quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Manuel Bandeira entrevistado por Pedro Bloch em 1964.



Ninguém sabe explicar como aquele homem, castigado, tantos anos, pela doença, não amargou. Disse Mário de Andrade: "Eu fico espantado de como há certos homens no mundo! Tu, por exemplo. Essa sublime bondade inconsciente, bem no íntimo, de quem nem sabe que é bom." Vou além. Acho que Manuel Bandeira nem tem plena consciência de sua imensa envergadura de gente e poeta. Acho que, talvez, os quatro anos que viveu em sua terra, Recife, é que explicam, mais que os males, o homem de hoje. ("Sou bem-nascido, menino./Fui, como os demais, feliz./Depois, veio o mau destino/E fez de mim o que quis.")

Diante de mim está o gigante de nossa poesia: Manuel Bandeira, em seu modesto apartamento, atulhado de livros e calor humano, na Av. Beira-Mar, no Rio. Do bem que lhe querem todos, da ternura que desperta em quem dele se aproxima basta dizer que Mário de Andrade só o tratava de Manu ou Manuelucho; Rodrigo MeIo Franco de Andrade lhe deu o nome de Manula; Madale Blank, sua amiga de almoço de todo o dia, o trata de Mané. Até a morte da mãe era para ela. Neném. Creio que nunca ninguém teve tanto apelido, tanta gente querendo chegá-lo à sua amizade.

Do Recife tenho quatro anos de existência consciente, mas ali está a raiz de toda a minha poesia. Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida é que vejo o vazio dos últimos. ("Hoje não ouço mais vozes daquele tempo/Minha avó/Meu avô/Totônio Rodrigues; Tomásia/Rosa/Onde estão todos eles ?")

Meu nome todo é Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho. Fisicamente me pareço com mamãe (D. Francelina): míope, dentuça como eu; no resto sou como meu pai (engenheiro que conviveu no ministério com Machado de Assis).

Sabe, Pedro Bloch, que meu avô reprovou Castro Alves num exame? Eramos três irmãos. Os mais velhos (Antônio e Maria Cândida) já não existem.

Saí do Recife com dois anos. Deles nada recordo. Viemos pro Sul e com seis (quando da revolta da Esquadra, em 1892) meu pai nos levou de volta pra casa de meu avô. Fui com seis e voltei ao Rio com dez. Mas esses quatros anos ... Essa coisa de viver, na infância, num lugar e, depois, ser arrancado dele, isola essa vida dentro da vida da gente. ("A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado/Rua da União.../ Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância/Rua do Sol/ Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal.")

Papai, no Rio, não teve sorte. Aos quarenta anos passou por crise religiosa. Dele recordo com intensidade o dia em que exclamou olhando, pra mim, menino de seis anos: "E impossível que este menino não saiba ler." Trancou-se comigo na biblioteca, por duas horas. Saí de lá lendo. Outra coisa que me tocou fundo foi ouvi-lo exclamar ao morrer: "Meu Jesus Cristinho!" E eu conto no poema: "Mas Jesus Cristo nem se "incomodou!"

Foi o livro de D' Amicis uma das coisas que mais me marcaram. Ali descobri a literatura e a vida. Isto no Recife. No Rio, eu e meu irmão fomos fazer exame para o Ginásio Nacional (Pedro II). Na casa das Laranjeiras, onde moráva­mos, nunca faltou pão; mas a luta era dura. Nunca briguei com moleque da rua, mas me impregnei do realismo do povo. (Mais tarde conheci a Lapa.) Comecei fazendo versos pretensamente humorísticos. Com a puberdade, versos de amor. Meus namoros eram sempre calados, namoro de caboclo. E eu, menino ainda, vivia amando moças já feitas. Um dia perguntei a meu tio se Vésper rimava com Cadáver. Ele disse que não. Descobri, mais tarde, que meu ouvido é que estava certo. Tanto se rima consoantemente como toantemente e de outras maneiras. Aprendi que a boa rima é a que traz ao ouvido uma sensação de surpresa, não de raridade, senão de uma espécie de resolução musical. Como nas Pombas: "Raia, sanguínea e fresca, a madrugada." Entre outros eu tinha como colegas do Pedro II o Prof. Nascentes, o Artur Moses, o Souza Silveira, o Lopes da Costa. Acabei bacharel em Letras.

