sexta-feira, 31 de julho de 2009

Rodolfo Amoedo, "Marabá"



Marabá, que em tupi-guarani significa algo como "misturada", é o nome que os indígenas da região do Rio de Janeiro davam às crianças mestiças, nascidas de mãe índia e  pai francês, durante o século XVI.
Elas eram discriminadas pelos outros membros na tribo, devido aos seus traços delicados, à cor dos olhos e da pele.

Edwin Morgan



"O Divisor"
Continuo pensando em você - o que é ridículo.
Estes anos entre nós como um mar.
E a dignidade que veio com o tempo
impediria meu lápis sobre o papel.
O som estava ligado; você pediu pelos Stones;
conseguiu, conseguiu café fresco, conversa.
As cortinas cerradas guardam uma noite selvagem.
Continuo pensando nos seus olhos, suas mãos.
Não há razão para isto, nenhuma.
Você diria que não posso ser o que não sou,
mesmo que não possa ser o que sou.
Onde isso nos leva? O que podemos fazer?
O silêncio após Jagger foi como uma capa
que eu teria jogado sobre você - havia apenas
o vento, e o relógio batia enquanto você bebia,
agarrando a caneca verde entre as mãos.
Não olhe para cima assim de repente!
Como é duro não olhar você.
Chegamos ao ponto de não falar
e não se preocupar, e aquilo
foi quase feliz. Então, mais tarde,
quando você deitou sobre o cotovelo no carpete
não senti nada além de uma punhalada
de dor me dizendo o que era,
e não posso dizer para você, nem uma palavra.


Tradução de Virna Teixeira

Guiomar Novaes e Nelson Freire, "Dança dos Espíritos Abençoados, Gluck-Sgambati"





É uma melodia da ópera "Orfeu e Eurídice", de Christoph Gluck, transcrita para piano por Giovanni Sgambati.

Paulo Leminski



"Um homem com uma dor"

um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante

carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisas que os valha
ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra

Gravura em Metal (água-forte), de Evandro Carlos Jardim, "Árvore"

Mário Quintana, "De gramática e de Linguagem"

E havia uma gramática que dizia assim:
“Substantivo (concreto) é tudo quanto indica
Pessoa, animal ou cousa: João, sabiá, caneta”.
Eu gosto é das cousas, As cousas, sim!…
As pessoas atrapalham. Estão em toda parte. Multiplicam-se
                                                                                        [em excesso.

As cousas são quietas. Bastam-se. Não se metem com ninguém.
Uma pedra. Um armário. Um ovo. (Ovo, nem sempre,
Ovo pode estar choco: é inquietante…)
As cousas vivem metidas com as suas cousas.
E não exigem nada.
Apenas que não as tirem do lugar onde estão.
E João pode neste mesmo instante vir bater à nossa porta.
Para quê? não importa: João vem!
E há de estar triste ou alegre, reticente ou falastrão,
Amigo ou adverso… João só será definitivo
Quando esticar a canela. Morre, João…
Mas o bom, mesmo, são os adjetivos,
Os puros adjetivos isentos de qualquer objeto.
Verde. Macio. Áspero. Rente. Escuro. Luminoso.
Sonoro. Lento. Eu sonho
Com uma linguagem composta unicamente de adjetivos
Como decerto é a linguagem das plantas e dos animais.
Ainda mais:
Eu sonho com um poema
Cujas palavras sumarentas escorram
Como a polpa de um fruto maduro em tua boca,
Um poema que te mate de amor
Antes mesmo que tu saibas o misterioso sentido:
Basta provares o seu gosto…

Ruy Belo, "Contigo ..."

Contigo aprendi coisas tão simples como
a forma de convívio com o meu cabelo ralo
e a diversa cor que há nos olhos das pessoas
Só tu me acompanhastes súbitos momentos
quando tudo ruía ao meu redor
e me sentia só e no cabo do mundo
Contigo fui cruel no dia a dia
mais que mulher tu és já a minha única viúva
Não posso dar-te mais do que te dou
este molhado olhar de homem que morre
e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente"

Antonio Cicero, "Guardar"




Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que de um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

Guignard, "Rainha do Congo"

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), "Tabacaria"

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém
                                                                           [sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente
                                                                               [por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras ,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos
                                                             [e dos seres nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que
                                                      [não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou
                                                                  [menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
                                                               [tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades
                                                                 [do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao
                                               [pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com
                                                                      [que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de
                                                              [folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem
                                                       [amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer
                                                                    [nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem
                                                                   [cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti,
                                                                        [e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo
                                                   [de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério
                                                                        [da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar
                                                                         [mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das
                                                                                  [calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.

