quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Mario Quintana, "Projeto de prefácio"


Sábias agudezas... refinamentos...
— não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes dos caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe.
Um poema não é quando também paras no fim,
porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras!


segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Jacinta Passos, "Nascimento"


O ano foi vinte e dois.  Criatura de desejo
e sonho.  Carne e luar na boca das profecias.
Aqui está recém-nascido, úmido de lágrimas
e leite, filho das dores, criança concebida 
na injustiça.


O poema refere-se ao Partido Comunista Brasileiro, fundado em 1922.
 

domingo, 28 de dezembro de 2014

Manuel Bandeira, "Poema de Finados"


Amanhã que é dia dos mortos.
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.

Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
O filho tem mais precisão.

O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero.
E em verdade estou morto aqui.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Mario Quintana













"Outono"

O outono de azulejo e porcelana
Chegou! Minha janela é um céu aberto.
E esse estado de graça quotidiana
Ninguém o tem sob outros céus, decerto!
Agora, tudo transluz... tanto mais perto
Quanto mais nossa vista de alontana
E o morro, além, no seu perfil tão certo,
Até parece em plena via urbana!
Tuas tristezas... o que é feito delas?
Tombaram como as folhas amarelas
Sobre os tanques azuis... Que desaponto!
E agora este cartaz na alma da gente:
ADIADOS OS SUICÍDIOS ... Simplesmente
Porque é abril em Porto Alegre... E pronto!

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

José Carlos Capinan, "Outra didática"


Dou ao meu verso usos de clareza
de um rio coerente à sua limpeza.
Não desvirtuei a cidade que percebi,
denunciei o fruto como o recebera.

Não me veio pressa ao fazer ou adquirir.
O que fiz exigia madurar-se em corpo,
o que adquiri foi bom, sendo por carência.
Antes tive fome e sede, depois o gosto.

Como se alternaram os caminhos,
preferi aquele que ao mar se prestaria
qual raiz de acontecimento.
E alguma vez me encontrei perdido.

Ante desvio e ponte arruinados
surpreendido o verso é grave e pesa, o verso é grave.
Mas como tudo, sei, guarda um sentido
nenhuma tristeza tenho da realidade.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Ana Cristina Cesar











"Recuperação da adolescência"

é sempre mais difícil
ancorar um navio no espaço

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Alejandra Pizarnik












"A noite"

Pouco sei da noite

mas a noite parece saber de mim,
e mais ainda, me acompanha como se me quisesse,
cobre-me a existência com suas estrelas.

Talvez a noite seja a vida e o sol a morte.

Talvez a noite é nada

e as suposições sobre ela nada
e os seres que nela vivem nada.
Talvez só as palavras existam
no enorme vazio dos séculos
que nos arranham a alma com suas lembranças.

Mas a noite há de conhecer a miséria
que bebe nosso sangue e nossas ideias.
Ela deve lançar ódio aos nossos olhares
sabendo-os cheios de interesses, de desencontros.

Mas acontece que ouço a noite chorar em meus ossos.
Sua lágrima imensa delira
e grita que algo se foi para sempre.

Talvez algum dia voltaremos a ser.

Tradução amadora minha.



"La noche"

Poco sé de la noche  


pero la noche parece saber de mí,
y más aún, me asiste como si me quisiera,
me cubre la existencia con sus estrellas.  


Tal vez la noche sea la vida y el sol la muerte.  

Tal vez la noche es nada

y las conjeturas sobre ella nada
y los seres que la viven nada.
Tal vez las palabras sean lo único que existe
en el enorme vacío de los siglos
que nos arañan el alma con sus recuerdos.

Pero la noche ha de conocer la miseria
que bebe de nuestra sangre y de nuestras ideas.
Ella debe arrojar odio a nuestras miradas
sabiéndolas llenas de intereses, de desencuentros.  


Pero sucede que oigo a la noche llorar en mis huesos.
Su lágrima inmensa delira
y grita que algo se fue para siempre.

Alguna vez volveremos a ser.


sábado, 20 de dezembro de 2014

Mãe curda aleitando o filho numa pausa do combate ao exército do Estado Islâmico (ISIS).

 
































Copiado do site http://isimeria.tumblr.com

Ibn Suhayd, "A tempestade"


Na escuridão,
abria cada flor a sua boca
aos úberes da chuva fecunda.