Como ainda não havia um bom curso de arquitetura no Rio (eu queria ser arquiteto) fui estudar em São Paulo. Aos 18 anos, nas férias do 1º ano para o 2° da Politécnica, fiquei tuberculoso. Durante muitos anos vivi provisoriamente. He­moptises, tosse, febre, desesperança. Andei de ceca em meca, alopatia, homeopatia, e em junho de 1913 segui para um sanatório suíço (Clavadel). Meu pai ganhava um conto e novecentos. A passagem, ida e volta, custava 900 mil-réis. O sanatório, com balcão e quarto, 360 mil-réis que valiam 600 francos suíços. Lá fiquei até outubro de 1914. Com a guerra o franco dobrou e eu não pude continuar lá. Foi quando perguntei ao Dr. Bodmer: "Quanto tempo de vida o senhor me dá?" A resposta: "O senhor tem lesões teoricamente incompatíveis com a vida, mas nenhum sintoma alarmante. Pode durar uns cinco... dez anos." Calcule! ("Então, doutor!, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.")

Na Suíça, conheci, como companheiro de sanatório, o poeta Paul Eluard e Gala, que veio a ser sua esposa e, atualmente, é a mulher de Salvador Dali.

Voltei. Mal tinha dado pra conhecer Paris, por alto na ida. Só 44 anos depois pude voltar à Europa. Aqui no Rio eu ficava até tarde, deitado na praia, no Leme, diante das recriminações de todos. Em 1917, publiquei meu primeiro livro (A Cinza das Horas, 200 exemplares que me custaram 300 mil-réis). Em Carnaval, depois, eu dizia: "Quero beber! Cantar asneiras!" Pois um crítico observou: "Conseguiu plenamente o que queria." Nestes dois volumes e em Ritmo Dissoluto estão poemas feitos em estado de lucidez. A partir de Libertinagem é que me resignei à condição de poeta quando Deus é servido. Tomei cedo consciência de que era um poeta menor, consciência de minhas limitações. Devo dizer que aprendi muito com os maus poetas: o que devemos evitar.

Ao voltar da Suíça eu era um inválido. Basta dizer que papai passou pra mim o montepio de 500 mil-réis. Depois dos cinqüenta é que eu pude começar a trabalhar, a ganhar a vida. Fiscal de ensino. Depois fui lecionar Literatura no Pedro II, até 1942. San Tiago Dantas, posteriormente, me convidou para ensinar Literatura Hispano-Americana na Faculdade de Filosofia, onde permaneci até 1956. Traduzi muito, fiz muita crônica, crítica musical, crítica de arte. Mas, durante a minha doença, dependi de meu pai (até que morreu em 1921) e do montepio. Por falar em crítica musical, ocorre-me que sempre fui muito sensível ao desenho e à música. Na verdade, faço versos porque não sei fazer música. Quando morei na Rua do Curvelo conheci melhor Ribeiro Couto, que me aproximou da nova geração literária do Rio e de São Paulo: Ronald, Alvaro Moreira, Di Cavalcanti, Mário e Oswald de Andrade. Em 1921 Mário veio ler aqui sua Paulicéia Desvairada. Foi a última influência que recebi. O que veio depois me encontrou calcificado. Também não quis participar da Semana da Arte Moderna. Pouco me deve o movimento. O que devo a ele é enorme. Mas eu falava de Ribeiro Couto, um dos responsáveis pela minha entrada para a Academia. No tempo da Rua do Curvelo era ele quem me ajudava a ajustar-me ao mundo dos sãos, porque a doença gerara em mim um sentimentalão.

Não. Nunca fui um antiacadêmico. O problema é que eu gostava de tomar minhas licenças com a língua (E eu digo a você, Bandeira: - Você não precisa pedir licença, a casa é sua). Não aceito que não se possa dizer "me dê isso", "me dê aquilo" se até o Laet dizia. ((Confesso que também tinha ojeriza pelo fardão.) Nada mais gostoso que "pra mim brincar". Todos os brasileiros deviam querer falar como os cariocas que não sabem gramática. "Ele já mo deu" ... é horrível! Horríveis também são quiçá e alhures. A Rua do Curvelo me ensinou muitas coisas. Foi ali que, vendo os moleques de rua, reaprendi os caminhos da infância. A mim sempre agradou o coloquial e até o baixo calão.

Você lembra? O menino Jesus: - "Quem sois tu?/O preto: - Eu sou aquele preto principá do centro do cafange do fundo do rebolo. Quem sois tu?/ - O menino Jesus: - Eu sou fio da Virge Maria/ O preto: Então como é fio dessa senhora obedeço."

Em 1921, papai morto, continuei vivendo com 500 mil-réis. Outro dia, fui comprar um queijo: custava 550! Em 1940, houve vaga na Academia, Ribeiro Couto voltou à carga. Eu, inspetor de ensino, tinha perdido o montepio: - os 500 mil-réis exatos com que a Academia me acenava. Juntei o meu desejo de segurança ao respeito pela Academia e venci o medo de conspurcá-la com os meus pronomes. (Fora dali, onde só tenho amigos diletos, faço programas e crônicas para a Rádio Ministério da Educação.)