Mulher, Foto de José de Abreu

Olavo Bilac, "No meio do caminho"

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje segues de novo...Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

Sylvio Pinto, "Praia do Leblon"

Carlos Pena Filho, "A Solidão e sua Porta"

Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar,
(nem o torpor do sono que se espalha).

Quando pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.

Mário Faustino, "Balada"

(em memória do poeta suicida)

Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmos sangrento e a alma pura.
Porém, não se dobrou perante o facto
Da vitória do caos sobre a vontade
Augusta de ordenar a criatura
Ao menos: luz ao sol da tempestade.
Gladiador defunto mas intacto
(Tanta violência, mas tanta ternura).

Jogou-se contra um mar de sofrimentos
Não para pôr-lhes fim, Hamlet, e sim
Para afirmar-se além de seus tormentos
De monstros cegos contra um só delfim,
Frágil porém vidente, morto ao som
De vagas de verdade e de loucura.
Bateu-se delicado e fino, com
Tanta violência , mas tanta ternura!

Cruel foi teu triunfo, torpe mar
Celebrara-te tanto, te adorava
Do fundo atroz à superfície, altar
De seus deuses solares - tanto amava
Teu dorso cavalgado de tortura!
Com que fervor enfim te penetrou
No mergulho fatal com que mostrou
Tanta violência, mas tanta ternura!

Envoi

Senhor, que perdão tem o meu amigo
Por tão clara aventura, mas tão dura?
Não está mais comigo. Nem com Tigo:
Tanta violência. Mas tanta ternura.

Cecília Meireles



"Canção"

No desequilíbrio dos mares,
as proas giram sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que certamente tu vinhas.

Eu te esperei todos os séculos
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto

Quando as ondas te carregaram
meu olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo quanto existe alheias.

Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
dentro destas águas sem fim.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Heitor dos Prazeres, "Crianças"

Melêagro de Gádara (140?-60 a. C.), Antologia Palatina

Leva-lhe esta mensagem, Dorcás; mas atenção, repete-lhe
tudo, Dorcás, duas ou três vezes. Corre
não te atrases, voa. Um instante, um instante, Dorcás, pára.
Por que te apressas sem antes saber tudo ?
Acrescenta ao que te disse - ou melhor (que tolice minha!),
não lhe digas nada - mas não - diz-lhe tudo.
Não deixes de dizer-lhe. Apesar de mandar-te, Dorcás,
vou contigo eu mesmo, vê, e na tua frente.


Tradução de José Paulo Paes

Tarsila, "Santa Irapitinga do Segredo"

Hilda Hilst



"E por que haverias..."

E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

Pedro Alexandrino, "Natureza Morta"

Thomas McCarthy, "O Jardim da Dor"

BURACO, NEVE

É uma imagem de perda irreversível,
Este buraco na campa de meu pai que precisa
Continuamente de ser cheio. Agora, todos os meses, o meu
Tio vem para repor a terra com umas pás tiradas
Ao monte que sobrou. Olhos rasos de água,
Compensa o abater do corpo do irmão.
Chego na minha motocicleta para ajudar
Mas ele não partilha o peso do desgosto.

Há seis meses que o meu pai morreu
E tem que suportar a neve funda;
Toda a noite caiu, silenciosa como o tempo,
Alisando e assemelhando tudo. Visitei
A campa gelada pelo Inverno, esperando ver
Um rasto de pegadas, um milagre da neve.


Tradução de Laureano Silveira
Copiado do site http://poesiailimitada.blogspot.com


quarta-feira, 29 de julho de 2009

Platão, "Dou-te esta maçã ..."

Dou-te esta maçã, pedindo que a recebas.
E se aceitares, também, o meu amor,
dá-me em troca tua virgindade.
Se fores contrária ao meu desejo,
aceita-a da mesma forma,
mas pensa em como é efêmera a beleza.

Desconheço o tradutor

Murilo Mendes, "Reflexão n°1"

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
É a circulação e o movimento infinito.

Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.

