segunda-feira, 30 de junho de 2014

Nicolas Behr



JK construiu Brasília
os candangos ficaram olhando


domingo, 29 de junho de 2014

Raul de Carvalho, "Amiúde"


No vale dos afectos
ninguém está seguro:
Míngua a lembrança,
Esquece-se o rosto,
Retorna-se ao eu.
Os lábios secam, as palavras dormem, os sonhos
       dispersam-se, a presença ausenta-se, há o lago de
       que não se vê o fundo -

E apenas as pequenas ilusões
- um café, o cigarro, a limonada -
imitam dois corações unidos ...

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Hilda Hilst










"Aflição de ser eu e não ser outra..."
                                              
                       "Aflição de ser terra / Em meio às águas"
                                    Péricles E. da Silva Ramos

Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha


Objeto de amor, atenta e bela.
Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha.)


Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel


Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra.


quinta-feira, 26 de junho de 2014

Manuel António de Pina. "A avó"


Tinha ao colo o gato velho
cansadamente passando
a sua branca mão pelo
pelo dele preto e brando

Sentada ao pé da janela
olhando a rua ou sonhando-a
todo o passado passando
a passos lentos por ela

Dormiam ambos enquanto
a tarde se ia acabando
o gato dormindo por fora
a avó dormindo por dentro

terça-feira, 24 de junho de 2014

Wei Wan, "A candeia tremula, brilhante, brilhante ..."


A candeia tremula, brilhante, brilhante,
e o relógio d´água pinga e pinga.
Agora que meu amor partiu,
A noite é muito fria. 


 O vento do oeste agita-se e me leva de volta ao meu sonho. 


Será que alguém sente minha falta,
Aqui, recostada sozinha ao meu travesseiro
De testa franzida?

Minha cortina de brocado e meus lençóis bordados

mostram a madrugada do outono.

A dor me parte por dentro,
Caio em lágrimas secretas.

Ainda vejo uma luz brilhante na minha pequena janela oeste.

Eu te odeio.
Eu te adoro.

Mas como você pode saber disso?

 

Wei Wan foi uma poeta chinesa que viveu por volta de 1050.

O poema foi traduzido do chinês para o francês por Shi Bo, e dai para o português por Sérgio Caparelli.
 

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Meditação do Duque de Gandia sobre a Morte de Isabel de Portugal"


Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

Nunca mais te darei o tempo puro
Que em dias demorados eu teci
Pois o tempo já não regressa a ti
E assim eu não regresso e não procuro
O deus que sem esperança te pedi.



O poema se refere a um episódio acorrido com Francisco de Borja e Aragão, o Duque de Gandia.
Após servir à Imperatriz Isabel de Portugal por muitos anos, ele escoltou seu corpo de Lisboa até Granada, onde ela foi enterrada.
Quando viu o efeito da morte sobre aquela que fora uma grande e bela imperatriz, decidiu nunca mais servir a um senhor que pudesse morrer antes dele.

domingo, 22 de junho de 2014

sábado, 21 de junho de 2014

Al Berto, "foram breves e medonhas as noites de amor"


foram breves e medonhas as noites de amor
e regressar do âmago delas esfiapava-lhe o corpo
habitado ainda por flutuantes mãos

estava nu
sem água e sem luz que lhe mostrasse como era
ou como poderia construir a perfeição

os dias foram-se sumindo cor de chumbo
na procura incessante doutra amizade
que lhe prolongasse a vida

e uma vez acordou
caminhou lentamente por cima da idade
tão longe quanto pôde
onde era possível inventar outra infância
que não lhe ferisse o coração

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Reynaldo Valinho Alvarez, "Estrangeiro"


Sou estrangeiro em todos os lugares.
Inútil procurar-te, aldeia minha.
Subo de escada todos os andares,
com a fria espada a acutilar-me a espinha.
Não sou daqui nem sou de lá. Perdi-me
na indecisão de becos e de esquinas.
Como o pardal diante do gato, vi-me
apanhado por garras assassinas.
Os mapas pendurados nas paredes
riem de mim como insensíveis redes,
rasgando os peixes que não fogem mais.
Prenderam-me entre muros que abomino
e toda a noite entoam-me seu hino
de insultos, gritos e ódios triunfais.  

quinta-feira, 19 de junho de 2014

quarta-feira, 18 de junho de 2014

António Gomes Leal, "Em toda parte"


Eles tem dito e escrito que o Pecado
Anda disperso e rói o mundo inteiro,
Que habita o duro coração guerreiro,
E o peito feminino e delicado.
 
