quarta-feira, 27 de outubro de 2010
Manuel Bandeira entrevistado por Pedro Bloch em 1964.
Ninguém sabe explicar como aquele homem, castigado, tantos anos, pela doença, não amargou. Disse Mário de Andrade: "Eu fico espantado de como há certos homens no mundo! Tu, por exemplo. Essa sublime bondade inconsciente, bem no íntimo, de quem nem sabe que é bom." Vou além. Acho que Manuel Bandeira nem tem plena consciência de sua imensa envergadura de gente e poeta. Acho que, talvez, os quatro anos que viveu em sua terra, Recife, é que explicam, mais que os males, o homem de hoje. ("Sou bem-nascido, menino./Fui, como os demais, feliz./Depois, veio o mau destino/E fez de mim o que quis.")
Diante de mim está o gigante de nossa poesia: Manuel Bandeira, em seu modesto apartamento, atulhado de livros e calor humano, na Av. Beira-Mar, no Rio. Do bem que lhe querem todos, da ternura que desperta em quem dele se aproxima basta dizer que Mário de Andrade só o tratava de Manu ou Manuelucho; Rodrigo MeIo Franco de Andrade lhe deu o nome de Manula; Madale Blank, sua amiga de almoço de todo o dia, o trata de Mané. Até a morte da mãe era para ela. Neném. Creio que nunca ninguém teve tanto apelido, tanta gente querendo chegá-lo à sua amizade.
Do Recife tenho quatro anos de existência consciente, mas ali está a raiz de toda a minha poesia. Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida é que vejo o vazio dos últimos. ("Hoje não ouço mais vozes daquele tempo/Minha avó/Meu avô/Totônio Rodrigues; Tomásia/Rosa/Onde estão todos eles ?")
Meu nome todo é Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho. Fisicamente me pareço com mamãe (D. Francelina): míope, dentuça como eu; no resto sou como meu pai (engenheiro que conviveu no ministério com Machado de Assis).
Sabe, Pedro Bloch, que meu avô reprovou Castro Alves num exame? Eramos três irmãos. Os mais velhos (Antônio e Maria Cândida) já não existem.
Saí do Recife com dois anos. Deles nada recordo. Viemos pro Sul e com seis (quando da revolta da Esquadra, em 1892) meu pai nos levou de volta pra casa de meu avô. Fui com seis e voltei ao Rio com dez. Mas esses quatros anos ... Essa coisa de viver, na infância, num lugar e, depois, ser arrancado dele, isola essa vida dentro da vida da gente. ("A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado/Rua da União.../ Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância/Rua do Sol/ Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal.")
Papai, no Rio, não teve sorte. Aos quarenta anos passou por crise religiosa. Dele recordo com intensidade o dia em que exclamou olhando, pra mim, menino de seis anos: "E impossível que este menino não saiba ler." Trancou-se comigo na biblioteca, por duas horas. Saí de lá lendo. Outra coisa que me tocou fundo foi ouvi-lo exclamar ao morrer: "Meu Jesus Cristinho!" E eu conto no poema: "Mas Jesus Cristo nem se "incomodou!"
Foi o livro de D' Amicis uma das coisas que mais me marcaram. Ali descobri a literatura e a vida. Isto no Recife. No Rio, eu e meu irmão fomos fazer exame para o Ginásio Nacional (Pedro II). Na casa das Laranjeiras, onde morávamos, nunca faltou pão; mas a luta era dura. Nunca briguei com moleque da rua, mas me impregnei do realismo do povo. (Mais tarde conheci a Lapa.) Comecei fazendo versos pretensamente humorísticos. Com a puberdade, versos de amor. Meus namoros eram sempre calados, namoro de caboclo. E eu, menino ainda, vivia amando moças já feitas. Um dia perguntei a meu tio se Vésper rimava com Cadáver. Ele disse que não. Descobri, mais tarde, que meu ouvido é que estava certo. Tanto se rima consoantemente como toantemente e de outras maneiras. Aprendi que a boa rima é a que traz ao ouvido uma sensação de surpresa, não de raridade, senão de uma espécie de resolução musical. Como nas Pombas: "Raia, sanguínea e fresca, a madrugada." Entre outros eu tinha como colegas do Pedro II o Prof. Nascentes, o Artur Moses, o Souza Silveira, o Lopes da Costa. Acabei bacharel em Letras.