Xilogravura de Renina Katz, "Parque"

Carlos Drummond de Andrade, "Canto de Sombra"

O canto de sombra e umidade no quintal.
Do muro de pedra escorre o fio d’água,
manso, no verde limoso, eternamente.
Uma gota e outra gota, no silêncio
onde só as formigas trabalham
e dorme um gato e dorme o futuro das coisas
que doerão em mim, desprevenido.
Crescem, rasteiras, as plantas sem pretensão
de utilidade ou beleza.
Tudo simples. Anônimo.
O sol é um ouro breve. A paz existe
na lata abandonada de conserva
e no mundo.

Portinari, Desenho

Bertolt Brecht, "Aos que vierem depois de nós"

                        I

Realmente, vivemos tempos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes,
em que é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranqüilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.

                        II

Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

                        III

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.


Tradução de Manuel Bandeira (?)


Luís Miguel Nava



"Através da Nudez"

Este garoto é fácil compará-lo a um campo de relâmpagos
encarcerando um touro. Através da nudez vêem-se os
astros.
É onde o poema interioriza
a sua própria hipérbole, a paisagem.

Movem-se os tigres como câmaras na areia, prontos eles
também a deflagrarem. A manhã
espanca a praia, é impossível descrevê-la sem falar
dos fios deste poema
que a cosem com a paisagem.

Mario Zanini, "Mulher"

Orides Fontela, "Fala"

Falo de agrestes
pássaros                         de sóis
     que não se apagam
     de inamovíveis
     pedras

     de sangue
     vivo             de estrelas
     que não cessam.

     Falo do que impede
     o sono.

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)



"Cruzou por mim ..."

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão
                                                                         [que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe
                                                                      [tudo quanto tinha
(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde
                                                                      [trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
E' estar ao lado da escala social,
E' não ser adaptável às normas da vida,
'As normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão
                                                                                          [para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se ha uma razão exterior a ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
E' ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
E' ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e
                                                                      [isso é que é ser pedinte.

Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lagrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco
áquele pobre que nao era pobre
que tinha olhos tristes por profissão

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!

Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!

Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

Xilogravura de Oswaldo Goeldi, "Por do Sol"

Mario Quintana, "Eu Ouço Música"

Eu ouço música como quem apanha chuva:
resignado
e triste
de saber que existe um mundo
do Outro Mundo...

Eu ouço música como quem está morto
e sente

um profundo desconforto
de me verem ainda neste mundo de cá...

Perdoai,
maestros,
meu estranho ar!

Eu ouço música como um anjo doente
que não pode voar.

António Gedeão



"Poema do Alegre Desespero"

Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

Compreende-se.

E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três
                                                                             [impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado
                                                                       [e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles,
                                                                   [e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores
                                                                   [de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam
                                                                   [o Épiro e perdiam o Lácio,

e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio,
e os poemas de António Gedeão.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?

Foto de Thomas Hoepker, "9/11 Williamsburg"

Jorge Luiz Borges



"1964"

                             I

Já não é mágico o mundo. Te deixaram.
Já não partilharás a lua clara
Nem os lentos jardins. Já não há uma
Lua que não seja espelho do passado,
Cristal de solidão, sol de agonias.
Adeus às mútuas mãos e às têmporas
Que o amor aproximava. Hoje, só tens
A memória fiel e os dias desertos.
Ninguém perde (repetes inutilmente)
Senão o que não tem nem teve.
Nunca. Mas não basta ser valente
Para aprender a arte do esquecimento.
Um símbolo, uma rosa, te destroça
E te pode matar o som de um violão.

                          II

Já não serei feliz. Talvez não importe.
Há tantas outras coisas no mundo;
Um instante qualquer é mais profundo
E rico do que o mar. A vida é curta
E ainda que as horas sejam tão longas, uma
Obscura maravilha nos espreita:
A morte, esse outro mar, essa outra flecha
Que nos libera do sol e da lua
E do amor. A ventura que me deste
E que me tiraste deve ser apagada.
O que tudo era tem que ser nada.
Só me resta o gozo de estar triste,
Esse costume inútil que me inclina
Ao Sul, à certa porta, à certa esquina.

Tradução amadora minha

Gregory Crewdson , "Mulher na Penteadeira"

terça-feira, 28 de julho de 2009

Murilo Mendes



"Meu Duplo"

1

A edição que circula de mim pelas ruas
Foi feita sem o meu consentimento.
Existe a meu lado um duplo
Que possui um enorme poder:
Ele imprimiu esta edição da minha vida
Que todo mundo lê e comenta.

