domingo, 29 de novembro de 2015

Paulo Henriques Britto, "Véspera"


No trivial do sanduíche a morte aguarda.
Na esquiva escuridão da geladeira
dorme a sono solto, imersa em mostarda.

A hora é lerda. A casa sonha. A noite inteira
algo cricrila sem parar – insetos?
O abacaxi impera na fruteira,

recende esplêndido, desperdiçando espetos.
A lua bate o ponto e vai-se embora.
Mesmo os ladrilhos ficam todos pretos.

A geladeira treme. Mas ainda não é hora.
Se houvesse um gato, ele seria pardo.
A morte ainda demora. O dia tarda.


sábado, 28 de novembro de 2015

Ivan Junqueira













"Herdeiros"

Não quis mais vê-los. A besta
da demência deles fez
o que faz uma centelha
na palha seca dos nervos:

retorcidas labaredas
também tetos e paredes,
os dentes rilham - são presas,
e o convívio sabe a esterco.

Irmão contra irmão, celeuma
entre herdeiros. De quê ?
De uns trapos, um camafeu
cuja efígie não se vê,

púcaros, cálices, trechos
de um enredo sem desfecho,
polainas de um cinza espesso,
rendas, anáguas, corpetes,

o brilho de um alfinete
numa gravata obsoleta,
frascos de incenso, navetas
de porcelana chinesa.

Em suma, um fátuo cortejo
de ninharias enfermas,
sem serventia ou apreço,
mas pelas quais se peleja

como em busca de amuletos,
de uma relíquia que seja
capaz de lhes dar o ensejo
de se unirem em seu gueto.

Eis que os ouço e logo vejo
o que me desnuda o espelho:
esquálidas silhuetas
numa cena de opereta.

Nela se entoa um dueto
sobre o morto que não deixa
senão as flores do enterro
e os bens que em vida não teve.


quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Konstantinos Kaváfis, "Coisas pintadas"


Por meu trabalho zelo, e a ele quero bem.
Mas a lentidão da composição hoje me desanima.
O dia influiu sobre mim. Seu aspecto
torna-se continuamente sombrio. Sem cessar venta e chove.
Mais desejo olhar que falar.
Nesta pintura vejo agora
um belo rapaz que, perto da fonte,
se estendeu, depois de ter-se cansado talvez de correr.
Que belo menino! Que divino meio-dia
já o arrebatou para adormecê-lo! -
Fico a olhar assim por muito tempo.
E, dentro da arte novamente, descanso de sua labuta.


quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Lúcio Cardoso











"Revolta"

Ainda agora é de ti que me lembro,
é a tua voz que sinto no escuro do sangue,
esperança que se dilui no pó das madrugadas...
Tantas vezes outrora ante a porta fechada,
conheci o martírio das horas vazias,
paisagens recuadas do meu desespero...
Quem ousaria fixar o astro que me guia,
neste grande céu do meu destino?
(Oh, luz da manhã que se levanta longe,
nos brancos caminhos da hora renascida,
repouso, inacessível, imaterial repouso!)
Sou equação de um mundo povoado de erros,
sou berço em que fermentam escuros limos
de almas há cem anos votadas ao silêncio.
Junto a mim flutua a fria maldição
e lento se reanima o ódio - invisível chama.
Mas ódio e maldição, tudo que ruge
ao longo destas horas de tormenta,
eu atiro a teus pés, arrojo à tua Face,
para que me faças a presa do teu castigo
ou da tua Graça.


segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Baquílides, "A Paz"


Grandes coisas a paz concede aos homens
             riqueza e cantos como flores,
                      de expressões de mel.

A paz sobre os altares trabalhados,
queima no louro fogo em honra aos deuses
              coxas de bois e de carneiros
                       de longos pelos,
              e leva os jovens aos ginásios,
                 às flautas e aos banquetes.
              No férreo punho dos escudos
a aranha cor de fogo estende a teia,
e a lança aguda e a espada de dois fios
                   submete-as a ferrugem.
As trombetas de bronze já não soam;
já não foge das pálpebras o sono
                   - tão doce como o mel -
que de manhã conforta o coração.

