quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Ivo Barroso, "Ronda das minhas quatro volúpias"


A tua boca se abre como um fruto rasgado ao meio
- escarlata e purpurina -
pomo de ouro dos jardins de Hespérides
granada dos milenários pomares babilônicos
maça dos primeiros dentes paradisíacos do pecado

Os teus seios possuem a arrogância das quilhas
demandando a sombria terra dos Latófagos
esporão guerreiro dos vikings legendários
proa aprumes de Argonautas
- Cólquida -
no mar Tritão, no mar antro e sorvedouro
E ó Mitilene, ó Lesbos, ó desgraçado amor
que assim tão forte nos atém às ilhas,
teu sexo
- ó concha e nácar, ó coral e escama -
pontificando entre as mediterrâneas
os jogos de púbis e fálus

E - angra, falésia, morno recorte e ondulação
                 de montes -
o vale, ó nádegas, na erótica reentrância dos lóbulos
dividindo as róseas carnaduras - Fídias -
ó cidades antigas que as vozes do Senhor petrificaram.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Adélia Prado











"Fluência"

Eu fiz um livro, mas oh meu Deus,
não perdi a poesia.
Hoje depois da festa,
quando me levantei para fazer café,
uma densa neblina acinzentava os pastos,
as casas, as pessoas com embrulho de pão.
O fio indesmanchável da vida seguia seu curso.
Persistindo a necessidade dos relógios,
dos descongestionantes nasais.
Meu livro sobre a mesa contraponteava exato
com os pardais, os urinóis pela metade,
o antigo e intenso desejar de um verso.
O relógio bateu sem assustar os farelos sobre a mesa.
Como antes, graças a Deus.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Alphonsus de Guimaraens, "Cantem outros a clara cor virente"


Cantem outros a clara cor virente*
Do bosque em flor e a luz do dia eterno... 
Envoltos nos clarões fulvos do oriente, 
Cantem a primavera: eu canto o inverno. 


Para muitos o imoto céu clemente 
É um manto de carinho suave e terno: 
Cantam a vida, e nenhum deles sente 
Que decantando vai o próprio inferno. 

Cantem esta mansão, onde entre prantos 
Cada um espera o sepulcral punhado 
De úmido pó que há de abafar-lhe os cantos... 

Cada um de nós é a bússola sem norte. 
Sempre o presente pior do que o passado. 
Cantem outros a vida: eu canto a morte... 


* Virente -  adj. Que verdeja, verdejante, florescente, próspero.

sábado, 26 de dezembro de 2015

Lúcio Cardoso, "Morangos selvagens"


Era há muito tempo. Eu apenas sabia
que em mim havia acabado esse dom
de inventar a amizade
e sentava-me tão triste, olhando
essa estrada que não tem começo nem fim
e passa por entre nós
sugerindo carência e fragilidade.
Era há muito tempo. Mas não havia
estrada, nem havia distância e nem voz.
Achei-me de repente sem dom algum.
Foi quando as frutas cresceram nos seus galhos
e eu descobri essas ácidas pitangas
que, através do seu vermelho,
ensinaram-me de novo a continuar,
indiferente e sozinho.
Fora, o mundo me arrebatava o poder
de crucificado - no entanto,
sem dom, alguma coisa em mim
resplandecia.
Assim eu ia, mas há muito tempo.


sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Lya Luft













"Tanto"                 

                                    Para Lygia F. Telles

Nada entendo de signos:
se digo flor é flor, se digo água
é água. (Mas pode ser disfarce de um segredo)
Se não podem sentir, não torçam
a árvore-de-coral do meu silêncio:
deixem que eu represente meu papel.
Não me queiram prender como a um inseto
no alfinete da interpretação:
se não me podem amar, me esqueçam.
Sou uma mulher sozinha num palco,
e já me pesa demais todo esse ofício.
Basta que a torturada vida das palavras
deite seu fogo ou mel na folha quieta,
num texto qualquer com o meu nome embaixo.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Miguel Sanches Neto, "Teoria da amizade"