Como ainda não havia um bom curso de arquitetura no Rio (eu queria ser arquiteto) fui estudar em São Paulo. Aos 18 anos, nas férias do 1º ano para o 2° da Politécnica, fiquei tuberculoso. Durante muitos anos vivi provisoriamente. Hemoptises, tosse, febre, desesperança. Andei de ceca em meca, alopatia, homeopatia, e em junho de 1913 segui para um sanatório suíço (Clavadel). Meu pai ganhava um conto e novecentos. A passagem, ida e volta, custava 900 mil-réis. O sanatório, com balcão e quarto, 360 mil-réis que valiam 600 francos suíços. Lá fiquei até outubro de 1914. Com a guerra o franco dobrou e eu não pude continuar lá. Foi quando perguntei ao Dr. Bodmer: "Quanto tempo de vida o senhor me dá?" A resposta: "O senhor tem lesões teoricamente incompatíveis com a vida, mas nenhum sintoma alarmante. Pode durar uns cinco... dez anos." Calcule! ("Então, doutor!, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.")
Na Suíça, conheci, como companheiro de sanatório, o poeta Paul Eluard e Gala, que veio a ser sua esposa e, atualmente, é a mulher de Salvador Dali.
Voltei. Mal tinha dado pra conhecer Paris, por alto na ida. Só 44 anos depois pude voltar à Europa. Aqui no Rio eu ficava até tarde, deitado na praia, no Leme, diante das recriminações de todos. Em 1917, publiquei meu primeiro livro (A Cinza das Horas, 200 exemplares que me custaram 300 mil-réis). Em Carnaval, depois, eu dizia: "Quero beber! Cantar asneiras!" Pois um crítico observou: "Conseguiu plenamente o que queria." Nestes dois volumes e em Ritmo Dissoluto estão poemas feitos em estado de lucidez. A partir de Libertinagem é que me resignei à condição de poeta quando Deus é servido. Tomei cedo consciência de que era um poeta menor, consciência de minhas limitações. Devo dizer que aprendi muito com os maus poetas: o que devemos evitar.
Ao voltar da Suíça eu era um inválido. Basta dizer que papai passou pra mim o montepio de 500 mil-réis. Depois dos cinqüenta é que eu pude começar a trabalhar, a ganhar a vida. Fiscal de ensino. Depois fui lecionar Literatura no Pedro II, até 1942. San Tiago Dantas, posteriormente, me convidou para ensinar Literatura Hispano-Americana na Faculdade de Filosofia, onde permaneci até 1956. Traduzi muito, fiz muita crônica, crítica musical, crítica de arte. Mas, durante a minha doença, dependi de meu pai (até que morreu em 1921) e do montepio. Por falar em crítica musical, ocorre-me que sempre fui muito sensível ao desenho e à música. Na verdade, faço versos porque não sei fazer música. Quando morei na Rua do Curvelo conheci melhor Ribeiro Couto, que me aproximou da nova geração literária do Rio e de São Paulo: Ronald, Alvaro Moreira, Di Cavalcanti, Mário e Oswald de Andrade. Em 1921 Mário veio ler aqui sua Paulicéia Desvairada. Foi a última influência que recebi. O que veio depois me encontrou calcificado. Também não quis participar da Semana da Arte Moderna. Pouco me deve o movimento. O que devo a ele é enorme. Mas eu falava de Ribeiro Couto, um dos responsáveis pela minha entrada para a Academia. No tempo da Rua do Curvelo era ele quem me ajudava a ajustar-me ao mundo dos sãos, porque a doença gerara em mim um sentimentalão.
Não. Nunca fui um antiacadêmico. O problema é que eu gostava de tomar minhas licenças com a língua (E eu digo a você, Bandeira: - Você não precisa pedir licença, a casa é sua). Não aceito que não se possa dizer "me dê isso", "me dê aquilo" se até o Laet dizia. ((Confesso que também tinha ojeriza pelo fardão.) Nada mais gostoso que "pra mim brincar". Todos os brasileiros deviam querer falar como os cariocas que não sabem gramática. "Ele já mo deu" ... é horrível! Horríveis também são quiçá e alhures. A Rua do Curvelo me ensinou muitas coisas. Foi ali que, vendo os moleques de rua, reaprendi os caminhos da infância. A mim sempre agradou o coloquial e até o baixo calão.