Um dos mais chegados é o Rodrigo Melo Franco de Andrade. Almoço todos os dias com uma cara amiga, de sadios 84 anos, Madame Blank. Já ao Drummond eu quero um bem imenso, mas nunca sentei na mesa dele pra almoçar. Nem ele na minha. Nos admiramos muito, mas não temos convivência doméstica. (Foi Drummond quem disse de Bandeira: "O poeta melhor que nós todos, o poeta mais forte.")

A minha poesia tem tomado um aspecto, assim de preparação para a morte. Estou com 77, vou fazer 78 em abril. Nasci a 19 de abril de 1886. Me sinto cansado. Faço algumas outras coisas, mas só no chão da poesia piso com alguma segurança. Estou perdendo a curiosidade. Prefiro ficar em casa a viajar. Do que imaginei ver só a Ronda Noturna, de Rembrandt, ultrapassou a expectativa. As obras de arte, Vênus de Milo e o resto, de tão divulgadas, já não constituem mais surpresa. Não tenho a menor curiosidade pelo Oriente. Me sinto cem por cento Ocidental.
Bandeira fala em preparação para a morte, mas é o poeta mais vibrantemente vivo que se pode conhecer. Vejam a vitalidade, a modernidade de seu poema Maísa:

"Quem fala mais em Maísa a boca ou os olhos?/Os olhos e a boca de Maísa se estendem/os olhos dizem uma coisa e a boca da Maísa se condói/se contrai, se contorce como a ostra viva em que se pingou uma gota de limão./Maísa não é um corpo/Maísa são dois olhos e uma boca." Isto que Bandeira chama de preparação para a morte é simplesmente o sonho do poeta, a Pasárgada de: "Vou-me embora pra Pasárgada/Lá sou amigo do rei/Lá tenho a mulher que eu quero/Na cama que escolherei."

E o poeta escreveu: "Agora a morte pode vir - essa morte que espero desde os dezoito anos; tenho a impressão que ela me encontrará como em Consoada: casa limpa, mesa posta, cada coisa em seu lugar."

"A vida é um milagre./Cada flor,/Com sua forma, sua cor, seu aroma,/Cada flor é um milagre./Tudo é milagre. Tudo menos a morte./Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres."

Posso dizer que pouco se me dá, quando morrer, morrer completamente para sempre na minha carne e na minha poesia. Entretanto, já não será possível, para alguns de meus versos, aquela serena paz da morte absoluta, não por virtude própria, mas por culpa de Villa-Lobos (o primeiro a musicar verso meu), Mignone, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez, Jaime Ovalle, Radamés e tantos outros. Gosto de ser traduzido, de ser musicado, de ser fotografado. Criancice? Deus me conserve minhas criancices.

"O que não tenho e desejo/É que melhor me enriquece./Tive uns dinheiros - perdi-os.../Tive amores - esqueci-os.../Mas no maior desespero/Rezei - ganhei essa prece./Vi terras da minha terra./Por outras terras andei/Mas o que ficou marcado/No meu olhar fatigado/Foram terras que inventei./Gosto muito de crianças:/Não tive um filho de meu./Um filho!.. Não foi de jeito .../Mas trago dentro do peito/Meu filho que não nasceu./Criou-me, desde eu menino/Para arquiteto meu pai./Foi-se-me um dia a saúde.../Fiz-me arquiteto? Não pude!/Sou poeta menor, perdoai!/Não faço versos de guerra./Não faço porque não sei/Mas num torpedo-suicida/Darei de bom grado a vida/Na luta em que não lutei."

Já em 1912, em Teresópolis, Bandeira contemplava um mundo desabitado, enfrentando o mistério do infinito e de Deus:

"Assim deverá ser a natureza/um dia

Quando a vida acabar e, astro/apagado, a Terra

Rodar sobre si mesma estéril/e vazia."

Espiritualmente ... minha filosofia é a de Einstein. "Minha religião - disse ele - consiste numa humilde admiração pelo espírito superior e sem limites que se revela nos menores detalhes que possamos perceber com nossos frágeis espíritos. Essa profunda convicção sentimental da presença de uma razão poderosa e superior revelando-se no incompreensível universo -eis a minha idéia de Deus." Quando li isto, disse comigo mesmo: "E exatamente o que eu sinto!" Não compreendo a negação absoluta de Deus. Como é que veio essa coisa que não começa nem acaba? Tempo infinito ... Espaço infinito ... Uma coisa absurda que, no entanto, existe!...