Pela cidade espalham-se os festins amáveis:
                     e brilham como chamas
                     as canções de amor.

domingo, 22 de novembro de 2015

Carlos Drummond de Andrade














"Declaração em juízo"

Peço desculpas de ser
o sobrevivente.
não por longo tempo, é claro,
tranquilizem-se.
mas devo confessar, reconhecer
que sou sobrevivente.
se é triste/cômico
ficar sentado na plateia
quando o espetáculo acabou
e fecha-se o teatro,
mais triste/grotesco é permanecer no palco,
ator único, sem papel,
quando o público já virou as costas
e somente baratas
circulam no farelo.
reparem: não tenho culpa.
não fiz nada para ser
sobrevivente.
não roguei aos altos poderes
que me conservassem tanto tempo.
não matei nenhum dos companheiros.
se não saí violentamente,
se me deixei ficar ficar ficar,
foi sem segunda intenção.
largaram-me aqui, eis tudo,
e lá se foram todos, um a um,
sem prevenir, sem me acenar,
sem dizer adeus, todos se foram.
(houve os que requintaram no silêncio).
não me queixo. nem os censuro.
decerto não houve propósito
de me deixar entregue a mim mesmo,
perplexo,
desentranhado.
não cuidaram que um sobraria.
foi isso. tornei, tornaram-me
sobre-vivente.
se se admiram de eu estar vivo,
esclareço: estou sobrevivo.
viver, propriamente, não vivi
senão em projeto. adiamento.
calendário do ano próximo.
jamais percebi estar vivendo
quando em volta viviam quantos! quanto.
alguma vez os invejei. outras, sentia
pena de tanta vida que se exauria no viver
enquanto o não viver, o sobreviver
durava, perdurando.
e me punha a um canto, à espera,
contraditória e simplesmente,
de chegar a hora de também
viver.
não chegou. digo que não. tudo foram ensaios,
testes, ilustrações. a verdadeira vida
sorria longe, indecifrável.
desisti. recolhi-me
cada vez mais, concha, à concha. agora
sou sobrevivente.
sobrevivente incomoda
mais que fantasma. sei a mim mesmo
incomodo-me. o reflexo é uma prova feroz.
por mais que me esconda, projeto-me,
devolvo-me, provoco-me.
não adianta ameaçar-me. volto sempre,
todas as manhãs me volto, viravolto
com exatidão de carteiro que distribui más notícias.
o dia todo é dia
de verificar o meu fenômeno.
estou onde não estão
minhas raízes, meu caminho
onde sobrei,
insistente, reiterado, aflitivo
sobrevivente
da vida que ainda
não vivi, juro por deus e o diabo, não vivi.
tudo confessado, que pena
me será aplicada, ou perdão?
desconfio nada pode ser feito
a meu favor ou contra.
nem há técnica
de fazer, desfazer
o infeito infazível.
se sou sobrevivente, sou sobrevivente.
cumpre reconhecer-me esta qualidade
que finalmente o é. sou o único, entendem?
de um grupo muito antigo
de que não há memória nas calçadas
e nos vídeos.
único a permanecer, a dormir,
a jantar, a urinar,
a tropeçar, até mesmo a sorrir
em rápidas ocasiões, mas garanto que sorrio,
como neste momento estou sorrindo
de ser − delícia? − sobrevivente.
é esperar apenas, está bem?
que passe o tempo de sobrevivência
e tudo se resolve sem escândalo
ante a justiça indiferente.
acabo de notar, e sem surpresa:
não me ouvem no sentido de entender,
nem importa que um sobrevivente
venha contar seu caso, defender-se
ou acusar-se, é tudo a mesma
nenhuma coisa, e branca.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Miguel Torga, "Súplica"


Não digas, nunca, musa,
Por quantos versos reparti o pranto
Que chorei neste mundo.
Não contes
Os mil segredos que te confiei
nas horas do abandono.
Não reveles à vida
O amor que lhe tive
E de que foste a  única confidente.
Perdição consciente,
Que mais ninguém me veja
Nesta triste nudez de sonhador.
Que o teu silêncio seja
O meu pudor.


quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Lúcio Cardoso, "Rosa vermelha"


