quinta-feira, 28 de abril de 2011

Quinta e Sexta cartas, das "Cartas a um jovem poeta", de Rilke

Quinta carta

Roma,
29 de outubro de 1903
Caro e prezado senhor,

Recebi sua carta de 29 de agosto em Florença, e só agora - depois de dois meses - falo dela. Perdoe-me essa lentidão, mas não gosto de escrever cartas durante as viagens, porque para fazê-lo preciso de algo além dos apetrechos indispensáveis: um pouco de quietude e solidão e uma hora que não seja de completa estranheza.

Chegamos a Roma faz mais ou menos seis semanas, em um momento no qual a cidade ainda era aquela Roma vazia, quente, com a má reputação da febre. E essa circunstância, junto com outras dificuldades práticas de instalação, contribuiu para que a inquietude em torno de nós não tivesse fim e para que o lugar estrangeiro pesasse sobre nós com a carga da desambientação. Além disso, Roma (quando a pessoa ainda não conhece bem a cidade) tem um efeito opressivo de tristeza durante os primeiros dias: pela impressão de museu, sem vida e sombria, que a cidade exala, pela plenitude de seus passados recuperados e preservados com grande esforço (dos quais um pequeno presente se alimenta), pela indescritível supervalorização, apoiada por estudiosos e filólogos e imitada por viajantes convencionais, de todas essas coisas deslocadas e desgastadas que, no fundo, não passam de vestígios ocasionais de um outro tempo e de uma vida que não é a nossa e que não deve ser a nossa. Finalmente, depois de algumas semanas de uma diária atitude defensiva, o visitante se restabelece, embora ainda um pouco confuso, e diz para si mesmo: Não, aqui não há mais beleza do que em qualquer outro lugar, e todos esses objetos admirados ao longo de gerações, recuperados e completados por artesãos não têm significado algum, não são nada e não possuem coração nem valor algum - no entanto há muita beleza aqui, como há muita beleza em toda parte. Águas infinitamente vivas correm nos antigos aquedutos para a grande cidade e dançam nas diversas praças sobre conchas brancas de pedra, jorram em pias amplas e espaçosas, rumorejam durante o dia e aumentam o seu murmúrio noite adentro, pela madrugada grandiosa e estrelada, com ventos suaves. Há por aqui jardins, alamedas e escadas inesquecíveis, escadas projetadas por Michelangelo, escadas construídas segundo o modelo das águas que escorrem por córregos - amplo declive em que um degrau gera o outro como uma onda sai da outra. Por meio de tais impressões, uma pessoa se recolhe, recupera-se da multidão pretensiosa que fala e tagarela (como é expansiva!) e aprende devagar a reconhecer as poucas coisas em que perduram o que de eterno se pode amar e a solidão de que se pode tomar parte em silêncio.

Ainda estou morando na cidade, no Capitólio, não muito longe da mais bela estátua eqüestre que nos foi conservada da arte romana - a de Marco Aurélio. Mas em algumas semanas devo me mudar para um lugar simples e silencioso, uma antiga alterna (5), que fica perdida no fundo de um parque, protegida da cidade, de seu barulho e de seu acaso. Passarei ali todo o inverno, alegrando-me com uma grande quietude, da qual espero receber de presente horas boas e produtivas...

De lá, onde estarei mais em casa, escreverei para o senhor uma carta maior, na qual falarei também do que me escreveu. Hoje preciso lhe dizer apenas (e talvez seja errado não ter feito isso antes) que o livro anunciado em sua carta (que deveria conter trabalhos seus) não chegou aqui. Ele foi remetido de volta ao senhor, talvez de Worpswede? (Pois não é permitido remeter pacotes para o exterior.) Essa possibilidade é a mais favorável, e gostaria de vê-la confirmada. Espero que não se trate de um extravio - o que não seria uma exceção no caso do correio italiano, infelizmente.

Teria sido um prazer receber esse livro (como tudo aquilo que vem do senhor); e quanto aos versos que venham a ser escritos enquanto isso, sempre os lerei (caso o senhor me confie os poemas) e acolherei da melhor maneira que puder.