Não sei por que, hoje em dia, tenho pudor de fazer poemas de amor -confessa-me Bandeira, esquecido de que poeta não tem idade e que lhe é permitido ter todas - Muitas vezes, isto se reflete na minha poesia. Não digo tudo, por discreto e a muitos parece hermético. É como se não quisesse que os outros entrassem na minha confidência, no meu segredo. ("Um dia vi uma moça nuinha no banho/ Fiquei parado o coração batendo/Ela se riu/Foi meu primeiro alumbramento." ­"Teu corpo claro e perfeito/Teu corpo de maravilha/Quero possuí-lo no leito/ Estreito da redondilha..." - "No pensamento, meu amor, tu vives nua/ - Toda nua, pudica e bela, nos meus braços."

Amei, sim. Mas casar não pude. Primeiro era a saúde. Depois... Minhas finanças. Meus amores não podiam levar-me ao casamento com quinhentos mil-réis de montepio.

Não vou a Recife há mais de 30 anos. A princípio tinha vontade de ir mas não podia... Hoje ... (Bandeira fita de olhos agudos sua infância na Rua da União.) Olhe, você lembra de quando quiseram colocar meu busto na minha terra? "Homenagem a Bandeira?" - protestaram alguns. "Mas se ele nem gosta daqui! Nem vem cá!" Meu caro, o Recife é a constante de tudo o que sou. Escreveu Bandeira em Itinerário de Pasárgada: - Está aí roçando bravura a chamada geração de 45; há nela uma meia dúzia de talentos que não me toleram, nem como poeta, nem como homem. Dou-Ihes razão porque eu "positivamente não gosto de mim". Mas eles acabarão gostando; sei, por experiência própria, que, no Brasil, todo sujeito inteligente acaba gostando de mim.
Dentro de poucos dias Bandeira atinge os seus 78 anos, em plena forma intelectual. Miopia, surdez, uma certa angústia ao dormir, não lhe cortam a comunicabilidade. Ao contrário: domina-se facilmente, facilmente se refaz de tristeza ou de sombra.

Olho Bandeira e sinto que sua evocação do Recife lhe é tão cara, tão profunda, que ele mesmo ignora o medo que tem de novo encontro com aquelas ruas, aqueles caminhos, aquelas pontes e aquelas casas, o Capiberibe - Capibaribe. Seria emo­ção demais para seu coração de bom e de poeta. Mas vendo-o, neste instante, não sei quanto não daria pra ver seus olhos olhando de novo a "Rua da União" de sua meninice, fingindo não sentir aquela avalanche de ternura e saudade debruçadas na alma. Tenho a impressão de que Bandeira, gênio da nossa poesia, orgulho de todos nós, perderia o pudor que o acomete agora e choraria um pranto longo de menino que não pode mais brincar de chicote-queimado. Mas o pranto pronto lhe faria bem. E ele voltaria sonhando, novamente, o Recife dos quatro anos que se repe­tiram, sempre, nos 78 do poeta, numa dízima periódica emocional: 444444... E o nosso Bandeira, que vive arrumando suas malas para Pasárgada, deixaria esca­par, num quase sem querer, renovando sua infância, revivendo seus planos, proje­tando futuros:

"Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei."

- Disse o poeta - é onde podemos viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar... O Recife de sua infância sempre foi, é e será a Pasárgada de Manuel Bandeira, o poeta do Brasil.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Ada Ciocci, "Acalanto"

Vai amado.
Busca por onde quiseres,
com quem quiseres,
como quiseres,
o prazer.
Até mesmo,
aquele prazer que um dia alguém apelidou de amor.
E, se por acaso te cansares e,
do compromisso que um dia nos uniu te lembrares,
se desejares, volta.
Serei a que conforta.
Não saberás da dor,
da saudade,
das lágrimas sentidas que tua ausência causou.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Poema de Manuela Amaral e desenho de Carlos Leão.

"Auto de fé "

Não me arrependo dos amores que tive
dos corpos de mulher por quem passei
a todos fui fiel
a todos eu amei

Não me arrependo dos dias e das noites
em que o meu corpo herói ganhou batalhas
A um palmo do umbigo eu fui primeira
a divina
a deusa

a verdadeira mulher – rival.

Amei tantas mulheres de que nem sei o nome
eu só me lembro apenas
de abraços
de pernas
de beijos
e orgasmos

E no amor que dei
e no Amor que tive
eu fui toda mulher - fui vertical

Eu fui mulher em espanto
fui mulher em espasmo
fui o canto proibido e solitário

Só tenho um itinerário: Amor-Mulher.

Pedro Alexandrino, "Natureza Morta"

Mario Quintana












"O poeta canta a si mesmo "

O poeta canta a si mesmo
porque nele é que os olhos das amadas
têm esse brilho a um tempo inocente e perverso...