Recebi um livro ruim de um amigo bom. Li trechos e logo o  desânimo me prostrou. Não poderia elogiar o livro e não queria perder o amigo. Rapidamente, escrevi um bilhete: Obrigado pelo teu livro, que começarei a ler ainda hoje. É claro que comecei a ler. E nunca terminei. Os amigos da gente não deveriam escrever livros. Seria mais fácil para o crítico não ter amigos escritores. Os livros deveriam ser escritos apenas por nossos inimigos. Se estes publicarem um livro ruim, estarão dando motivo para o crítico extravasar sua maldade e suas frustrações. Então poderíamos provar que ele realmente não presta e, num artigo contundente, destacar nossa superioridade. Se o livro do inimigo for bom, mais fácil ainda. É uma chance de provar da humildade e elogiar a obra com gordos e sibilantes adjetivos. Nosso anjo da guarda ficaria feliz e sairíamos do episódio como uma pessoa extremamente compreensiva, sem rancores. Diriam: vejam só, ele que foi difamado por x, tendo sido o alvo de inúmeras maledicências, vejam só que nobre caráter o dele - reconheceu a grandeza de seu detrator, definiu a estatura de seu pior desafeto.
Mas não. Quem me mandou um livro péssimo foi um amigo. Um amigo de infância. Desses que já não se fazem mais depois de uma certa idade. Um amigo que desejou as mesmas mulheres que um dia desejamos. Que frequentou os mesmos bares suspeitos. Que gastou conosco, em palestras descontraídas, horas infindáveis. É este maldito amigo que escreveu o livro que está sobre nossa mesa, fitando-nos com um olhar de cachorro ferido, de criança rejeitada. A capa ridícula que só perde para o conteúdo. A impressão é de péssima qualidade. E, mesmo assim, o livro provavelmente tenha custado caro. O amigo, que acabou se perdendo em trabalhos desgastantes, é pobre e deve ter passado por dificuldades para pagar a gráfica. A mulher dele, cada vez mais neurótica, com certeza brigou feio com o idiota, É isso que você é, um idiota, perdendo tempo com estas ilusões. Assim deve ter falado a mulher, enquanto olhava para as pernas com varizes, pensando que o dinheiro despendido poderia ter sido usado para uma pequena cirurgia plástica que a livraria das horríveis veias azuis, fruto da gravidez que ela não desejara, mas que acabara aceitando devido às insistências do marido. Fui sempre uma tola.
É isso que o livro me diz. Este livro que custou tanto. Não penso apenas no dinheiro. Mas no tempo. Dez longos anos tentando escrever alguma coisa decente e o resultado é um romancinho colegial, que qualquer adolescente poderia ter escrito. A tiragem deve ter sido pequena. Ele vai deixar nas livrarias do centro. Na Ghighnone, provavelmente os vendedores colocarão na mais remota prateleira. E como o livro não traz nada escrito na lombada, vai se perder no meio de outros títulos irrelevantes e empoeirados. No Chain, ele ficará atrás do balcão do guarda-volume, numa prateleira que é mais um depósito. Depois de algum tempo, será devolvido. E por azar, o amigo vai descobrir: deixara dez exemplares e na hora de recebê-los de volta, encontra onze. Um jornalista, que recebera o livro de presente, freguês assíduo da livraria, trocara-o, junto com um volume de poesia que a editora lhe mandara, por um livro do Paulo Coelho.
Ainda bem que o amigo nunca vai descobrir que serviu de complemento para uma troca, e justo envolvendo o Paulo Coelho. Deus é mesmo perverso. Para uns escritores ruins, tudo. Para outros, nada.
Mas ele tinha o amigo que era crítico. E crítico razoavelmente respeitado. E a opinião da crítica era muito melhor do que o sucesso de vendas. Vender livro era para os carreiristas. E ele sabia-se um clérigo. Escrevia por necessidade de expressão. Não suportaria passar a vida sem deixar uma mensagem para uns poucos. Ele tinha o crítico. Na verdade, pensando bem, ele escrevera este livro única e exclusivamente para o crítico. Eram dele todas as belezas contidas nestas páginas. O romance, uma espécie de educação sentimental, retomava fatos da infância comum. O crítico era o leitor ideal. Não precisava de mais ninguém. Ele tinha o crítico. Meu Deus, estava feliz, mesmo tendo de levar para casa os onze exemplares que o gerente da livraria lhe devolvera, alegando que não havia espaço para volumes consignados. Estava mais do que feliz, a qualquer momento sairia um longo artigo do crítico sobre sua obra. Só agora se lembrara de que não havia mandado nenhuma foto para o jornal. E queria um artigo com foto e tudo. Sem nem se lembrar do fato de não ter encontrado o seu livro nas prateleiras da Ghighnone - se fosse menos tímido teria perguntado para a vendedora se os livros já tinham sido vendidos - sem nem se lembrar disso, correu até um estúdio fotográfico. Depois ficou esperando pelo centro da cidade até às cinco horas, quando o retrato ficou pronto. Colocou-o num envelope e o deixou na portaria do jornal, endereçado ao editor.
É o livro deste amigo que estou levando para doar à biblioteca pública, depois de ter tido o cuidado de arrancar a página de rosto, com a calorosa dedicatória em que falava de infância e amizade - duas palavras que doem.
Antes de entregar ao funcionário, leio aleatoriamente um parágrafo só para me certificar de que estou fazendo a coisa certa. Mas a consciência lateja. Me sinto cruel. O fato de o livro ser ruim não me livra de minha maldade inata, de minha ingratidão.
Somente quando me encontro totalmente liberto de sua presença incômoda, volto à rotina. Leio outros livros, escrevo artigos, assisto a bons filmes. E toda vez que vou à banca comprar o jornal em que tenho a coluna, faço-o com a mesma emoção de meu amigo. Coração disparado, olhos embaçados, abro avidamente o jornal para ver se foi desta vez que tratei do livro ruim. Mas não foi.
Não escreverei nada. Nem uma notícia. Quero esquecer o livro. Mas para isso teria que esquecer o amigo que, um mês e meio depois, me telefona, deixando na secretária eletrônica o convite para um jantar na casa dele. Minha secretária liga, avisando que terei uma viagem para fazer e que, assim que estiver livre, marcarei nova data.
Decorrido mais um mês, recebo um novo pacote. Abro e encontro outro exemplar. Nenhuma dedicatória. Apenas o livro com sua cara de mendigo. Dias depois, imprudente, atendo o telefone. É ele. Parece estar meio bêbado. Tímido e correto, não faria isso em outra circunstância. Ouço um programa de auditório do outro lado da linha, enquanto ele reclama que o seu casamento está uma droga. A mulher não tem interesse nenhum por literatura. Veja, não chegou a ler o primeiro capítulo de meu livro. Encabulado, tento mudar o rumo da conversa. Mas as lamentações continuam. Fala de seu filho que morreu e de como o livro o salvou de uma crise de depressão. Você sabe o que é isso, hein? Você sabe o que é perder um filho? Não tenho palavras. E ele ainda recorda os planos que tinha para o menino. Queria para ele uma infância bonita como a nossa, com amizades verdadeiras. Não consigo segurar uma tosse seca. E ele, do outro lado, insiste em nossos laços de amizade. Diz que encontrou fulano na rua, aquele que sempre traía a gente por inveja. Pergunta se eu me lembro dele. Digo que sim. E o amigo pragueja, afirmando depois, falsamente alegre: O desgraçado está rico, é um advogado de sucesso. E eu aqui passando os meus apuros. Você sabe que tive de fechar a loja? Eu só consigo resmungar algo que parece significar: que pena. Mas ele levanta a bola, É isso aí, ainda bem que tenho os amigos.
A conversa termina e eu busco na pilha de livros aquele que espera um elogio meu. Ligo o computador. A tela vazia me olha. Digito: Fulano de Tal escreveu um livro inquietante. Isso era verdade, pelo menos para mim o livro era inquietante. Eu não estava mentindo. Poderia continuar o artigo que seria apenas um resumo do livro, sem afirmar nada. Mas são estas concessões, visíveis para qualquer espírito mais arguto, que fazem com que o crítico perca a credibilidade. Apaguei a frase. No dia seguinte doei o livro para a biblioteca da escola do bairro.
Depois de uma semana, todos os dias chegava mais um volume do livro pelo correio. Eu abria o pacote, último gesto de respeito, e o colocava diretamente no lixo. O amigo tinha resolvido o problema do encalhe. Se eu era o leitor ideal, nada mais lógico do que ser o destinatário de toda a tiragem do romance. Não sei quantas dezenas de volumes recebi. Algumas vezes, tentava ler um ou outro parágrafo. Mas não era possível continuar.
Os meus artigos começaram a ficar estúpidos, perdi o brilho
das reflexões, a graça das frases que sempre compensaram minhas limitações intelectuais. Estava me destruindo. Toda vez que abria um livro para ler era como se estivesse lendo aquele que me perseguia. Logo a capa parecia idêntica. Quando consultava alguma coisa na estante, tinha a impressão de que todos os meus livros eram iguais àquele. E isso me desesperava. Tornei-me amargo com os outros autores. Achei defeitos na obra de Cony, qualquer um faria sucesso tendo atrás de si uma grande editora e toda a mídia subserviente. Vi em Rubem Fonseca o virtuosismo informativo de quem tinha tempo de sobra para vasculhar livros sem significação. Comecei a fuzilar todo jovem talento. Eles não tinham passado por nenhuma situação parecida com a minha, eu que sou filho de analfabetos, leitor de biblioteca pública, agricultor frustrado, eu que não pude contar com a ajuda de ninguém para estudar.
Então percebi que, inconscientemente, estava querendo mostrar ao amigo que sou justo, que sou severo com todos, com os grandes e com os bem sucedidos. Neste dia, escrevi um feroz artigo contra o romance que me perseguia. Chamei-o de piegas, monótono, equivocado na linguagem e na estrutura. Decretei, por fim, a morte definitiva do autor. Nunca passaria de um escrevinhador de final de semana.
Assim que mandei, sem nem revisar, o artigo para o jornal, me esqueci completamente de tudo. Passei a trabalhar com grande entusiasmo, até o dia em que o texto saiu, ilustrado com a foto que ele mandara ao editor. E ele sorria de uma maneira espontânea, confiante. Sorria como no tempo em que éramos crianças.