No teu esplêndido jazigo de cristal, agonizas, ó rosa
adormecida na penumbra azul da velha sala.
Como das conchas cresce a surda música das vagas,
do teu seio se exala o esplendor vermelho das tardes
e o perfume que tanto incentivou a fome alucinada das abelhas.
Mas, agora, na tua rósea carnação só recolhes a sombra
roxa, azul, lilás, das violetas que o teu espectro rodeiam.
Em breve descerás ao silêncio - e astro tardio,
cintilarás de encontro ao veludo escuro da cortina,
como a mulher que aos olhos do tímido amante
ostenta na cumplicidade da penumbra
a majestade triste da sua carne extinta.


terça-feira, 17 de novembro de 2015

Paulo George, "Quando a gente escreve..."


Quando a gente escreve
não importa se estar triste ou alegre
não importa ser eterno ou breve
não importa trabalhar sozinho ou muito
ou fazer greve de tudo
quando agente escreve
o que importa
é a porta que se abre de leve.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Ana Cristina Cesar, "Marfim"


A moça desceu os degraus com o robe
monografado no peito: L. M. sobre o coração.
Vamos iniciar outra Correspondência, ela
propôs. Você já amou alguém verdadeiramente?
Os limites do romance realista. Os caminhos do
conhecer. A imitação da rosa. As aparências
desenganam. Estou desenganada. Não reconheço
você, que é tão quieta, nessa história. Liga
amanhã outra vez sem falta. Não posso
interromper o trabalho agora. Gente falando por
todos os lados. Palavra que não mexe mais no
barril de pólvora plantado sobre a torre de
marfim.


sábado, 14 de novembro de 2015

Alexei Bueno, "Moto perpetuo"


            Todo poema
É o último do mundo.
A tentativa extrema,
O crucial segundo.

            Por fim, escrito,
Pétreo, Coagulado,
As larvas do não dito
Postam-se a cada lado.

            E tudo é falta.
A fonte exige a bilha
Sem fundo, e eis que nos assalta
A horrenda maravilha.

Mireille Mathieu, "La Marseillaise"

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Armando Freitas Filho, "Ravel"


Todo telefone é terrível - negro 
guerrilheiro, à escuta na sala 
disfarçado ao lado do sofá 
à espera, no gancho 
sempre na véspera 
com o grampo da granada 
já nos dentes. 
A única saída é ocupá-lo 
para que não estoure 
(não posso te agarrar daqui 
nem pelos fios dos cabelos 
pare antes que toque 
e o infinito acabe). 
Todo terrível é telefone - negro 
à escuta 
guerrilheiro à espera 
ao lado do sofá 
disfarçado na sala 
na véspera da granada 
com o grampo nos dentes fora do gancho 
ocupando a única saída 
para que não estoure 
(não posso nem pelos cabelos 
antes que acabe e toque 
o infinito, te agarrar, nos fios, pare 
daí). 


quinta-feira, 12 de novembro de 2015

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Jorge Luis Borges










"A cifra"

A amizade silenciosa da lua
(citando mal Virgílio) te acompanha
desde aquela dispersa hoje no tempo
noite ou entardecer em que teus vagos
olhos a decifraram para sempre
em um jardim ou um pátio que são pó.
Para sempre? Eu sei que alguém, um dia,
irá dizer-te verdadeiramente:
"Não voltarás a ver a clara lua.
Já esgotaste a inalterável
soma de vezes que te dá o destino.
Inútil abrir todas as janelas
do mundo. É tarde. Não a encontrarás".
Vivemos descobrindo e esquecendo
esse suave hábito da noite.
Olha-a bem. Quem sabe seja a última.