Carregados de água,
os exércitos das negras nuvens,
majestosamente,
desfilavam, armados
com os dourados sabres dos relâmpagos.


Abū 'Āmir ibn Šuhayd, ou apenas Ibn Suhayd (992 - 1035), foi um poeta árabe andaluz que nasceu e morreu em Córdoba durante a ocupação árabe na península ibérica.

Traduzido do árabe para o espanhol por Emilio Garcia Gómez, e do espanhol para o português por Fernando Couto.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Roberto Piva


"Libelo"

Não mais trarei justificações
Aos olhos do mundo.
Serei incluído - pormenor esboçado -
Na grande Bruma.
Não serei batizado,
Não estarei doutorado,
Não serei domesticado
Pelos rebanhos
Da terra.
Morrerei inocente
Sem nunca ter
Descoberto
O que há de bem e mal
De falso ou certo
No que vi.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Luís Miguel Nava, "Os pratos da balança"


Por entre as rochas um rapaz, nas mãos levando uma balança, avança em direção ao mar. Vai procurar pesá-lo. Num dos pratos, o mar há-de revolver-se, debater-se, rebentar, há-de trazer à superfície a força das entranhas e atrair o céu, há-de o fazer precipitar-se até com ele se confundir, e as próprias rochas através das quais o rapaz segue hão-de pesar no prato ferozmente. Imperturbável, o rapaz colocará no outro prato o seu sorriso.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

António Osório, "Prado e cofre"


Prado e cofre,
testemunha discreta
do amor.

A cama.

Concha do sono,
companheira
dos partos,
do salto
e dor inicial
das crianças.

Berço da nossa morte.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Caetano, "Un vestido e un amor", de Fito Paez.





"Un Vestido Y Un Amor "           

Te vi
Juntabas margaritas del mantel
Ya sé que te traté bastante mal
No sé si eras un angel o un rubí
O simplemente te vi.

Te vi
Saliste entre la gente a saludar
Los astros se rieron otra vez
La llave de mandala se quebró
O simplemente te vi.

Todo lo que diga está de más,
Las luces siempre encienden en el alma
Y cuando me pierdo en la ciudad
Vos ya sabés comprender
Es solo un rato no más
 Tendría que llorar o salir a matar.
Te vi, te vi, te vi
Yo no buscaba nadie y te vi.

Te vi
Fumabas unos chinos en Madrid
Hay cosas que te ayudan a vivir
No hacías otra cosa que escribir
Y yo simplemente te vi.

Me fui
Me voy de vez en cuando a algún lugar
Ya sé, no te hace gracia este país
Tenías un vestido y un amor
Y yo simplemente te vi.

Todo lo que diga está de más,
Las luces siempre encienden en el alma
Y cuando me pierdo en la ciudad
Vos ya sabés comprender
Es solo un rato no más
Tendría que llorar o salir a matar.
Te vi, te vi, te vi
Yo no buscaba nadie y te vi.
 

Pedro Tamen













"Anti-Dürer"

Moras comigo. Alinhas
os teus dedos com os meus.

Comes comigo, dormes, tosses,
alimentas a fome e a fartura,
ergues os ossos com bandeira minha,
tão íntima, próxima, doméstica,
ogre de bolso, pinha de um pinheiro
crescente a par e passo com a sorte:
morte.

sábado, 13 de dezembro de 2014

Hilda Hilst












"Testamento lírico"

Se quiserem saber se pedi muito
Ou se nada pedi, nesta minha vida,
Saiba, senhor, que sempre me perdi
Na criança que fui, tão confundida.
À noite ouvia vozes e regressos.
A noite me falava sempre sempre
Do possível de fábulas. De fadas.
O mundo na varanda. Céu aberto.
Diante das muitas falas, das risadas.
Eu era uma criança delirante.
Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
De não saber dizer coisas amantes.
O que vivia em mim, sempre calava.

E não sou mais que a infância. Nem pretendo
Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!
Ter escolhido um mundo, este em que vivo,
Ter rituais e gestos e lembranças.
Viver secretamente. Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e dócil.
Querer deixar um testamento lírico
E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.

