quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Carlos Drummond de Andrade

"Indicações"

Talvez uma sensibilidade maior ao frio,
desejo de voltar mais cedo para casa.
Certa demora em abrir o pacote de livros
esperado, que trouxe o correio.
Indecisão: Irei ao cinema ?
Dos três empregos de tua noite escolherás: nenhum.
Talvez certo olhar, mais sério, não ardente,
que posas nas coisas, e elas compreendem.

Ou pelo menos supões que sim. São fiéis as coisas
de teu escritório. A caneta velha. Recusas-te a troca-la
pela que encerra o último segredo químico, a tinta imortal.
Certas manchas na mesa, que não sabes se o tempo,
se a madeira, se o pó trouxeram consigo.
Bem a conheces, tua mesa. Cartas, artigos, poemas
saíram dela, de ti. Da dura substância,
do calmo da floresta partida elas vieram,
as palavras que achaste e juntaste, distribuindo-as.

A mão passa
na aspereza. O verniz que se foi. Não a árvore
que regressa. a estrada voltando. Minas que espreita,
e espera, longamente espera a tua volta sem som.
A mesa se torna leve, e nela viajas
em ares de paciência, acordo, resignação.
Olhai a mesa que foge, não a toqueis. É a mesa volante,
de suas gavetas saltam papeias escuros, enfim os libertados
                                                                                        [segredos
sobre a terra metálica se espalham, se amortalham e calam-se.

De novo aqui, miúdo território
civil, sem sonhos. Como pressentindo
que um dia se esvaziam os quartos, se limpam as paredes,
e pára um caminhão e descem carregadores,
e no livro municipal se cancela um registro,
olhas fundamente o risco de cada
coisa, a cor,
de cada face dos objetos familiares.
A família é pois uma arrumação de móveis, soma
de linhas, volumes, superfícies. E são portas,
chaves, pratos, camas, embrulhos esquecidos,
também um corredor, e o espaço
entre o armário e a parede
onde se deposita certa porção de silêncio, traças e poeira
que de longe em longe se remove ... e insiste.

Certamente faltam muitas explicações, seria difícil
compreender, mesmo ao cabo de longo tempo, porque um gesto
se abriu, outro se frustrou, tantos esboçados,
como seria impossível guardar todas as vozes
ouvidas ao almoço, ao jantar, na pausa da noite,
um ano, depois outro, e outros e outros,
todas as vozes ouvidas na casa durante quinze anos.
Entretanto, devem estar em alguma parte: acumularam-se,
embeberam degraus, invadiram canos,
enformaram velhos papéis,perderam a força,o calor,
existem hoje em subterrâneos, umas na memória, outras na argila
                                                                                        [do sono.

Como saber ? A princípio parece deserto,
como se nada ficasse, e um rio corresse
por tua casa, tudo absorvendo.
Lençóis amarelecem, gravatas puem,
a barba cresce, cai, os dentes caem,
os braços caem,
caem partículas de comida de um garfo hesitante,
as coisas caem, caem, caem,
e o chão está liso, é liso.
Pessoas deitam-se, são transportadas, desaparecem,
e tudo é liso, salvo teu rosto
sobre a mesa curvado; e tudo imóvel.

Nenhum comentário:

Postar um comentário