada poema, aliás, impõe sua forma; uns, as canções, já vêm dançando, com as rimas de mãos dadas, outros, os dionisíacos (ou histriônicos, como queiras) até parecem aqualoucos. E um conselho, afinal: não cortes demais (um poema não é um esquema); eu próprio que tanto te recomendei a contenção, às vezes me distendo, me largo num poema que vai lá seguindo com os detritos, como um rio de enchente, e que me faz bem, porque o espreguiçamento é também uma ginástica. Desculpa se tudo isso é uma coisa óbvia; mas para muitos, que tu conheces, ainda não é; mostra-lhes, pois, estas linhas. Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os poetas de que gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu a eles. São os únicos que te convêm, pois cada um só gosta de quem se parece consigo. Já escrevi, e repito: o que chamam de influência poética é apenas confluência. Já li poetas de renome universal e, mais grave ainda, de renome nacional, e que no entanto me deixaram indiferente. De quem a culpa? De ninguém. É que não eram da minha família.

Enfim, meu poeta, trabalhe, trabalhe em seus versos e em você mesmo e apareça-me daqui a vinte anos. Combinado?

Copiado do  site http://www.algumapoesia.com.br , do Carlos Machado, no link "Outras Palavras".



sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Ricardo Aleixo, "Cine-olho"


Um
menino
não.
Era
mais
um
felino
um
Exu
afelinado
chispando
entre
os
carros

um
ponto
riscado
a
laser
na
noite
de
rua
cheia

ali
para
os
lados
do
Mercado.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Paulo Henriques Britto













 
"Noturno"

A noite é cuidadosa com seus cúmplices.
Enorme prostituta complacente,
acolhe toda insônia e compreende
todo o postiço, todo o falso dúplice.
Abraço o pássaro assustado e arisco
dessa hora de máscaras agudas.
Meu gesto limpo, que ninguém escuta,
se esgota sem alarde, sem perigo.
O escuro é bom. Dispo o desejo e os óculos,
cuspo as palavras claras: maravilha,
identidade, lucidez, vigília,
abrasador. Sou mudo, nu, ilógico.
A noite aceita esse meu ser noturno,
inverso, incubo, e goza. Eu durmo.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

José Paulo Paes, "Auto epitáfio nº 2"


para quem sempre pediu tão pouco
o nada é positivamente um exagero.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

domingo, 3 de novembro de 2013

António Patrício, "Nós"


Tu vives a chorar, eu vivo a rir
E assim vamos morrendo de mãos dadas.
Tu falas p'ra rezar, eu p'ra mentir
E as nossas bocas beijam-se encantadas...

Rezas por nós, por este amor a abrir
Em quimeras que nascem condenadas...
Minto por nós, para poder sorrir;
Erguer alegre as tuas mãos nevadas...

Tu crês, eu não creio e minto;
E as tuas rezas tem tanta piedade
Como as palavras trêmulas que eu sinto.

Mentir é afinal rezar sem crença:
E de mãos dadas, pela tempestade,
O nosso amor é uma oração imensa!

sábado, 2 de novembro de 2013

David Mourão Ferreira, "Herança"


Ouvir, ouvir de noite uma ambulância,
E desejar que estejas a morrer;
Fechar a porta à minha própria infância;
Amigos, conhecidos, nem os ver;

Quebrar nas mãos o aro da esperança;
Mas de mim para mim depois dizer:
"Calma! Quem nada espera tudo alcança...";
E guardar o revolver; e beber;

A sós, o vinho que na taça baste
A recompor-se, viva na distância;
Isto foi, como herança, o que deixaste.

E ainda o mais que não te quis dizer;
Ouvir, ouvir de noite uma ambulância,
E desejar ser eu quem vai morrer...