Quando eu morrer a água dos mares
Dissolverá a tinta negra do meu corpo,
Destruindo esta edição dos meus pensamentos, sonhos e amores
Feita à minha revelia.

2

O meu duplo sonha de dia e age durante a noite,
O meu duplo arrasta corrente nos pés.
Mancha todas as coisas inocentes que vê e toca.
Ele conspira contra mim,
Desmonta todos os meus atos um por um e sorri.
O meu duplo com uma única palavra
Reverte os objetos do mundo ao negativo do FIAT;
Destrói com um sopro
O trabalho que eu tenho de diminuir o pecado original.
Quando eu morrer o meu duplo morrerá - e eu nascerei.

3

Eu tenho pena de mim e do meu duplo
Que entrava meus passos para o bem,
Que sufoca dentro de mim a imagem divina.
Tenho pena do meu corpo cativo em terra ingrata,
Tenho pena dos meus pais
Que sacrificaram uma existência inteira
Pelo prazer duma noite.
Tenho pena do meu cérebro que comanda
E de minha mão que escreve poemas imperfeitos.
Tenho pena do meu coração que explodiu de tanto ter pena,
Tenho pena do meu sexo que não é independente,
Que é ligado ao meu coração e ao meu cérebro.
Eu tenho pena desta mulher tirânica
Que me ajuda a ampliar o meu duplo.
Tenho pena dos poetas futuros
Que se integrarão na comunidade dos homens
Mas que nos momentos de dúvida e terror
Só terão como resposta o silêncio divino.

4

Ó meu duplo, por que me separas da verdade?
Por que me impeles a descer até a profundeza
Onde cessaram as formas da vida para sempre?
Por que insinuas que o sorriso da criança já traz a corrupção,
Que toda esta ternura é inútil,
Que o homem usará sempre a espada contra seu irmão,
Que minha poesia aumenta o desconsolo em torno de mim?
Ó meu duplo, por que a todo instante me ocultas a Trindade?
Ó meu duplo, por que murmuras sutilmente ao meu ouvido
Que Deus não está em mim porque está fora do mal, do tédio e da dúvida?
Por que atiras um pano negro na estrela da manhã,
Por que opões diante do meu espírito
A temporária Berenice à mulher eterna
Ó meu duplo - meu irmão - Caim - eu admito te matar.

Paulo Leminski, "Aviso aos Náufragos"

Esta página, por exemplo
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.

Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?

Eugénio de Andrade, "Sem ti"

E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem lua.

Só nas minhas mãos
oiço a música das tuas.

Xilogravura de Chico Stockinger, "Madame"

Agostinho Mota, "Natureza Morta"

Mulher, Foto

Alexandra Pizarnik, lendo trecho de poema de Arturo Carrera


https://www.youtube.com/watch?v=PMW2JJ9beHU

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Manuel Bandeira



"Gesso"

Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova
— o gesso muito branco, as linhas muito puras —
Mal sugeria imagem de vida
(embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de pátina
                                                                                            [ amarelo-suja.
Os meus olhos de tanto a olharem,
Impregnaram-na da minha humanidade irônica de tísico.
Um dia mão estúpida
Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos,
                                                        [ recompus a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo
                                                                                      [ mordente de pátina...

Hoje esse gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

Sylvio Pinto, "Ponta d'Areia"

Vinícius de Moraes, "Soneto do Gato Morto"

Um gato vivo é qualquer coisa linda
Nada existe com mais serenidade
Mesmo parado ele caminha ainda
As selvas sinuosas da saudade

De ter sido feroz. À sua vinda
Altas correntes de eletricidade
Rompem do ar as lâminas em cinza
Numa silenciosa tempestade.

Por isso ele está sempre a rir de cada
Um de nós, e ao morrer perde o veludo
Fica torpe, ao avesso, opaco, torto

Acaba, é o antigato; porque nada
Nada parece mais com o fim de tudo
Que um gato morto.