O poeta canta a si mesmo
porque num seu único verso
pende - lúcida, amarga -
uma gota fugida a esse mar incessante do tempo...

Porque o seu coração é uma porta batendo
a todos os ventos do universo.

Porque além de si mesmo ele não sabe nada
ou que Deus por nascer está tentando agora
ansiosamente respirar
neste seu pobre ritmo disperso!

O poeta canta a si mesmo
porque de si mesmo é diverso.

sábado, 23 de outubro de 2010

Roberto Juarroz

Cada poema faz olvidar o anterior,
apaga a historia de todos os poemas,
apaga sua própria historia
e até apaga a história do homem
para ganhar um rosto de palavras
que o abismo não apague.

Também cada palavra do poema
faz olvidar a anterior,
se desprende um momento
do tronco multiforme da linguagem
e depois se reencontra com as outras palavras
para cumprir o rito imprescindível
de inaugurar outra linguagem.

E também cada silêncio do poema
faz olvidar o anterior,
entra na grande amnésia do poema
e vai envolvendo palavra por palavra,
até sair depois e envolver o poema
como uma capa protetora
que o preserva dos outros dizeres.

Tudo isto não é raro.
No fundo,
também cada homem faz olvidar o anterior,
faz olvidar a todos os homens.

Se nada se repete igual,
todas as coisas são últimas coisas.
Se nada se repete igual,
todas as coisas são também as primeiras.

Tradução de Gerana Damulakis.
Copiado do site http://leitoracritica.blogspot.com/

Marilyn Monroe fotografada por Sam Shaw - Setembro de 1956.

Eugénio de Andrade, "O Sorriso".



Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

Água-forte de Marcelo Grassmann.

Cecília Meireles, "Lamento do oficial por seu cavalo morto"

Nós merecemos a morte,
porque somos humanos
e a guerra é feita pelas nossas mãos,
pelo nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,
por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens
que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.

Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia,
os cálculos do gesto,
embora sabendo que somos irmãos.
Temos até os átomos por cúmplices, e que pecados
de ciência, pelo mar, pelas nuvens, nos astros!
Que delírio sem Deus, nossa imaginação!

E aqui morreste! Oh, tua morte é a minha, que, enganada,
recebes. Não te queixas. Não pensas. Não sabes. Indigno,
ver parar, pelo meu, teu inofensivo coração.
Animal encantado - melhor que nós todos!
- que tinhas tu com este mundo
dos homens?

Aprendias a vida, plácida e pura, e entrelaçada
em carne e sonho, que os teus olhos decifravam...

Rei das planícies verdes, com rios trêmulos de relinchos...

Como vieste morrer por um que mata seus irmãos!

Yêda Schmaltz















O Desvio

A mim pouco me importa
aberta ou fechada a porta,
vou entrar.
E pouco me importa estar
sendo amada ou não amada:
vou amar.
Que a mim me importa tanto
eu mesma e o sentimento,
quanto!
A mim pouco me importa
se a tua amada é doente,
se a tua esperança é morta.
E me importa muito menos
se aceitas solenemente
nossa vida parca e torta.
Porque a mim me importaria
deixasse de ser eu mesma
e a poesia.
A mim pouco me importa
se a lira quebrou a corda:
vou cantar.
E pouco me importa estar
no picadeiro do circo:
vou rodar.
Que a mim me importa tanto
eu mesma e o sentimento,
quanto!
A mim pouco me importa
se estamos todos presos
por uma invisível corda.
E me importa muito menos
sermos todos indefesos
ante o destino que corta.
Porque a mim me importaria
deixasse de ser eu mesma
e a poesia.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Di Cavalcanti, "As Cinco Moças de Guaratinguetá".

Jacinta Passos












"Eu Serei a Poesia"

A poesia está em mim mesma e para além de mim mesma.
Quando eu não for mais um indivíduo,
eu serei poesia
Quando nada mais existir. ente mim e todos os seres,
os seres mais humildes do universo,
eu serei poesia.
Meu nome não importa.
Eu não serei eu, eu serei nós,
serei poesia permanente,
poesia sem fronteiras.

Lya Luft












O lado fatal

I

Quando meu amado morreu, não pude acreditar:
andei pelo quarto sozinha repetindo baixo:
"Não acredito, não acredito."
Beijei sua boca ainda morna,
acarinhei seu cabelo crespo,
tirei sua pesada aliança de prata com meu nome
e botei no dedo.
Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso.

II

Muita gente veio e se foi.
Olharam, me abraçaram, choraram,
todos com ar de uma incrédula orfandade.