 Tradução de Josely Vianna Baptista, 


terça-feira, 10 de novembro de 2015

Mário Faustino, "Não quero amar o braço descarnado"


Não quero amar o braço descarnado
Que se oculta em meu braço, nem o peito
Silente que se instala no meu lado,
Onde pulsa de horror um ser desfeito
Na presente visão de seu passado
Em futuro sem tempo contrafeito,
em tempo sem compasso transmudado.
O morto que em mim jaz aqui rejeito.
Quero entregar-me ao vivo que hoje sua
De medo de perder-me em pleno leito
Rubro de vida e de morte em que me deito
À luz de ardente e grave e cheia lua.
Ao que, se a morte chama de longe: Mário!,
Me abraça estremecendo em meu sudário.


domingo, 8 de novembro de 2015

Alexei Bueno, "A última visão"


É a hora de dormir. Quão breve chega.
Tudo subitamente se amontoa...
Tejo, Mekong, Mondego, a musa grega,
O Rossio, os bordéis, Ceuta, Lisboa.

Naufrágios. Jogo. Oceano. A vista cega.
Bárbara. Dinamene. Uma coroa
Na areia. O mar. A praia que se entrega.
Os sinos de Sant'Ana. A praça em Goa.

Os versos. Prensas. Autos. Céus. Semblantes
De pedra. Os pais. Arruaças. Cães. Cadeias.
A espada sob o sol. Seios de amantes.

O Olimpo. O Letes. Naíades. Sereias.
Tudo passou em menos de uma hora.
Só Deus sabe o que principia agora.


sábado, 7 de novembro de 2015

Ivan Junqueira, "Limbo"


Ali está. Alheio às minhas mãos,
informe e pequenino, tão
indeciso, iluminado apenas
de sua pouca e solitária luz.
Dorme na sombra que o circunda,
Como no fundo de um casulo. Ignora
ainda o que o povoa, sequer
sabe que existe. Ali perdura
à espera do ritmo, da música.
Estrelas, insignias, leves partituras.
(Que ouvidos as escutam?)
Está ali. Imóvel e silencioso,
a uma passo da sincope e do gozo.
Ali está. Heráldico emblema
- o signo incógnito do poema.


quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Felipe D'Oliveira, "O epitáfio que não foi gravado"



Todos sentiram quando a morte entrou
com um frêmito apressado de retardatária.

A que tinha de morrer, - a que a esperava, -
fechou os olhos
fatigados de assistirem ao mal-entendido da vida.

Os que a choravam sabiam-na sem pecado,
consoladora dos aflitos,
boca de perdão e de indulgência,
corpo sem desejo,
voz sem amargor.

A que tinha de morrer fechou os olhos fatigados,
mas tranquilos...
Porque os que a choravam nunca saberiam
o rancor sem perdão de sua boca,
o desejo saciado de seu corpo,
o amargor de sua voz,
a sua angústia de arrastar até o fim a alma postiça que

[lhe fizeram,
o seu cansaço imenso de abafar, secretos, na carne ansiosa,
a perfeição e o orgulho de pecar.

A que tinha de morrer fechou os olhos para sempre
e os que a choravam
nunca souberam de alguém que foi de todos junto ao leito

[à hora do exausto coração parar
o mais distante,
o mais imóvel,
o que não soluçou
que não pode erguer as pálpebras pesadas,
o que sentiu chamar no sangue o desespero de sobreviver,
o que estrangulou na garganta o grito dilacerado do solitário,
o que depois, sobre a serenidade da morte purificadora,
a redenção do silêncio,
como uma pedra votiva do sepulcro.


quarta-feira, 4 de novembro de 2015

David Mourão-Ferreira, "Junho"


A esta
mesma hora
em cada
praia

um piano soluça
de alegria

Tarde
após tarde
cada vez
mais
tarde

nas suas teclas
brancas
morre
o dia.


segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Paulo Fatal, "Romântico jantar"


precisamos fazer logo alguma coisa.

pelo menos providenciar
mais plástico e pano para cobrí-los.

e então jantaremos
            somente os dois

à luz das velas acesas
em torno dos corpos
crivados de balas.


domingo, 1 de novembro de 2015

Mauro Luiz Klaufke, "O milho"


O milho não se ouvia.

Ele estava escondido
no corpo do lavrador.
Nem ele mesmo sabia
de que lutas o milho vinha
trazer sua música híbrida.

O milho não se ouvia.

Era incerto que nascesse
e fosse a palha
da casa
e fosse o sol
da mesa.

O milho não se ouvia.

O que se ouvia era a fome
dos camponeses gritando
em pratos vazios.