Salvador Dalí, "Gala"

Giuseppe Ungaretti, "San Martino del Carso"

Destas casas
nada sobrou
senão alguns
pedaços de muro

De quantos
me foram próximos
nada sobrou
nem tanto

No coração porém
nenhuma cruz me falta

É o meu coração
a região mais destroçada

Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti

Lasar Segall, Gravura em Metal (água-forte), Imigrantes

Guignard, "Vaso de Flores"

Antonio Cicero



"Diamante"
O amor seria fogo ou ar
em movimento, chama ao vento;
e no entanto é tão duro amar
este amor que o seu elemento
deve ser terra: diamante,
já que dura e fura e tortura
e fica tanto mais brilhante
quanto mais se atrita, e fulgura,
ao que parece, para sempre:
e às vezes volta a ser carvão
a rutilar incandescente
onde é mais funda a escuridão;
e volta indecente esplendor
e loucura e tesão e dor.

Copiado do site http://www.antoniocicero.blogspot.com/

Anjos da Renascença Brasileira nº 5, Gravura em Metal (água-forte e água-tinta) de Mário Gruber

Takaoka, "Paraty"

Eugénio de Andrade



"Poema à Mãe"

No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Paulo Henriques Britto, "Pomo"

Da vida só têm substância
a casca e o caroço.
No meio só tem amido,
embromações do carbono.
Porém todo o gosto reside
nessa carne intermediária,
sem valor alimentício,
sem realidade, sem nada.

É nela que os dentes encontram
o que os mantém afiados;
com ela é que a língua elabora
a doce palavra.

Rodolfo Amoedo, "O Último Tamoyo"

Eucanaã Ferraz, "Não saberia dizer ..."

Não saberia dizer a hora
em que me desfizera de tudo o que não era teu,

quando cada coisa se deixou cobrir
por tua presença sem margens

e deixou de haver um lado
que fosse fora de ti.

Guignard, "As Gêmeas"

Murilo Mendes, "O Mau Samaritano"

Quantas vezes tenho passado perto de um doente,
Perto de um louco, de um triste, de um miserável,
Sem lhes dar uma palavra de consolo.
Eu bem sei que minha vida é ligada à dos outros,
Que outros precisam de mim que preciso de Deus
Quantas criaturas terão esperado de mim
Apenas um olhar – que eu recusei.

Eugenio Montale



"O que de mim soubeste ..."
O que de mim soubeste
não foi mais que a aparência,
a túnica que reveste
nossa humana aventura.

E talvez além do pano
o azul tranquilo estivesse;
tapava o claro céu
um simples sigilo.

Ou era de fato a estapafúrdia
mudança de minha vida,
o abrir-se de uma terra
incendiada que jamais verei.

Restou assim esta casca
minha real substância;
o fogo que não se amortece
para mim chamou-se: ignorância.

Se divisas uma sombra, não é
sombra - mas eu próprio.
Pudesse arrancá-la de mim
e te ofereceria de presente.


Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti

Alice Ruiz, "Do poeta ..."

do poeta tudo se espera
faça um poema aí, eles dizem
que contenha a primavera
estação que ainda vem

um poeta se comanda
basta acionar, eles pensam
que o poema anda
envie-me um soneto até a noite
quero um haikai de manhã
tenha uma idéia brilhante
para enfeitar este instante

ao poeta se encomenda
rimas ricas, por favor,
não esqueça das aliterações
de ser raro, claro e breve
nos dê hoje, tudo que nos deve

crie desejos
invente necessidades
encante a todos
com sua capacidade
pagamos pouco, é verdade,
mas você pode receber mais tarde
afinal, o poeta
vive de vento, flores, sonhos,
basta, pensam eles,
alimentar sua vaidade

me empresta tua emoção aí, artista,
é o que todos esperam
mas não tem ninguém à vista
querendo ouvir a poesia
que faz o coração do poeta
quando silencia.

Seios, Mulher, Foto

Antonio Gedeão, "Certezas, Precisam-se "

Preciso urgentemente de adquirir meia dúzia de valores absolutos,
inexpugnáveis e impenetráveis,
firmes e surdos como rochedos.

Preciso urgentemente de adquirir certezas,
certezas inabaláveis, imensas certezas, montes de certezas,
certezas a propósito de tudo e de nada,
afirmadas com autoridade, em voz alta para que todos oiçam,
com desassombro, com ênfase, com dignidade,
acompanhadas de perfurantes censuras no olhar carregado, oblíquo.

Preciso urgentemente de ter razão,
de ter imensas razões, montes de razões,
de eu próprio me instituir em razão.
Ser razão!
Dar um soco furibundo e convicto no tampo da mesa
e espadanar razões nas ventas da assistência.