III

Aquele de quem hoje falam e escrevem
(ou aos poucos vão-se esquecendo)
é muito menos do que este, deitado em meu coração,
meu amante e meu menino ainda.

IV

Deus
(ou foi a Morte?)
golpeou com sua pesada foice
o coração do meu amado
(não se vê a ferida, mas rasgou o meu também).
Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado,
disse bem alto meu nome no quarto do hospital,
e partiu.

Quando se foram também os médicos e suas máquinas inúteis,
ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?)
o meu amado e eu.
Enterrei o rosto na curva do seu ombro
como sempre fazia,
disse as palavras de amor que costumávamos trocar.
O silêncio dele era absoluto: seu coração emudecido
e o meu, varados por essa dourada foice.
Por onde vou deixo o rastro de um sangue denso e triste
que não estancará jamais.

V

Insensato eu estar aqui, e viva.
O rosto dele me contempla
vincado e triste no retrato sobre minha mesa;
em outros, sorri para mim, apaixonado e feliz.
Insensato, isso de sobreviver:
mas cá estou, na aparência inteira.

Vou à janela esperando que ele apareça
e me acene com aquele seu gesto largo e generoso,
que ao acordar esteja ao meu lado
e que ao telefone seja sempre a sua voz.

Sei e não sei que tudo isso é impossível,
que a morte é um abismo sem pontes
(ao menos por algum tempo).

Sobrevivo, mas pela insensatez.

VI

Pensei que estávamos apenas no começo:
a casa mal-e-mal nos alicerces.
Mas provavelmente estava concluída
e eu não sabia.
Tínhamos erguido em nossos poucos anos
as paredes necessárias;
o telhado se inclinava ao jeito certo,
e havia vidraças nas janelas.
(Éramos felizes ali dentro
mesmo com as tempestades de fora.)
Tudo se construiu num lapso tão curto:
até a porta de entrada, por onde ele saiu
casualmente como quem vai comprar jornal.
A porta está apenas encostada
embora pareça alta, dura, intransponível:
do lado de lá, o meu amor vê as maravilhas
que tanto nos intrigavam nesta vida.

VII

Tanto escrevi sobre a morte
em livros e poemas nesses anos:
sempre achei que a entendia um pouco.

Mas agora que ela me dilacerou a vida,
me rasgou o peito,
me levou o amado,
sinto que mal começo a compreender
sua mensagem:
tirando-o de mim, a morte o devolve
para que seja mais meu.

Dentro de mim um quebra-cabeças, e nele o meu amado.
Nem Deus o tirará daqui.

VIII

O meu amado morreu:
viver sem ele, como dói.
Não tivemos filhos juntos,
nosso passado foi tão breve que era sempre
[presente.
Um dia ele mandou fazer um par de alianças
de pesada prata, parecendo antigas;
gravou apenas nossos nomes, sem data, e disse:
"Somos um só desde sempre."
Ainda não acreditei em sua morte,
e talvez isso me salve por enquanto.
Levantar-me da cama cada dia é um ato heróico,
acender o cigarro, atender o telefone, tomar café.
Mas faço tudo isso:
falo, ando, recebo visitas.
Compro móveis para a casa onde moro sem ele,
imaginando: será que ele vai gostar?

De algum secreto lugar me vem a força
para erguer a xícara, acender o cigarro,
até sorrir quando alguém me diz:
"Você hoje está com a cara ótima",
quando penso se não doeria menos
jogar-me de um décimo-primeiro andar.

XIX

Amado meu, agora morto,
postado do lado de lá da fronteira que nos seduzia,
mudo e quedo como se não existisses:
eu sei que existes,
intensamente, ardentemente existes,
feito e desfeito no fogo de um amor maior que o nosso
mas que nos abrange.

Amado meu, morto agora e para sempre vivo,
hás de ter ainda o intenso olhar que me entendia,
as curvas amorosas da boca que chamou meu nome,
as belas, inquietas mãos que ardiam nas minhas.
Ajuda-me agora, silencioso que estás,
a suportar a sobrevida
e a decifrar esse alto, intransponível muro que me cerca.

X

Nunca tivemos filhos juntos, e ele reclamava:
"Nosso amor merecia um filho ao menos.

"Nosso filho é a minha dor de hoje,
é a fulguração que nos deixava tontos,
é o novelo da memória que teço e reteço
nas minhas insônias.

Nosso filho é o meu tempo de agora
para falar do meu amado:
da sua força e sua fragilidade,
da sua indignação e seus prantos,
da sua necessidade de ser amado e aceito
como finalmente deve estar sendo, por inteiro,
na realização de todos os seus vastos desejos.