Publicado no Jornal "Gazeta do Povo", de Curitiba-PR, em 08/12/1997.




terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Iacyr Anderson Freitas, "À margem"


Que rosto terás
na eternidade?

Qual  teu verdadeiro nome,
a palavra  que te grava 
desde o princípio?

Que olhar doarás
ao que te espera
além do tempo 
e do espaço?

E a tua voz?
Acaso pensaste
um segundo apenas
na tua voz?

Quando cessarem todos os relógios,
quando aterra entrar de vez
pelo teu corpo, qual
o teu verdadeiro rosto?

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

domingo, 20 de dezembro de 2015

Alexei Bueno, "Glória"


Bêbado, às duas da manhã,
Parei na loja de ovos e aves.
Subi na grade e, em grande afã,
Cacarejei, de ecoar nas traves.

Os galos todos acordaram
Cheios de brio e, num só coro,
Com seu cacarejo enfrentaram
O meu, mais forte, mais sonoro.

Saltavam todas as galinhas.
Penas voavam loja afora.
Ligavam luzes nas vizinhas
Casas. Parti. Criara a aurora.


sábado, 19 de dezembro de 2015

Reinaldo Ferreira, "Café de cais"


Café de cais, 
Onde se juntam, 
Anónimos de iguais, 
Os ratos dos porões, 
Babel de todos os calões, 
Rio de fumo e de incontido cio, 
Sexuado rio 
Que busca, único mar, 
Mulheres de pernoitar, 
Unge-te a nojo, não Anfritite*, 
Fina ficção marinha, 
Mas nauseabundo 
E tutelar,
O vulto familiar 
Da Virgem Vício 
Nossa Senhora do Baixo Mundo.

* Na mitologia grega, Anfitrite é esposa de Poseidon e, portanto, deusa dos mares. A princípio, se recusou a unir-se ao deus, escondendo-se no fundo do mar, mas acabou cedendo às investidas dele, tornando-se rainha dos oceanos.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Jacob do Bandolim e Conjunto Época de Ouro, "Ingênuo", de Pixinguinha e Benedito Lacerda.

Miguel Torga, "Perfil"


Não. Não tenho limites.
Quero de tudo
Tudo.
O ramo que sacudo
Fica varejado.
Já nascido em pecado,
Todos os meus pecados são mortais.
Todos são naturais
À minha condição,
Que quando, por exceção,
os não pratico
É que me mortifico.
Alma perdida
Antes de se perder,
Sou uma fome incontida
De viver,
E o que redime a vida
É ela não caber
Em nenhuma medida.


quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Lúcio Cardoso

















"Já a noite avança ..."

Já a noite avança e a tua presença
não ilumina mais o tempo,
sinto o escuro crescer sobre o que
foram os teus passos
e a minha solidão, maior, abrir-se
como uma flor enorme.
Sinto que sou pequeno para o vazio
que está chegando,
e se agora ouço a música do mar,
é de ti que me lembro e de tudo o
que a tua presença me traz.
Bem sei que as palavras não adiantam,
mas somos pobres demais para amor tão grande;
dia virá em que esta ausência serpa definitiva,
e quem sabe, morrerá em mim o teu nome,
como morre neste instante a esperança
de sobreviver.
E se quiseres, é que não somos deuses,
outras épocas existem e tormentos
maiores.
Só o que dilacera é grande.
Seria inútil pedir que me dissesses
sofrer mais -
em cada parcela deste ar que
respiro,
sinto a tua presença como um
castigo,
e nem eu nem o mar e nem a música
conseguirá desfazer o que entre nós se
fez tão grande -
e estranho como o sonho de um exilado.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Leis estranhas no Alasca (EUA)


Alasca

-- Acordar um urso com o fim de tirar uma fotografia é proibido (Embora não seja ilegal atirar em um urso).
-- Alces não podem ser observados de aeronaves.
-- Em Anchorage: ninguém pode amarrar o animal de estimação no teto do carro. Também: É ilegal estender um fio atravessado na estrada.
-- Em Haines: Donos de bar não podem permitir que garçons servam clientes, quando eles mesmos estiverem bêbados.
-- Em Nome: é proibido andar pela rua com arco e flecha.

