quarta-feira, 13 de setembro de 2017

José Paulo Paes, "Retrato"


Eu mal o conheci quando era vivo.
Mas o que sabe um homem de outro homem?
Houve sempre entre nós certa distância,
um pouco maior que a desta mesa onde escrevo
até esse retrato na parede
de onde ele me olha o tempo todo.
Para quê?
Não são muitas as lembranças que dele guardo:
a aspereza da barba no seu rosto quando eu o
beijava ao chegar para as férias.
O cheiro de tabaco em suas roupas;
O perfil mais duro do queixo
quando estava preocupado;
o riso reprimido até saltar-se na risada.
Falava pouco comigo.
Estava sempre noutra parte:
ou trabalhando ou lendo ou conversando
com alguém ou então saindo de viagem.
Só quando adoeceu e o fui buscar
em casa alheia e o trouxe para minha casa
estivemos juntos por mais tempo.
Mesmo então dele eu só conheci
a luta pertinaz contra a dor,
o desconforto, a inutilidade forçada,
os negaceios da morte já bem próxima.
Até o dia em que tive de ajudar
a descer-lhe o caixão à sepultura.
Aí então eu o soube mais que ausência.
Senti com minhas próprias mãos o peso
do seu corpo, que era o peso imenso do mundo.
Então o conheci. E conheci-me.
Ergo os olhos para ele na parede.
Sei agora, pai, o que é estar vivo.

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