Preciso urgentemente de ter convicções profundas,
argumentos decisivos,
ideias feitas à altura das circunstâncias.
Preciso de correr convictamente ao encontro de qualquer coisa,
de gritar, de berrar, de ter apoplexias sagradas
em defesa dessa coisa.
Preciso de considerar imbecis todos os que tiverem opiniões diferentes

da minha,
de os mandar, sem rebuço, para o diabo que os carregue,
de os prejudicar, sem remorsos, de todas as maneiras possíveis,
de lhes tapar a boca,
de lhes cortar as frases no meio,
de lhes virar as costas ostensivamente.
Preciso de ter amigos da mesma cor, caras unhacas,
que me dêem palmadinhas nas costas,
que me chamem pá e me façam brindes
em almoços de camaradagem.
Preciso de me acocorar à volta da mesa do café,
e resolver os problemas sociais
entre ruidosos alívios de expectoração.
Preciso de encher o peito e cantar loas,
e enrouquecer a dar vivas,
de atirar o chapéu ao ar,
de saber de cor as frequências dos emissores.
O que tudo são símbolos e sinais de certezas.
Certezas!
Imensas certezas! Montes de certezas!
Pirinéus, Urais, Himalaias de certezas!

Di Cavalcanti, "O Nascimento de Vênus"

Aldo Bonadei, "Rua Pompeu Loureiro (Copacabana)"

Jorge Luiz Borges, "As Coisas"

A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro,
Um livro e em suas páginas a ofendida
Violeta, monumento de uma tarde,
De certo inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas e taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão muito além de nosso olvido:
E nunca saberão que havemos ido.


Tradução de Ferreira Gullar

domingo, 26 de julho de 2009

Prelúdio da Suite para Cello nº 5, de J.S. Bach, com Rostropovich

Xilogravura de Oswaldo Goeldi, "Figuras e Casarões"

Hilda Hilst, "Que este amor ..."

Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua de estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.

Siron Franco, "Figura com Chapéu"

Guignard, "Vaso de Flores"

Gravura em Metal de Lasar Segall, "Mangue"

Ferreira Gullar














Despedida

Eu deixarei o mundo com fúria.
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro.

De fato
nesse momento
estarão de mim se arrebentando
raízes tão profundas
quanto estes céus brasileiros.
Num alarido de gente e ventania
olhos que amei
rostos amigos tardes e verões vividos
estarão gritando a meus ouvidos
para que eu fique
para que eu fique.

Não chorarei.
Não há soluço maior que despedir-se da vida.

José Régio, Cântico Negro, por Maria Bethânia



Cântico Negro

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?


Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, e mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio

Guignard, "Paisagem Imaginante"


Kathleen Ferrier - Ich bin der Welt abhanden gekommen, lied de Mahler




Eu me tornei estranho para o mundo
com o qual perdi outrora tanto tempo;
faz muito que ele não ouve a meu respeito
que pode mesmo achar que já morri.

Para mim é de todo indiferente
que ele me trate como fosse morto.
Nada posso dizer contrário a isso
pois de fato morri para este mundo.

Estou bem morto para o seu tumulto
e descanso num lugar de quietude.
Sozinho vivo no meu paraíso,
no meu amor, nas notas do meu canto.

Friedrich Rückert
Tradução de Ivo Barroso

Edwin Morgan, "Morangos"

Nunca houve morangos
como os que tivemos
naquela tarde tórrida
sentados nos degraus
da porta-janela aberta
de frente um para o outro
seus joelhos encostados nos meus
os pratos azuis em nossos colos
os morangos brilhando
na luz quente do sol
nós os mergulhamos em açúcar
olhando um para o outro
sem apressar a festa
para chegar ao fim
os pratos vazios
deitados sobre a pedra juntos
com os dois garfos cruzados
e me aproximei de você
dócil naquele ar
nos meus braços
abandonado como uma criança
da sua boca ávida
o gosto de morangos
na minha memória
inclina-se de volta
deixe-me amá-lo

deixe o sol bater
sobre o nosso esquecimento
uma hora de tudo
o calor intenso
e o relâmpago de verão
nas colinas de Kilpatrick

deixe a tempestade lavar os pratos


Tradução de Virna Teixeira

Heitor de Pinho, "Paisagem com Igreja"

sábado, 25 de julho de 2009

Xilogravura de Oswaldo Goeldi, "Chuva"

Orides Fontela









"Fala"

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será.
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade.)