Você lembra? O menino Jesus: - "Quem sois tu?/O preto: - Eu sou aquele preto principá do centro do cafange do fundo do rebolo. Quem sois tu?/ - O menino Jesus: - Eu sou fio da Virge Maria/ O preto: Então como é fio dessa senhora obedeço."
Em 1921, papai morto, continuei vivendo com 500 mil-réis. Outro dia, fui comprar um queijo: custava 550! Em 1940, houve vaga na Academia, Ribeiro Couto voltou à carga. Eu, inspetor de ensino, tinha perdido o montepio: - os 500 mil-réis exatos com que a Academia me acenava. Juntei o meu desejo de segurança ao respeito pela Academia e venci o medo de conspurcá-la com os meus pronomes. (Fora dali, onde só tenho amigos diletos, faço programas e crônicas para a Rádio Ministério da Educação.)
Um dos mais chegados é o Rodrigo Melo Franco de Andrade. Almoço todos os dias com uma cara amiga, de sadios 84 anos, Madame Blank. Já ao Drummond eu quero um bem imenso, mas nunca sentei na mesa dele pra almoçar. Nem ele na minha. Nos admiramos muito, mas não temos convivência doméstica. (Foi Drummond quem disse de Bandeira: "O poeta melhor que nós todos, o poeta mais forte.")
A minha poesia tem tomado um aspecto, assim de preparação para a morte. Estou com 77, vou fazer 78 em abril. Nasci a 19 de abril de 1886. Me sinto cansado. Faço algumas outras coisas, mas só no chão da poesia piso com alguma segurança. Estou perdendo a curiosidade. Prefiro ficar em casa a viajar. Do que imaginei ver só a Ronda Noturna, de Rembrandt, ultrapassou a expectativa. As obras de arte, Vênus de Milo e o resto, de tão divulgadas, já não constituem mais surpresa. Não tenho a menor curiosidade pelo Oriente. Me sinto cem por cento Ocidental.
Bandeira fala em preparação para a morte, mas é o poeta mais vibrantemente vivo que se pode conhecer. Vejam a vitalidade, a modernidade de seu poema Maísa:
"Quem fala mais em Maísa a boca ou os olhos?/Os olhos e a boca de Maísa se estendem/os olhos dizem uma coisa e a boca da Maísa se condói/se contrai, se contorce como a ostra viva em que se pingou uma gota de limão./Maísa não é um corpo/Maísa são dois olhos e uma boca." Isto que Bandeira chama de preparação para a morte é simplesmente o sonho do poeta, a Pasárgada de: "Vou-me embora pra Pasárgada/Lá sou amigo do rei/Lá tenho a mulher que eu quero/Na cama que escolherei."
E o poeta escreveu: "Agora a morte pode vir - essa morte que espero desde os dezoito anos; tenho a impressão que ela me encontrará como em Consoada: casa limpa, mesa posta, cada coisa em seu lugar."
"A vida é um milagre./Cada flor,/Com sua forma, sua cor, seu aroma,/Cada flor é um milagre./Tudo é milagre. Tudo menos a morte./Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres."
Posso dizer que pouco se me dá, quando morrer, morrer completamente para sempre na minha carne e na minha poesia. Entretanto, já não será possível, para alguns de meus versos, aquela serena paz da morte absoluta, não por virtude própria, mas por culpa de Villa-Lobos (o primeiro a musicar verso meu), Mignone, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez, Jaime Ovalle, Radamés e tantos outros. Gosto de ser traduzido, de ser musicado, de ser fotografado. Criancice? Deus me conserve minhas criancices.
"O que não tenho e desejo/É que melhor me enriquece./Tive uns dinheiros - perdi-os.../Tive amores - esqueci-os.../Mas no maior desespero/Rezei - ganhei essa prece./Vi terras da minha terra./Por outras terras andei/Mas o que ficou marcado/No meu olhar fatigado/Foram terras que inventei./Gosto muito de crianças:/Não tive um filho de meu./Um filho!.. Não foi de jeito .../Mas trago dentro do peito/Meu filho que não nasceu./Criou-me, desde eu menino/Para arquiteto meu pai./Foi-se-me um dia a saúde.../Fiz-me arquiteto? Não pude!/Sou poeta menor, perdoai!/Não faço versos de guerra./Não faço porque não sei/Mas num torpedo-suicida/Darei de bom grado a vida/Na luta em que não lutei."