Que anda no ar, em nós, da flor no cheiro,
Das pugnas no ruído desolado,
No vinho, na paz doce do mosteiro,
—No corpo da mulher perfeito e amado!—

É, portanto, homem tímido e sujeito,
Quer te encostes, ou não, ao vão Direito,
O teu fúnebre gozo e teu tormento!
 
Habitua-te a tê-lo na Desgraça,
No ar, no chão, na flor, no som que passa,
—E até, serpente vil, no Pensamento!
 

terça-feira, 17 de junho de 2014

Ferreira Gullar, "O gol"


A esfera desce
do espaço
veloz
ele a apara
no peito
e a para
no ar
depois
com o joelho
  

a dispõe a meia altura
onde
iluminada
a esfera


espera
o chute que
num relâmpago
a dispara
na direção
do nosso
coração.



domingo, 15 de junho de 2014

Alexei Bueno



 









"Cemitério das Polacas* (Inhaúma, Rio)"
 
Nos beliches sobre o oceano,
Nas camas de Lapa ou Mangue
Fizeram-se, corpo e sangue,
Algo horizontal e plano.

Sob o lustre, ao som do piano,
Quanto gesto ousado ou langue,
Que mudo medo da gangue
Que as trouxe, que asco inumano.
 
Mas ei-las, ainda deitadas
Nos seus leitos de cimento,
Seus barcos sem amuradas.

Doadoras do esquecimento,
Ei-las na paz olvidadas
De todos, menos do vento.


* O chamado “Cemitério das Polacas”, que tem o nome oficial de Cemitério Israelita de Inhaúma, foi criado pela Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita, em 1916.

Esta Associação reunia mulheres judias trazidas ao Brasil (e também a outros países) por um grupo de judeus dedicado ao tráfico de brancas,conhecido como Zwig Migdal. Homens desse grupo, no período de 1890 até o início da 2ª. Guerra percorriam vilarejos da Europa Oriental e prometiam empregos ou casavam-se com judias jovens e pobres (quase sempre analfabetas) em cerimonias falsas que imitavam os costumes israelitas. As jovens só percebiam o golpe quando, já afastadas da família, eram levadas para prostíbulos no Rio de Janeiro (assim como para a Argentina, África do Sul,  Índia etc...) onde passavam a trabalhar nos bordéis, sendo conhecidas como “as francesas”.
Elas eram rejeitadas pela colônia judia, e após a morte eram enterradas como indigentes nos cemitérios públicos, pois, para a colônia, eram consideradas impuras por serem prostitutas. Devido à esta condição, sequer podiam receber as tradicionais cerimônias  para os mortos, e nos cemitérios israelitas seriam enterradas junto ao muro, com os suicidas e delatores.

Assim, criaram uma Associação, construíram uma sinagoga e estabeleceram um cemitério em Inhaúma.
O Cemitério Israelita de Inhaúma foi tombado definitivamente pela Prefeitura como Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro. Fica na Rua Piragibe, em Inhaúma.
(Copiado do excelente  http://rio-curioso.blogspot.com.br/, infelizmente interrompido em 2011.)
 

sábado, 14 de junho de 2014

Juan Ramón Jimenez














"Criar-me e recriar-me ..."

Criar-me, recriar-me, esvaziar-me até
que o que de mim um dia, morto, vá
para a terra, não seja eu; enganar honradamente,
plenamente, com vontade firme,
o crime, e deixar-lhe este espantalho negro
do meu corpo, como sendo eu!
                                                                 E esconder-me,
a sorrir, imortal, nas margens puras
do rio eterno, árvore
- num poente imarcescível*-
da imaginação mágica e divina.


* imarcescível: adj. Que não murcha, duradouro, eterno.
Tradução de José Bento.

Maria Callas, "Tacea la notte placida", ária da ópera "Il trovatore", de Verdi, com a Orquestra da Sociedade dos Concertos do Conservatório de Paris, sob regência do maestro Nicola Rescigno.


quinta-feira, 12 de junho de 2014

Dora Ferreira da Silva, "Partitura com lua"


Notação de pássaros
no fio da rua:
mínimas semínimas pausas.
Sobre o piano rosas estremecem.
Cadências de alma sobressaltam um público
desalento e ao relento ressoam
algumas dissonâncias (tropel de potros
presos numa sala). Mas por acaso em pura sinfonia
pássaros refazem a partitura
no heptacorde* dos fios da rua.
Ei-la tão plena do dia findo azulado —
a lua soberana e alta
do sono deste outono. 
 