Nem sempre há de falar-vos um poeta.
E ainda que minha voz não seja ouvida
Um dentre vós resguardará (por certo)
A criança que foi. Tão confundida.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Iracema Macedo


"Prisões" 
 
Antes eu era o incêndio
Agora faço seguro contra fogo
Contra roubos

Eu mesma era furacão
Eu mesma roubava
Agora apaziguo tudo e tranco

Antes eu era as perdas
Agora sou vista pelo bairro, precavida,
Comprando cadeados sob medida
 
 

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Jorge Luis Borges





















"Junin"

Sou, mas sou também o outro, o morto,
o outro do meu sangue e do meu nome;
sou um vago senhor e sou o homem
que interceptou as lanças do deserto.
Volto a Junin, vô Borges. Tu me escutas,
sombra ou cinza final, ou desescutas
em teu sonho de bronze esta voz torra?
Talvez procures com meus olhos vãos
o Junin épico dos teus soldados,
a árvore plantada, os teus roçados,
e no confim a tribo e os despojos.
Te imagino severo, um pouco triste.
Quem me dirá como eras e quem foste?


Tradução de Heloisa Jahn.

Borges refere-se ao seu avô, o militar Francisco Borges (1835 - 1874):













Francisco Borges lutou nas guerras civis argentina, participou de campanhas contras os índios e combateu na guerra do Paraguai.
Durante a Guerra Civil de 1874, vendo que perdia uma batalha, atacou sozinho os inimigos.
Mortalmente ferido, morreu algumas horas depois.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Errnâni Sátiro, "A hora da morte"


Pavor.
Mas não da morte -  É da Hora da Morte.
É por isso que te peço, ó Morte;
Que venhas quando quiseres;
De noite ou de dia.
Mas não me deixes nunca pressentir a Chegada.
O medo é da Hora.
Não é do teu mistério, Morte,
Que o mistério da vida é maior.
O que eu temo é a Hora - o ar das pessoas na Hora da Morte.
Tu primeiro te apoderas das testemunhas,
Que aceitam e começam a ser cúmplices.
Tu desaminas e abates os que assistem
Para então desferires o golpe.
Vem, antes ou depois.
Na Hora da Morte, não.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Pedro Dantas, "Oração"


Senhor! Eu sei que tenho pecado
eu sei que sou indigno
e não mereço perdão.

Mas quero pagar por tudo
Quero sofrer por tudo
arrepender-me de tudo.

Quero ser humilhado
e sofrer no meu corpo
todas as penas eternas.

Estou por tudo e me conformo com tudo
contanto que ... Senhor! ... o telefone me chame.
Hoje e todos os sábados, esses dias sem explicação.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Carlos Drummond de Andrade













"Amar"

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
 e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa,
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Odylo Costa, filho, "A meu filho"


Recorro a ti para não separar-me
deste chão de sargaços mas de flores
em que há bichos que amaste e mais os frutos
que com tuas mãos plantavas e colhias.

Por essas mãos te peço que me ajudes
e que afastes de mim com os dentes alvos
do teu riso contido mas presente
a tentação da morte voluntária.

Não deixeis, filho meu, que a dor de amar-te
me tire o gosto do terreno barro
e a coragem dos lúcidos deveres.

Que estas árvores guardam, no céu puro,
entre rastros de estrelas, a lembrança
dos teus humanos olhos deslumbrados.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Euclides da Cunha, "Se acaso uma alma..."


Se acaso uma alma se fotografasse
De sorte que, nos mesmos negativos,
A mesma luz pusesse em traços vivos
O nosso coração e a nossa face;

E os nossos ideais, e os mais cativos
De nossos sonhos... Se a emoção que nasce
Em nós, também nas chapas se gravasse,
Mesmo em ligeiros traços fugitivos:

Amigo, tu teria com certeza
A mais completa e insólita surpresa
Notando - desse grupo bem no meio -

Que o mais belo, o mais forte, o mais ardente
Destes sujeitos é precisamente
O mais triste, o mais pálido, o mais feio.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Alejandra Pizarnik, "Encontro"


Alguém entra em silêncio e me abandona.

A solidão agora não está só.

Tu falas como a noite.

Te anuncias como a sede.



Tradução amadora minha.




"Encuentro"

Alguien entra en silencio y me abandona.

Ahora la soledad no está sola.

Tú hablas como la noche.

Te anuncias como la sed.