Já em 1912, em Teresópolis, Bandeira contemplava um mundo desabitado, enfrentando o mistério do infinito e de Deus:
"Assim deverá ser a natureza/um dia
Quando a vida acabar e, astro/apagado, a Terra
Rodar sobre si mesma estéril/e vazia."
Espiritualmente ... minha filosofia é a de Einstein. "Minha religião - disse ele - consiste numa humilde admiração pelo espírito superior e sem limites que se revela nos menores detalhes que possamos perceber com nossos frágeis espíritos. Essa profunda convicção sentimental da presença de uma razão poderosa e superior revelando-se no incompreensível universo -eis a minha idéia de Deus." Quando li isto, disse comigo mesmo: "E exatamente o que eu sinto!" Não compreendo a negação absoluta de Deus. Como é que veio essa coisa que não começa nem acaba? Tempo infinito ... Espaço infinito ... Uma coisa absurda que, no entanto, existe!...
Não sei por que, hoje em dia, tenho pudor de fazer poemas de amor -confessa-me Bandeira, esquecido de que poeta não tem idade e que lhe é permitido ter todas - Muitas vezes, isto se reflete na minha poesia. Não digo tudo, por discreto e a muitos parece hermético. É como se não quisesse que os outros entrassem na minha confidência, no meu segredo. ("Um dia vi uma moça nuinha no banho/ Fiquei parado o coração batendo/Ela se riu/Foi meu primeiro alumbramento." "Teu corpo claro e perfeito/Teu corpo de maravilha/Quero possuí-lo no leito/ Estreito da redondilha..." - "No pensamento, meu amor, tu vives nua/ - Toda nua, pudica e bela, nos meus braços."
Amei, sim. Mas casar não pude. Primeiro era a saúde. Depois... Minhas finanças. Meus amores não podiam levar-me ao casamento com quinhentos mil-réis de montepio.
Não vou a Recife há mais de 30 anos. A princípio tinha vontade de ir mas não podia... Hoje ... (Bandeira fita de olhos agudos sua infância na Rua da União.) Olhe, você lembra de quando quiseram colocar meu busto na minha terra? "Homenagem a Bandeira?" - protestaram alguns. "Mas se ele nem gosta daqui! Nem vem cá!" Meu caro, o Recife é a constante de tudo o que sou. Escreveu Bandeira em Itinerário de Pasárgada: - Está aí roçando bravura a chamada geração de 45; há nela uma meia dúzia de talentos que não me toleram, nem como poeta, nem como homem. Dou-Ihes razão porque eu "positivamente não gosto de mim". Mas eles acabarão gostando; sei, por experiência própria, que, no Brasil, todo sujeito inteligente acaba gostando de mim.
Dentro de poucos dias Bandeira atinge os seus 78 anos, em plena forma intelectual. Miopia, surdez, uma certa angústia ao dormir, não lhe cortam a comunicabilidade. Ao contrário: domina-se facilmente, facilmente se refaz de tristeza ou de sombra.
Olho Bandeira e sinto que sua evocação do Recife lhe é tão cara, tão profunda, que ele mesmo ignora o medo que tem de novo encontro com aquelas ruas, aqueles caminhos, aquelas pontes e aquelas casas, o Capiberibe - Capibaribe. Seria emoção demais para seu coração de bom e de poeta. Mas vendo-o, neste instante, não sei quanto não daria pra ver seus olhos olhando de novo a "Rua da União" de sua meninice, fingindo não sentir aquela avalanche de ternura e saudade debruçadas na alma. Tenho a impressão de que Bandeira, gênio da nossa poesia, orgulho de todos nós, perderia o pudor que o acomete agora e choraria um pranto longo de menino que não pode mais brincar de chicote-queimado. Mas o pranto pronto lhe faria bem. E ele voltaria sonhando, novamente, o Recife dos quatro anos que se repetiram, sempre, nos 78 do poeta, numa dízima periódica emocional: 444444... E o nosso Bandeira, que vive arrumando suas malas para Pasárgada, deixaria escapar, num quase sem querer, renovando sua infância, revivendo seus planos, projetando futuros:
"Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei."
- Disse o poeta - é onde podemos viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar... O Recife de sua infância sempre foi, é e será a Pasárgada de Manuel Bandeira, o poeta do Brasil.
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