Copiado do site Consultor Jurídico

domingo, 13 de dezembro de 2015

Paulo Mendes Campos, "Tempo-eternidade"


O instante é tudo para mim que ausente
do segredo que os dias encadeia
me abismo na canção que pastoreia
as infinitas nuvens do presente.

Pobre de tempo fico transparente
à luz desta canção que me rodeia
como se a carne se fizesse alheia
à nossa opacidade descontente.

Nos meus olhos o tempo é uma cegueira
e a minha eternidade uma bandeira
aberta em céu azul de solidões.

Sem margens sem destino sem história
o tempo que se esvai é minha glória
e o susto de minh´alma sem razões.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Octavio Paz, "Destino de um poeta"


Palavras? Sim, de ar,
e no ar perdidas.
Deixa-me perder entre as palavras,
deixa-me ser o ar nuns lábios,
um sopro vagabundo sem contornos
que o ar desvanece.

Também, a luz em si mesma se perde.


Tradução de Luís Pignatelli.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Eucanaã Ferraz, "Cacto"


Ok. Jamais tocar teu rosto.
Aceitar que ele não seja uma
(eu direi, apesar do doce
que se derramará então

e da ridícula, antiquada, sedosa aura
que cerca tal imagem, que cega
em tal imagem, que dela se evola;
sim, eu direi agora)

aceitar que ele não seja uma: flor
(mesmo que trabalhosa,
flor de obstáculo, entre farpas,
arames, flor de cálculo).

Meus dedos, custosamente
quietos miram teu rosto
(o mais perfeito - nem belo,
nem feio - artefato): rastros,

javalis, búfalos atingidos mortalmente
em meio aos livros, às pedras,
à água que talvez gotejasse,
à musica também ela pingando

de um piano arruinado mas,
repentinamente negro, sólido
em meio aos papéis do cesto,
à brasa de uma e outra frase.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

José Paulo Paes














"A Bengala"

Contigo me faço
pastar do rebanho
de meus próprios passos.


segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Mário Faustino, "Alma que foste minha"


Alma que foste minha,
desprendida de meu corpo e de meu espírito,
leque de palma sem raízes, sem tormentas,
que gênero esta noite te distingue,
que metro te organiza, por que dogmas,
que signos te orientam - rumo a que?

- Mestre, qual é o sexo das almas?

Desmarcada e sem cordas
alma que foste minha
sem cravos e sem espinhos
que trigo milenar te mata a fome
            divina        
que pirâmide encerra tua essência
            nudíssima
que corpo te defende de ti mesma
            do espaço
que idade, quantas eras, contra o tempo
            alma anárquica
desmarcada e sem cravos
sem precisão de estar
            ou de ficar
- Que te vale Bizâncio?
            ou de mudar
ou de fazer, ou de ostentar
- Que te vale este verso?
            apoética, absurda
como chamar-te alma, de quê, quando,
para que, alma de morto, para onde?

sábado, 5 de dezembro de 2015

Lúcio Cardoso, "Tema"


Sim, o que não é sonho nesta vida,
para quem não se liberta do passado?
E que vale a vida senão o êxtase criado
do minuto em que se ouve a estranha música
de um alto olhar descendo sobre nós?
Ó, a percepção dos mundos invisíveis,
aura, vertigem das almas prisioneiras
às formas que fenecem - oásis dos videntes,
deserto onde a fronteira se desfaz?

Vem! Espalha sobre mim o teu austero fluído
e o ópio da tua nostalgia. Livra-me
das brancas sepulturas das cidades
onde os homens arrastam sinistras ambições.

Quando o relógio fixar a hora extrema,
abre as portas que vedam teus domínios,
rompe o selo do castigo e deixa-me partir
para o país dos jardins alucinados!

Cinza dos meus dias - ó longa espera
à margem destas ânsias sufocadas,
desejo maior do que a minha vida!
Não quero do sol que morre sobre as pedras
criar a minha soma de infinito.
Quero bater-me com os olhos para o alto,
sofrer além da terra exausta da esperança,
frente ao mistério que é dos fortes,
sentindo que a poesia, voz do sonho,
é a memória do outro mundo em que fui rei.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Leis estranhas no Alabama (EUA)


-- É ilegal se mutilar para escapar de um dever.
-- É ilegal se esfaquear com o fim de fazer alguém sentir pena.
-- É proibido lançar melecas ao vento.
-- No divórcio, mulheres têm o direito de reter todas as propriedades que tinham antes do casamento.
-- Lutas de ursos são proibidas.
-- É ilegal personificar um sacerdote.
-- É proibido jogar dominós aos domingos.
-- É ilegal usar bigodes falsos, que provoquem risadas na igreja.
-- Colocar sal na via férrea pode resultar em pena de morte.
-- Todos os carros devem ser equipados com limpadores de para-brisa.
-- É proibido usar máscaras em público.
-- Dirigir com olhos vendados é ilegal.
-- Em Anniston: É proibido usar blue jeans na Noble Street.
-- Em Auburn: Homem que deflorar uma virgem, não importa a idade ou estado conjugal, pode ser condenado a até cinco anos de prisão. Também: Ninguém pode cuspir no chão da igreja.

