terça-feira, 26 de novembro de 2013

Hilda Hilst, "Poemas Malditos, Gozosos e Devotos"

O conjunto dos "Poemas Malditos, Gozosos e Devotos" são vinte e um poemas onde Hilda Hilst se dirige a Deus.
Ela tem uma leitura cristã, crê nele, mas é uma relação contraditória, onde convivem a devoção, a dúvida, a sedução e a heresia.
Os poemas foram publicados pela primeira vez em 1984.

Farei uma seleta de certos versos de cada um dos vinte e um poemas.


I
..........
Pés burilados
Luz-alabastro
Mandou seu filho
Ser trespassado

Nos pés de carne
Nas mãos de carne
No peito vivo. De carne.

Cuidado.
............

II
.................
Se tu é água
É tocha. É máquina
Poderosa se és rocha.

Um olfato que aspira.
Teu rastro. Um construtor
De finitudes gastas.

É Deus.
Um sedutor nato.
..........

III
................
Caio sobre teu colo.
Me retalhas.
Quem sou?
Tralhas, do teu divino humor.
.................

IV  (integral)

Doem-te as veias?
Pulsaram porque fizeste
Do barro os homens.
E agora dói-te a razão?
Se me visses
Panelas, cuias

E depois de prontas
Me visses
Aquecê-las a um ponto
A um grande fogo
Até fazê-as desaparecer

Dirias que sou demente
Louca?
Assim fizeste aos homens.

Me deste a vida e a morte
Não te dói o peito?
Eu preferia
A grande noite negra
A esta luz irracional da Vida.

V (integral)

Para um Deus, que singular prazer
Ser o dono de ossos, ser o dono de carnes
Ser o Senhor de um breve nada: o homem.
Equação sinistra
Tentando parecença contigo,. Executor.

O Senhor do meu canto, dizem?  Sim.
Mas apenas enquanto dormes.
Enquanto dormes, eu tento meu destino.
Do teu sono
Depende meu verso minha vida minha cabeça.

Dorme, inventado imprudente menino.
Dorme. Para que o poema aconteça.

VI

Se mil anos vivesse
Mil anos te tomaria.
Tu
E tua cara fria.
........................
Teu vício de palavras.
Teu silêncio de facas.
As nuas molduras
de tua alma.
...........................
Imagina-te a mim
A teu lado inocente
A mim, e a essa mistura
de piedosa, erudita, vadia
E tão indiferente.

Tu sabes.
Poeta buscando altura
nas tuas coxas frias.
...............

VII (integral)

É rígido e mata
Com seu corpo estaca.
Ama mas crucifica.

O texto é sangue
E hidromel.
E sedoso e tem garra
E lambe teu esforço

Mastiga teu gozo
Se tens sede, é fel.

Tem tríplices caninos.
Te trespassa o rosto
E chora menino
Enquanto agonizas.

É pai, filho, passarinho.

Ama. Pode ser fino
Como um inglês.
É genuíno. Piedoso.
Quase sempre assassino.
É Deus.

VIII (integral)

É neste mundo que te quero sentir
É o único que sei. O que me resta.
Dizer que vou te conhecer a fundo
Sem as bênçãos da carne, no depois,
Me parece a mim magra promessa.
Sentires da alma? Sim. Pode, ser prodigiosos.
Mas tu sabes da delícia da carne.
Dos encaixes que inventaste. De toques.
Do formoso das hastes. Das corolas.
Vês como fico pequena e tão pouco inventiva?
Haste. Corola. São palavras róseas. Mas sangram.

Se feitas de carne.

Dirás que o humano desejo
Não te percebe as fomes. Sim, meu Senhor,
Te percebo. Mas deixa-me amar a ti, neste texto
Com os enlevos
De uma mulher que só sabe o homem.

IX

Poderias ao menos tocar
As ataduras da tua boca?
Panos de linho luminescentes
Com que magoas
Os que te pedem palavras?
....................
Me permitirias te sentir a língua
Essa peça que alisa nossas nucas
E fere rubra
Nossas Humanas delicadas espessuras?
.................
Poderia, meu Deus, me aproximar?
Tu, na montanha.
Eu no meu sonho
de estar
Nos resíduos dos teus sonhos?

X

.......................
Busco tua boca de veios
Adentro-me nas emboscadas
vazia te busco
os meios.
Te fechas, teia de sombras
Meus Deus, te guardas.

A quem te procura, calas,
A mim que pergunto escondes
Tua casa e tuas estradas.
Depois trituras. Corpo de amantes
E amadas.

E buscas
A quem nunca te procura.

XI (integral)

Sobem-me as águas. Sobem-me as fúrias.
Fartas me sobem dor e palavras.
De vidro, nozes, de vinhas, me sabem dores
Tão tardas, tão carecentes.