XI

O meu amor enveredou por sua morte
como quem vai a um encontro de amor:
impaciente.
Deixou-me este coração golpeado,
esta derrota.
Mas também ficou a claridade desses anos
e a sensação de que ele finalmente
vive o encontro de amor
que toda a devoção de minha vida não lhe poderia dar.
(Um dia, celebraremos juntos.)

XII

Se me tivessem amputado braços e pernas
e furado o coração com frias facas
e cegado meus olhos com ganchos
e esfolado a minha pele como a de um podre bicho
- nada doeria mais
que te saber morto, amado meu,
depositado
nesse irremediável poço de silêncio de onde não respondes.
(A não ser em sonho, quando me olhas
e tuas mãos tocam as minhas espalmadas,
abertas, feridas, vazias.)

XIII

O meu amado morreu:
preciso viver sua morte até o fim.
Morreu sem que se instalasse entre nós cansaço e banalidade.
Talvez tenha morrido na medida certa
para nada se desgastar.
Dele me vem a dor, mas também a ternura,
a claridade que me permite ver
em todos os rostos o seu rosto
em todos os vultos o seu vulto
e ouvir em todos os silêncios
o seu inesperado riso de criança

XIV

Estranha a vida:
fico tangendo meus dias
como um rebanho de ovelhas desordenadas
nessa triste e fria cidade de Porto Alegre
onde ele gostava de estar
olhando o pôr-do-sol e vendo amigos.
"Morrer é tomar um porre de não-desejo"
dizia o meu amado, que era um homem desejoso:
desejava a vida, desejava a morte, desejava a justiça,
desejava a eternidade e a paz.

Estranha a vida:
quando releio uma frase sua,
"viver é modular a morte",
em sangue e dor preparo a minha ida.

Estranho também esse amor,
com hora marcada para a mutilação
da morte, o minuto acertado,
e o fim consultando o relógio
para nos golpear.

Estranho esse amor de agora,
com meu amado atrás de um espelho baço
onde às vezes penso divisar seu vulto
como num aquário.
Enrolado em silêncio,
mais que nunca o meu amor comanda a minha vida.

XV

Não falem alto comigo:
andem sempre na ponta dos pés.
Principalmente, não me toquem.
Finjam que não vêem se tenho um jeito absorto,
se nem sempre entendo as perguntas
com a rapidez de antigamente,
se pareço fatigada
e sem graça como nunca fui.

Façam silêncio ao meu redor.
Não me interessa nada o cotidiano nem o místico.
Não quero discutir o preço do mercado
nem os grandes mistérios da eternidade.

XVI

Levo meu amado no peito
como quem carrega nos braços para sempre
uma criança morta.

XVII

Amado meu, que tanto ensinaste
de mim a mim mesma, e do mundo
a quem o conhecia pouco:

quando se desfizer escura a noite desta perda,
quero enxergar pelos teus olhos,
amar através do teu amor
as coisas que me restaram.

Amado meu, vivo em mim para sempre,
apesar da ruga a mais
e do olhar mais triste,
devo-te isto:
voltar a amar a vida
como agora amas, inteiramente,
a tua morte.

O poema foi escrito para Hélio Pellegrino (1924-1988).

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Vinícius de Moraes









"Poética"

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.

Mário de Sá-Carneiro, "Dispersão".

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projecto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... mas recordo.

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...)

E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas p'ra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...

.......................................
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...
.......................................

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Manabu Mabe, "Rio Pinheiros"

Konstantinos Kaváfis












"Lembra, corpo"
Corpo, lembra não só quanto foste amado,
não somente os leitos em que deitaste,
mas também aqueles desejos que por ti
brilhavam nos olhos claramente,
e que tremiam na voz – e que algum
obstáculo fortuito frustrou.
Agora que tudo já está no passado,
parece, quase, que àqueles desejos também
tu te entregaste – como eles brilhavam,
lembra, nos olhos que te contemplavam;
como tremiam na voz, por ti, lembra, corpo.

Tradução de Ísis Borges da Fonseca.

Miguel Torga, "Exortação"

Em nome do teu nome,
Que é viril,
E leal,
E limpo, na concisa brevidade
— Homem, lembra-te bem!
Sê viril,
E leal,
E limpo, na concisa condição.
Traz à compreensão
Todos os sentimentos recalcados
De que te sentes dono envergonhado;
Leva, dourado,
O sol da consciência
As íntimas funduras do teu ser,
Onde moram
Esses monstros que temes enfrentar.
Os leões da caverna só devoram
Quem os ouve rugir e se recusa a entrar.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Dario Mecatti, "Mediterrâneo".

Hilda Hilst, "É crua a vida ..."

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.

Donizete Galvão, "O grito".