Copiado do site Consultor Jurídico


quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Donizete Galvão, "Urubu"



alça voo o urubu
                         paira


acima do improvável habitat
dos prédios de escritórios
                    das oficinas mecânicas e madeireiras
                    projeta sua sombra sobre os telhados

aguarda-se sua exibição
como uma cerimônia
a mímica de um oráculo

                    mestria nas parábolas
arrojo nos mergulhos
                    solene indiferença
ao fluxo da vida lá embaixo


alça voo urubu
abre uma fenda
na couraça da cidade

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Mário Faustino, "Legenda"


No princípio
Houve treva bastante para o espírito
Mover-se livremente à flor do sol
Oculto em pleno dia.
No princípio
Houve silêncio até para escutar-se
O germinar atroz de uma desgraça
Maquinada no horror do meio-dia.
E havia, no princípio,
Tão vegetal quietude, tão severa
Que se estendia à queda de uma lágrima
Das frondes dos heróis de cada dia.

Havia então mais sombra em nossa via,
Menos fragor na farsa da agonia,
Mais êxtase no mito da alegria.

Agora o bandoleiro brada e atira
Jorros de luz na fuga do meu dia -

E mudo sou para cantar-te, amigo .
O reino, a lenda, a glória desse dia.


domingo, 29 de novembro de 2015

Paulo Henriques Britto, "Véspera"


No trivial do sanduíche a morte aguarda.
Na esquiva escuridão da geladeira
dorme a sono solto, imersa em mostarda.

A hora é lerda. A casa sonha. A noite inteira
algo cricrila sem parar – insetos?
O abacaxi impera na fruteira,

recende esplêndido, desperdiçando espetos.
A lua bate o ponto e vai-se embora.
Mesmo os ladrilhos ficam todos pretos.

A geladeira treme. Mas ainda não é hora.
Se houvesse um gato, ele seria pardo.
A morte ainda demora. O dia tarda.


sábado, 28 de novembro de 2015

Ivan Junqueira













"Herdeiros"

Não quis mais vê-los. A besta
da demência deles fez
o que faz uma centelha
na palha seca dos nervos:

retorcidas labaredas
também tetos e paredes,
os dentes rilham - são presas,
e o convívio sabe a esterco.

Irmão contra irmão, celeuma
entre herdeiros. De quê ?
De uns trapos, um camafeu
cuja efígie não se vê,

púcaros, cálices, trechos
de um enredo sem desfecho,
polainas de um cinza espesso,
rendas, anáguas, corpetes,

o brilho de um alfinete
numa gravata obsoleta,
frascos de incenso, navetas
de porcelana chinesa.

Em suma, um fátuo cortejo
de ninharias enfermas,
sem serventia ou apreço,
mas pelas quais se peleja

como em busca de amuletos,
de uma relíquia que seja
capaz de lhes dar o ensejo
de se unirem em seu gueto.

Eis que os ouço e logo vejo
o que me desnuda o espelho:
esquálidas silhuetas
numa cena de opereta.

Nela se entoa um dueto
sobre o morto que não deixa
senão as flores do enterro
e os bens que em vida não teve.


quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Konstantinos Kaváfis, "Coisas pintadas"


Por meu trabalho zelo, e a ele quero bem.
Mas a lentidão da composição hoje me desanima.
O dia influiu sobre mim. Seu aspecto
torna-se continuamente sombrio. Sem cessar venta e chove.
Mais desejo olhar que falar.
Nesta pintura vejo agora
um belo rapaz que, perto da fonte,
se estendeu, depois de ter-se cansado talvez de correr.
Que belo menino! Que divino meio-dia
já o arrebatou para adormecê-lo! -
Fico a olhar assim por muito tempo.
E, dentro da arte novamente, descanso de sua labuta.


quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Lúcio Cardoso











"Revolta"

Ainda agora é de ti que me lembro,
é a tua voz que sinto no escuro do sangue,
esperança que se dilui no pó das madrugadas...
Tantas vezes outrora ante a porta fechada,
conheci o martírio das horas vazias,
paisagens recuadas do meu desespero...
Quem ousaria fixar o astro que me guia,
neste grande céu do meu destino?
(Oh, luz da manhã que se levanta longe,
nos brancos caminhos da hora renascida,
repouso, inacessível, imaterial repouso!)
Sou equação de um mundo povoado de erros,
sou berço em que fermentam escuros limos
de almas há cem anos votadas ao silêncio.
Junto a mim flutua a fria maldição
e lento se reanima o ódio - invisível chama.
Mas ódio e maldição, tudo que ruge
ao longo destas horas de tormenta,
eu atiro a teus pés, arrojo à tua Face,
para que me faças a presa do teu castigo
ou da tua Graça.


segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Baquílides, "A Paz"


Grandes coisas a paz concede aos homens
             riqueza e cantos como flores,
                      de expressões de mel.

A paz sobre os altares trabalhados,
queima no louro fogo em honra aos deuses
              coxas de bois e de carneiros
                       de longos pelos,
              e leva os jovens aos ginásios,
                 às flautas e aos banquetes.
              No férreo punho dos escudos
a aranha cor de fogo estende a teia,
e a lança aguda e a espada de dois fios
                   submete-as a ferrugem.
As trombetas de bronze já não soam;
já não foge das pálpebras o sono
                   - tão doce como o mel -
que de manhã conforta o coração.