Por que te fazes antigo, se nunca te demoraste
Na terra que preparei, nem nas calçadas
Da casa? Me vês e me pensas caça?
Ai, não. Não me pensas. Eu sim, nas noites

Que caminhadas. Que sangramento de passos.
Que cegueira pretendendo
Seguir teu próprio cansaço. Olha-me a mim.
Antes que eu morra de águas, aguada do que inventei.

XII

Estou sozinha se penso que tu existes.
Não tenho dados de ti, nem tenho tua vizinhança.
E igualmente sozinha se tu não existes.
De que adiantam
Poemas ou narrativas buscando

Aquilo, que se não é, não existe
Ou se existe, então se esconde
Em sumidouros e cimos, nomenclaturas

Naquelas não evidências
De matemática pura? É preciso conhecer
com precisão para mar? Não te conheço.
....................................

XIII

....................
Alguém me diz que esse alguém
eu gritava, a mim se parecia.
Mas era mais menina, percebes?
De certo modo mais velha
Como alguém que voltando de guerrilhas
Mulher das matas, filha das ideias.
......................

XIV (integral)

Se te ganhasse, meu Deus, minh'alma se esvaziaria?
Se a mim me aconteceu com os homens, por que não com Deus?
De início as lavas do desejo, e rouxinóis no peito.
E aos poucos lassidão, um desgosto de beijos, um esfriar-se

Um pedir que se fosse, fartada de carícias.
Se te ganhasse, que coisas ainda desejaria minh'alma?
Se ficasses? Que luz seria em mim mais luminosa?
Que negrume mais negro?

Não haveria mais nem sedução, nem ânsias.
E partirias. Em vazia de ti porque tão cheia.
Tu, em abastanças do sentir humano, de novo dormirias.

XV (integral)

Desenho um touro na seda.
Olhos de um ocre espelhado
O pelo negro, faustoso
Seduzo meu deus montado
Sobre este touro.

Desenhas Deus? Desenho o nada
Sobre este grande costado.
Um rio de cobre deságua
Sobre estas patas.
Uma mulher tem nas mãos
Uma bacia de águias

Buscando matar a sede
Daquele divino Nada.

O touro e a mulher sou eu.
Tu és, meu Deus,
A vida não desenhada
Da minha sede de céus.

XVI

Se eu já soubesse quem sou
Te saberia. Como não sei
Planto couves e cravos
e espero ver tua cara
Em tudo que semeei.
.................................

XVII (integral)

Penso que tu mesmo cresces
Quando te penso. e digo sem cerimônias
Que vives porque te penso.
Se acaso não te pensasse
Que fogo se avivaria não havendo lenha?
E se não houvesse boca
Por que o trigo cresceria?

Penso que o coração
Tem alimento na Ideia.
Teu alimento é uma serva
Que bem te serve á mão cheia.
Se tu dormes ela escreve
Acordes que te nomeiam.
Abre teus olhos, meu Deus.
Come de mim a tua fome.

Abre tua boca. E grita este nome meu.

XVIII

Se some, tem cuidado.
Se não some é fardo.
Cuida que ele não suma

Pois ficará mais pesado
Se sumir de tua alma.
................
Cuida que tal ideia
te tome. melhor um cheio de dentro
Que não conheces, um fartar-se
De um nada conhecimento

Do que um vazio de luto
Umas cascas sem os frutos
Pele sem corpo, ou ossos
Sem matérias que os sustente.
..............................

XIX

Teus passos somem
Onde começam as armadilhas.
Curvo-me sobre a treva que me espia.
......................
Então me deito sobre as roseiras.
Hei de saber o amor à tua maneira.

Me queimo em sonhos, tocando estrelas.

XX (integral)

Move-te. Desperta.
Há homens à tua procura.
Há uma mulher que sou eu.
A terra mora na Via-Láctea
Eu moro à beira de estradas
Não sou pequena nem alta.

Sou muito pálida
porque muito caminhei
Nas escurezas, no vício
De perseguir uns falares
Teus indícios.

Move-te. Tua aliança com os homens
Teu atar-se comigo
Tem muito de quebra e dessemelhança.
Muitos de nós agonizam.
A terra toda. Há de ser quase
brinquedo adivinhares
Onde reside o pó, onde reside o medo.

Não te demores.
Eu tenho medo: Poeira.

Move-te se te queres vivo.


XXI (integral)

Não te machuque a minha ausência, meu Deus,
Quando eu não mais estiver na Terra
Onde agora canto amor e heresia.
Outros hão ferir e amar
Teu coração e corpo. Tuas bifrontes
valias, mandarim e ovelha, soberba e timidez.

Não temas.
meus pares e outros homens
Te farão viver destas duas voragens:
Matança e amanhecer, sangue e poesia.

Chora por mim. pela poeira que fui
Serei e sou agora. pelo esquecimento
Que virá de ti e dos amigos,
Pelas palavras que te deram vida
E hoje me dão morte. Punhal, cegueira

Sorri, meu deus, por mim. De cedro
De mil abelhas tu és. Cavalo d'água
Rondando o ego. Sorri. Te amai sonâmbula
Esdrúxula, mas te amei inteira.

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