O porco guincha
e sob a pata dianteira
sai a golfada de sangue
que enche a bacia.

Horas depois,
pronto o chouriço,
comemos o sangue preto,
as tripas, o grito.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Volpi, "Bandeiras e Mastros"

Mário de Andrade, "Quarenta Anos".

A vida é para mim, está se vendo,
Uma felicidade sem repouso;
Eu nem sei mais se gozo, pois que o gozo
Só pode ser medido em se sofrendo.

Bem sei que tudo é engano, mas sabendo
Disso, persisto em me enganar... Eu ouso
Dizer que a vida foi o bem precioso
Que eu adorei. Foi meu pecado... Horrendo

Seria, agora que a velhice avança,
Que me sinto completo e além da sorte,
Me agarrar a esta vida fementida *.

Vou fazer do meu fim minha esperança,
Oh sono, vem!... Que eu quero amar a morte
Com o mesmo engano com que amei a vida.

* Fementida  - Adj.: Infiel, dolosa, enganosa, pérfida.

José Paulo Paes, "Madrigal".

Meu amor é simples, Dora,
Como a água e o pão.

Como o céu refletido
Nas pupilas de um cão.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Manoel Santiago, "Ilha do Governador".

Ferreira Gullar














"Praia do Caju"

 Escuta:
o que passou passou
e não há força
capaz de mudar isto.

Nesta tarde de férias, disponível, podes,
se quiseres, relembrar.
Mas nada acenderá de novo
o lume
que na carne das horas se perdeu.

Ah, se perdeu!
Nas águas da piscina se perdeu
sob as folhas da tarde
nas vozes conversando na varanda
no riso de Marília no vermelho
guarda-sol esquecido na calçada.

O que passou passou e, muito embora,
voltas às velhas ruas à procura.
Aqui estão as casas, a amarela,
a branca, a de azulejo, e o sol
que nelas bate é o mesmo
sol
que o Universo não mudou nestes vinte anos.

Caminhas no passado e no presente.
Aquela porta, o batente de pedra,
o cimento da calçada, até a falha do cimento. Não sabes já
se lembras, se descobres.
E com surpresa vês o poste, o muro,
a esquina, o gato na janela,
em soluços quase te perguntas
onde está o menino
igual àquele que cruza a rua agora,
franzino assim, moreno assim.
                    Se tudo continua, a porta
a calçada a platibanda,
onde está o menino que também
aqui esteve? aqui nesta calçada
se sentou?

E chegas à amurada. O sol é quente
como era, a esta hora. Lá embaixo
a lama fede igual, a poça de água negra
a mesma água o mesmo
urubu pousado ao lado a mesma
lata velha que enferruja.
Entre dois braços d’água
esplende, a croa do Anil. E na intensa
claridade, como sombra,
surge o menino
correndo sobre a areia. É ele, sim,
gritas teu nome: “Zeca,
Zeca!”
                    Mas a distância é vasta
tão vasta que nenhuma voz alcança.

O que passou passou.
Jamais acenderás de novo
o lume
do tempo que apagou.

domingo, 10 de outubro de 2010

Cesário Verde, "Contrariedades"



Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de falta de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve conta à botica!
Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopéia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais uma redacção, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras excepções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poema às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaconne.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua "coterie";
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exactos,
Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a "reclame", a intriga, o anúncio, a "blague",
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!

sábado, 9 de outubro de 2010

Schubert, "A Morte e a Donzela", 2 º Movimento, Andante con Moto, Parte I e II, The Alban Berg Quartet,

Parte II



Parte I

Água-forte de Hans Steiner, "A Figueira Branca".

Luís Miguel Nava, "Vulcão".

Aqui, onde a mão não
alcança o interruptor da vida, aqui
só brilha a solidão.
Desfazem-se as lembranças contra os vidros.

Aqui, onde a brancura
dum lenço é a brancura do infortúnio,

aqui a solidão
não brilha, apenas
se estorce.
A fome fala através das feridas.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Julia Galego

















 "Azinhagas"

Atrás da casa havia uma azinhaga.

No Inverno, as pedras soltas de granito dos muros
cobriam-se de musgo, de fetos
e de uma planta de folhas peltadas e carnudas
a que chamávamos filhós,
por se assemelharem aos tradicionais fritos de massa,
próprios da época do Natal.

Nalguns pontos dos muros,
cavalgavam silvas que,
no Verão,
nos proporcionavam a colheita das deliciosas amoras.

Provavelmente essa azinhaga já não existe,
engolida pelo alastramento da área urbana.

Lembro-me dela sempre que encontro outras azinhagas.

* Azinhagas em Portugal são caminhos estreitos entre muros ou cercas de varas entrelaçadas, fora do povoado.