Pela cidade espalham-se os festins amáveis:
                     e brilham como chamas
                     as canções de amor.

domingo, 22 de novembro de 2015

Carlos Drummond de Andrade














"Declaração em juízo"

Peço desculpas de ser
o sobrevivente.
não por longo tempo, é claro,
tranquilizem-se.
mas devo confessar, reconhecer
que sou sobrevivente.
se é triste/cômico
ficar sentado na plateia
quando o espetáculo acabou
e fecha-se o teatro,
mais triste/grotesco é permanecer no palco,
ator único, sem papel,
quando o público já virou as costas
e somente baratas
circulam no farelo.
reparem: não tenho culpa.
não fiz nada para ser
sobrevivente.
não roguei aos altos poderes
que me conservassem tanto tempo.
não matei nenhum dos companheiros.
se não saí violentamente,
se me deixei ficar ficar ficar,
foi sem segunda intenção.
largaram-me aqui, eis tudo,
e lá se foram todos, um a um,
sem prevenir, sem me acenar,
sem dizer adeus, todos se foram.
(houve os que requintaram no silêncio).
não me queixo. nem os censuro.
decerto não houve propósito
de me deixar entregue a mim mesmo,
perplexo,
desentranhado.
não cuidaram que um sobraria.
foi isso. tornei, tornaram-me
sobre-vivente.
se se admiram de eu estar vivo,
esclareço: estou sobrevivo.
viver, propriamente, não vivi
senão em projeto. adiamento.
calendário do ano próximo.
jamais percebi estar vivendo
quando em volta viviam quantos! quanto.
alguma vez os invejei. outras, sentia
pena de tanta vida que se exauria no viver
enquanto o não viver, o sobreviver
durava, perdurando.
e me punha a um canto, à espera,
contraditória e simplesmente,
de chegar a hora de também
viver.
não chegou. digo que não. tudo foram ensaios,
testes, ilustrações. a verdadeira vida
sorria longe, indecifrável.
desisti. recolhi-me
cada vez mais, concha, à concha. agora
sou sobrevivente.
sobrevivente incomoda
mais que fantasma. sei a mim mesmo
incomodo-me. o reflexo é uma prova feroz.
por mais que me esconda, projeto-me,
devolvo-me, provoco-me.
não adianta ameaçar-me. volto sempre,
todas as manhãs me volto, viravolto
com exatidão de carteiro que distribui más notícias.
o dia todo é dia
de verificar o meu fenômeno.
estou onde não estão
minhas raízes, meu caminho
onde sobrei,
insistente, reiterado, aflitivo
sobrevivente
da vida que ainda
não vivi, juro por deus e o diabo, não vivi.
tudo confessado, que pena
me será aplicada, ou perdão?
desconfio nada pode ser feito
a meu favor ou contra.
nem há técnica
de fazer, desfazer
o infeito infazível.
se sou sobrevivente, sou sobrevivente.
cumpre reconhecer-me esta qualidade
que finalmente o é. sou o único, entendem?
de um grupo muito antigo
de que não há memória nas calçadas
e nos vídeos.
único a permanecer, a dormir,
a jantar, a urinar,
a tropeçar, até mesmo a sorrir
em rápidas ocasiões, mas garanto que sorrio,
como neste momento estou sorrindo
de ser − delícia? − sobrevivente.
é esperar apenas, está bem?
que passe o tempo de sobrevivência
e tudo se resolve sem escândalo
ante a justiça indiferente.
acabo de notar, e sem surpresa:
não me ouvem no sentido de entender,
nem importa que um sobrevivente
venha contar seu caso, defender-se
ou acusar-se, é tudo a mesma
nenhuma coisa, e branca.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Miguel Torga, "Súplica"


Não digas, nunca, musa,
Por quantos versos reparti o pranto
Que chorei neste mundo.
Não contes
Os mil segredos que te confiei
nas horas do abandono.
Não reveles à vida
O amor que lhe tive
E de que foste a  única confidente.
Perdição consciente,
Que mais ninguém me veja
Nesta triste nudez de sonhador.
Que o teu silêncio seja
O meu pudor.


quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Lúcio Cardoso, "Rosa vermelha"


No teu esplêndido jazigo de cristal, agonizas, ó rosa
adormecida na penumbra azul da velha sala.
Como das conchas cresce a surda música das vagas,
do teu seio se exala o esplendor vermelho das tardes
e o perfume que tanto incentivou a fome alucinada das abelhas.
Mas, agora, na tua rósea carnação só recolhes a sombra
roxa, azul, lilás, das violetas que o teu espectro rodeiam.
Em breve descerás ao silêncio - e astro tardio,
cintilarás de encontro ao veludo escuro da cortina,
como a mulher que aos olhos do tímido amante
ostenta na cumplicidade da penumbra
a majestade triste da sua carne extinta.


terça-feira, 17 de novembro de 2015

Paulo George, "Quando a gente escreve..."


Quando a gente escreve
não importa se estar triste ou alegre
não importa ser eterno ou breve
não importa trabalhar sozinho ou muito
ou fazer greve de tudo
quando agente escreve
o que importa
é a porta que se abre de leve.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Ana Cristina Cesar, "Marfim"


A moça desceu os degraus com o robe
monografado no peito: L. M. sobre o coração.
Vamos iniciar outra Correspondência, ela
propôs. Você já amou alguém verdadeiramente?
Os limites do romance realista. Os caminhos do
conhecer. A imitação da rosa. As aparências
desenganam. Estou desenganada. Não reconheço
você, que é tão quieta, nessa história. Liga
amanhã outra vez sem falta. Não posso
interromper o trabalho agora. Gente falando por
todos os lados. Palavra que não mexe mais no
barril de pólvora plantado sobre a torre de
marfim.


sábado, 14 de novembro de 2015

Alexei Bueno, "Moto perpetuo"


            Todo poema
É o último do mundo.
A tentativa extrema,
O crucial segundo.

            Por fim, escrito,
Pétreo, Coagulado,
As larvas do não dito
Postam-se a cada lado.

            E tudo é falta.
A fonte exige a bilha
Sem fundo, e eis que nos assalta
A horrenda maravilha.