* heptacorde - lira antiga com sete cordas.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Álvaro Pacheco, "Dúvida"


O que fazer da alma quando o corpo ruge
a sua fome ?

- e o que fazer do corpo quando
a alma hesita?



segunda-feira, 9 de junho de 2014

Álvares de Azevedo, "É ela! É ela! É ela! É ela! "


É ela! É ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou —
é ela!
Eu a vi... minha fada aérea e pura —

A minha lavadeira na janela!
Dessas águas-furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas;
Eu a vejo e suspiro enamorado!
Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!
Como dormia! Que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado!
Afastei a janela, entrei medroso...
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido...
Oh! de certo... (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores;
São versos dela... que amanhã de certo
Ela me enviará cheios de flores...
Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio...
É ela! É ela!
repeti tremendo;
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! Meu Deus! Era um rol de roupa suja!
Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas
Se achou-a assim mais bela —
eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!
É ela! É ela! meu amor, minh'alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! É ela! —
murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou —
é ela!
  

domingo, 8 de junho de 2014

Gaspara Stampa, "Soneto de amor"


Se quereis conhecer o meu senhor,
Suponde alguém de vago e doce aspecto,
Jovem na idade e velho no intelecto,
A imagem do triunfo e do valor;

Claro o cabelo e a tez de viva cor,
De boa altura e de garboso peito,
Em tudo quanto faz um ser perfeito,
Só que um pouco (ai de mim!) cruel no amor.

E se quiseres conhecer meu porte,
Vede alguém que nos gestos e semblante
É a imagem dos martírios e da morte;

Fortaleza da fé, pura e constante,
Alguém que embora sofra, arda e suporte,
Não faz piedoso ao seu cruel amante.

Gaspara Stampa foi uma poeta italiana que nasceu em 1523 (Pádua)  e morreu em 1554 (Veneza).

Tradução de Ivo Barroso.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Antônio Carlos Secchin, "Noturno"

 
Os reis de Copa
ostentam eretas
espadas mestras
em frente ao mar.
Transatlânticos desejos
encalhados na areia.
Damas de paus
e valentes seios
expostos à carícia
de dólares e brisas.
Eis Lizbeth, ou João Batista,
ouro puro do subúrbio,
ex-ás do cais do porto,
atual contorcionista
do pescoço de pilotos
à procura de conquistas.
O seu rosto é reformado
por algum cirurgião-artista,
pois queixo, nariz e olhos
revelam influência cubista.
Passeiam pares de bicicletas
sob um céu abotoado de estrelas.
Na luz plástica dos postes
passam famintas pombas pretas.
Fome de tudo, em meio à neblina:
saliva, esperma, cocaína.
O bigode roça a nuca sôfrega.
E enquanto o corpo exala e treme
passa, ácida, a patrulha
de um insone PM.
O amor é de lei
ou desviado? Pouco importa;
a polícia, na maior parte,
só sabe celebrar
os rituais de Marte.
Mas frente a ímã tão terreno
caos e lei se entredevoram
em cabine ao abrigo do sereno.
Ao guarda rapaz apraz, ao menos,
a ronda noturna no planeta Vênus.
 

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Lau Siqueira, "aos predadores da utopia"


dentro de mim
morreram muitos tigres 
 
os que ficaram

no entanto
são livres

terça-feira, 3 de junho de 2014

Álvaro Pacheco, "O preço"


Paguei todos os preços
que pediram: para começar
nasci.

Depois fui tropeçando
sabendo e não sabendo,
vendo e não vendo,

mas o tempo todo
pagando todos os preços sobrepostos.

-  E a solidão?

Acho
que paguei muito mais  do que cobraram.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Dora Ferreira da Silva, "Manhã e pássaros"


Voltamos ao jardim
ao banco lavado pela chuva.
Pedimos o verde ao verde
a flor à flor
sem quebrar-lhe a haste. Bastaria a manhã.
(Nossa presença
desalinha ar e folhas
num frêmito.)

Mas se nada pedimos
como quem dorme seguindo a linha natural
do corpo
respiramos o puro abandono:
um pássaro alveja o azul (sem par)
ultrapassa o muro do possível
e assim damos um ao outro
a súbita presença
do Céu.