Mireille Mathieu, "La Marseillaise"

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Armando Freitas Filho, "Ravel"


Todo telefone é terrível - negro 
guerrilheiro, à escuta na sala 
disfarçado ao lado do sofá 
à espera, no gancho 
sempre na véspera 
com o grampo da granada 
já nos dentes. 
A única saída é ocupá-lo 
para que não estoure 
(não posso te agarrar daqui 
nem pelos fios dos cabelos 
pare antes que toque 
e o infinito acabe). 
Todo terrível é telefone - negro 
à escuta 
guerrilheiro à espera 
ao lado do sofá 
disfarçado na sala 
na véspera da granada 
com o grampo nos dentes fora do gancho 
ocupando a única saída 
para que não estoure 
(não posso nem pelos cabelos 
antes que acabe e toque 
o infinito, te agarrar, nos fios, pare 
daí). 


quinta-feira, 12 de novembro de 2015

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Jorge Luis Borges










"A cifra"

A amizade silenciosa da lua
(citando mal Virgílio) te acompanha
desde aquela dispersa hoje no tempo
noite ou entardecer em que teus vagos
olhos a decifraram para sempre
em um jardim ou um pátio que são pó.
Para sempre? Eu sei que alguém, um dia,
irá dizer-te verdadeiramente:
"Não voltarás a ver a clara lua.
Já esgotaste a inalterável
soma de vezes que te dá o destino.
Inútil abrir todas as janelas
do mundo. É tarde. Não a encontrarás".
Vivemos descobrindo e esquecendo
esse suave hábito da noite.
Olha-a bem. Quem sabe seja a última.

 Tradução de Josely Vianna Baptista, 


terça-feira, 10 de novembro de 2015

Mário Faustino, "Não quero amar o braço descarnado"


Não quero amar o braço descarnado
Que se oculta em meu braço, nem o peito
Silente que se instala no meu lado,
Onde pulsa de horror um ser desfeito
Na presente visão de seu passado
Em futuro sem tempo contrafeito,
em tempo sem compasso transmudado.
O morto que em mim jaz aqui rejeito.
Quero entregar-me ao vivo que hoje sua
De medo de perder-me em pleno leito
Rubro de vida e de morte em que me deito
À luz de ardente e grave e cheia lua.
Ao que, se a morte chama de longe: Mário!,
Me abraça estremecendo em meu sudário.


domingo, 8 de novembro de 2015

Alexei Bueno, "A última visão"


É a hora de dormir. Quão breve chega.
Tudo subitamente se amontoa...
Tejo, Mekong, Mondego, a musa grega,
O Rossio, os bordéis, Ceuta, Lisboa.

Naufrágios. Jogo. Oceano. A vista cega.
Bárbara. Dinamene. Uma coroa
Na areia. O mar. A praia que se entrega.
Os sinos de Sant'Ana. A praça em Goa.

Os versos. Prensas. Autos. Céus. Semblantes
De pedra. Os pais. Arruaças. Cães. Cadeias.
A espada sob o sol. Seios de amantes.

O Olimpo. O Letes. Naíades. Sereias.
Tudo passou em menos de uma hora.
Só Deus sabe o que principia agora.


sábado, 7 de novembro de 2015

Ivan Junqueira, "Limbo"


Ali está. Alheio às minhas mãos,
informe e pequenino, tão
indeciso, iluminado apenas
de sua pouca e solitária luz.
Dorme na sombra que o circunda,
Como no fundo de um casulo. Ignora
ainda o que o povoa, sequer
sabe que existe. Ali perdura
à espera do ritmo, da música.
Estrelas, insignias, leves partituras.
(Que ouvidos as escutam?)
Está ali. Imóvel e silencioso,
a uma passo da sincope e do gozo.
Ali está. Heráldico emblema
- o signo incógnito do poema.


quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Felipe D'Oliveira, "O epitáfio que não foi gravado"



Todos sentiram quando a morte entrou
com um frêmito apressado de retardatária.

A que tinha de morrer, - a que a esperava, -
fechou os olhos
fatigados de assistirem ao mal-entendido da vida.

Os que a choravam sabiam-na sem pecado,
consoladora dos aflitos,
boca de perdão e de indulgência,
corpo sem desejo,
voz sem amargor.

A que tinha de morrer fechou os olhos fatigados,
mas tranquilos...
Porque os que a choravam nunca saberiam
o rancor sem perdão de sua boca,
o desejo saciado de seu corpo,
o amargor de sua voz,
a sua angústia de arrastar até o fim a alma postiça que

[lhe fizeram,
o seu cansaço imenso de abafar, secretos, na carne ansiosa,
a perfeição e o orgulho de pecar.

A que tinha de morrer fechou os olhos para sempre
e os que a choravam
nunca souberam de alguém que foi de todos junto ao leito

[à hora do exausto coração parar
o mais distante,
o mais imóvel,
o que não soluçou
que não pode erguer as pálpebras pesadas,
o que sentiu chamar no sangue o desespero de sobreviver,
o que estrangulou na garganta o grito dilacerado do solitário,
o que depois, sobre a serenidade da morte purificadora,
a redenção do silêncio,
como uma pedra votiva do sepulcro.


quarta-feira, 4 de novembro de 2015

David Mourão-Ferreira, "Junho"


A esta
mesma hora
em cada
praia

um piano soluça
de alegria

Tarde
após tarde
cada vez
mais
tarde

nas suas teclas
brancas
morre
o dia.


segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Paulo Fatal, "Romântico jantar"


precisamos fazer logo alguma coisa.

pelo menos providenciar
mais plástico e pano para cobrí-los.

e então jantaremos
            somente os dois

à luz das velas acesas
em torno dos corpos
crivados de balas.


domingo, 1 de novembro de 2015

Mauro Luiz Klaufke, "O milho"


O milho não se ouvia.

Ele estava escondido
no corpo do lavrador.
Nem ele mesmo sabia
de que lutas o milho vinha
trazer sua música híbrida.

O milho não se ouvia.

Era incerto que nascesse
e fosse a palha
da casa
e fosse o sol
da mesa.

O milho não se ouvia.

O que se ouvia era a fome
dos camponeses gritando
em pratos vazios.


sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Luisa Deane, "A última voz"


Quando eu morrer
Recolhe por favor os meus sonhos espalhados pelos cantos
E reconstrói meu corpo com infinita paciência.
Junta
Amassa
Modela sem ânsia
Essa massa de lenda em rubra tinta
E o meu oásis de flor
Entre as ruínas.
Faz-me então dessa maneira nova
Faz-me forte! Faz-me eterna!
Dessa matéria etérea dos sonhos e das rainhas.
Então, ama-me!
Ama-me sem pressa
                      Dor
                      Faca
                      Espinho
À rósea flor das cicatrizes.


quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Octavio Paz, XIIº poema dos "Trabalhos do poeta"


Depois de ter cortado todos os braços que se estendiam para mim; depois de ter entaipado todas as janelas e todas as portas; depois de ter inundado os fossos com água envenenada; depois de ter edificado minha casa no rochedo dum Não inacessível aos afagos e ao medo; depois de ter cortado a língua e logo a devorar; depois de ter lançado punhados de silêncio e monossílabos de desprezo a meus amores; depois de ter esquecido meu nome e o nome dos meus amores; depois de me ter julgado e condenado a perpétua espera e a solidão perpétua, ouvi contra as pedras de meu calabouço de silogismos a investida húmida, terna, insistente, da primavera.

Tradução de Luís Pignatelli


terça-feira, 27 de outubro de 2015

Alexei Bueno














"Crença"

Quero os deuses todos,
Menos o deus único.
Sejam persas, godos,
Ou um celta, um púnico.

Que me envolvam de arte
Com faces, com signos,
Shiva, Exu, Melkart,
Zeus, todos são dignos

De encantar-me as íris,
Mitra, Baal, Belenos,
Thor, Apolo, Osíris,
Sempre mais, não menos.

Só não me venha Aquele
Que é o que é, o que há.
Loucos sabem dele.
Ele lá, nós cá.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Rubens Jardim, "Metamorfose"


Morto e reciclado
O poema está no lixo

Em certos coloridos
Conquistou um lugar

Tornou-se energia

E junto dos ratos

Na réstia de sol

Resiste
Em silêncio

sábado, 24 de outubro de 2015

Lúcio Cardoso, 1º dos "Poemas do Colégio Interno"


Nunca eu soubera o segredo da alegria alheia.
Ouvia os risos que enchiam o pátio de recreio
e sofria dessa dor sem nome de sentir a vida
muito mais cedo do que os outros sentem.

O sol refulgia no dorso branco dos muros
e trazia o desejo como a morte aos caminhantes.
Mas que estranha maldição tinha tombado nos meus ombros
para que só eu sentisse o frio das grandes árvores solitárias?

É certo que lutava para compreender o menino triste,
insensível à agitação em torno.
Sabia que ele tinha medo do ruído que ouvia,
mas também tinha medo do silêncio que devora.

E em breve, vendo o tempo crescer como a noite das águas,
reconheci a meninice que fugia
e senti mais funda a dor de compreender
o terrível e frágil segredo das horas.

Quis deter o menino que morria,
quis falar alguma coisa ainda não dita,
uma palavra, um soluço,
um riso que era como a sombra de um outro ser,
vivendo no meu sangue.
Mas era muito tarde
e eu sentia os anos implacáveis que chegavam.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Hilda Fogaça, "Da minha janela"


São duas figuras mágicas
São duas figuras cênicas
São duas figuras
Se amando
Se odiando
Se matando
Ou são apenas
só duas roupas
comuns dependuradas?

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Alexei Bueno, "Inventário"


Dois dedais, uma mecha de cabelos,
Uma oração para os desesperados,
A metade de uns óculos, três dados,
Uma carta saqueada dos seus selos,

Um pincel calvo, a haste sem os pelos,
Alguns retratos turvos e traçados,
Uma ponte com os dentes arrancados,
Três breviários sem crenças para lê-los,

Algumas fotos tênues de uma loira,
Notas, chaves, tostões, meia tesoura,
Dez apólices virgens de reembolsos,

Um botão, a numeração de um túmulo,
Um bloco de endereços, e eis o acúmulo
Do que o sonho tinha aos morrer nos bolsos.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Brasigóis Felício, "Espelho vomitado"


Essa é a nossa densa verdade:
         o dia tem sido
         só de espelhos
de nossos vômitos e medos.

Este é o nosso denso degredo:
         as vidas, nos humanos
         que enxergamos,
         tem sido tecidas
         só de exílios e ossos.

É esta a tragédia cotidiana
que nos sufoca:
         a de só termos ouvidos
         para ouvir nossos gritos.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

domingo, 18 de outubro de 2015

Adriano Espínola, "LIXO LIXO LIXO LIXO"


- Sobras que mãos humanas um dia tocaram e largaram;
- Objetos que roçaram a nossa pele,
            lamberam a nossa língua
            cheiraram o nosso sexo
            e depois quedaram-se tristes;

- As catadoras de lixo com a pureza de seus dedos famintos
  e seus grandes sacos cinzentos de mágoa,

           - Salve!
 (Ó universos paralelos curvando suas
espinhas
                 sobre
                 restos amontoados da realidade.)

sábado, 17 de outubro de 2015

Vinícius de Moraes













"Vida e poesia"

A lua projetava o seu perfil azul
Sobre os velhos arabescos das flores calmas
A pequena varanda era como o ninho futuro
E as ramadas escorriam gotas que não havia.
Na rua ignorada anjos brincavam de roda...
— Ninguém sabia, mas nós estávamos ali.
Só os perfumes teciam a renda da tristeza
Porque as corolas eram alegres como frutos
E uma inocente pintura brotava do desenho das cores
Eu me pus a sonhar o poema da hora.
E, talvez ao olhar meu rosto exasperado
Pela ânsia de te ter tão vagamente amiga
Talvez ao pressentir na carne misteriosa
A germinação estranha do meu indizível apelo
Ouvi bruscamente a claridade do teu riso
Num gorjeio de gorgulhos de água enluarada.
E ele era tão belo, tão mais belo do que a noite
Tão mais doce que o mel dourado dos teus olhos
Que ao vê-lo trilar sobre os teus dentes como um címbalo
E se escorrer sobre os teus lábios como um suco
E marulhar entre os teus seios como uma onda
Eu chorei docemente na concha de minhas mãos vazias
De que me tivesses possuído antes do amor.