Com felicitações e cumprimentos.

Seu,
Rainer Maria Rilke


Sexta carta

Roma,
23 de dezembro de 1903
Meu caro senhor Kappus,

O senhor não deve ficar sem um cumprimento meu quando o Natal se aproxima e, no meio da festa, sua solidão pesa mais do que nunca. Mas se perceber então que ela é grande, alegre-se com isso; pois o que (pergunte a si mesmo) seria uma solidão sem grandeza? Existe apenas uma solidão, e ela é grande, nada fácil de suportar. Acabam chegando as horas em que quase todos gostariam de trocá-la por uma união qualquer, por mais banal e sem valor que seja, trocá-la pela aparência de uma mínima concordância com o próximo, mesmo que com a pessoa mais indigna... No entanto, talvez sejam justamente essas as horas em que a solidão cresce, pois o seu crescimento é doloroso como o crescimento de um menino e triste como o início da primavera. Mas isso não deve confundi-lo. O que é necessário é apenas o seguinte: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo e não encontrar ninguém durante horas, é preciso conseguir isso. Ser solitário como se era quando criança, quando os adultos passavam para lá e para cá, envolvidos com coisas que pareciam importantes e grandiosas, porque esses adultos davam a impressão de estarem tão ocupados e porque a criança não entendia nada de seus afazeres.

E um dia, ao percebermos que suas ocupações são mesquinhas, que suas profissões são enrijecidas e não estão mais ligadas à vida, por que não olhar para eles como uma criança observa algo de estranho, a partir da profundeza do próprio mundo, da amplitude da própria solidão, que é ela mesma um trabalho, um cargo e uma profissão? Por que se desejaria trocar o sábio não-entendimento de uma criança pela atitude defensiva e pelo desprezo, uma vez que o não-entendimento é estar sozinho, mas a atitude defensiva e o desprezo são participações naquilo de que, com esses recursos, as pessoas querem se afastar?

Pense, meu caro, no mundo que o senhor leva dentro de si, então dê a esse pensamento o nome que quiser; pode ser lembrança da própria infância ou anseio do próprio futuro - apenas preste atenção no que surge a partir de dentro e eleve-o acima de tudo o que o senhor percebe em torno. Se um acontecimento mais íntimo é digno de todo o seu amor, é nesse acontecimento que o senhor deve trabalhar de algum modo, sem perder muito tempo nem muito esforço para esclarecer sua posição em relação aos outros homens. Quem é que lhe diz que o senhor tem uma posição? Eu sei, a sua profissão é dura e cheia de contradições que o afetam, e eu previa as suas queixas, já sabia que elas viriam um dia. Agora que vieram, não posso tranqüilizá-lo, posso apenas aconselhar que pondere se todas as profissões não são assim, cheias de exigências, cheias de animosidade contra o indivíduo, repletas do ódio daqueles que se conformaram, resignados e rabugentos, com sua obrigação insossa. O cargo com o qual o senhor tem de viver agora não é mais carregado de convenções, preconceitos e enganos do que todos os outros cargos; se há alguns que revelam uma liberdade maior, mesmo assim não existe nenhum que seja amplo e espaçoso, que se relacione com as grandes coisas de que a verdadeira vida é constituída.

Apenas o indivíduo solitário é como uma coisa submetida às leis profundas, e quando alguém sai de casa durante uma manhã que se inicia, ou olha para fora ao entardecer carregado de acontecimentos, quando sente o que acontece lá fora, qualquer cargo se desprende dele como de um morto, por mais que se encontre no meio da vida em sua plenitude. O que o senhor precisa enfrentar agora como oficial, caro senhor Kappus, é algo que seria sentido em qualquer outra profissão, até mesmo caso, sem qualquer cargo, tivesse procurado sozinho um contato leve e independente com a sociedade, não seria poupado desse sentimento opressor. - É assim em toda parte; mas isso não é motivo para medo ou tristeza; se não há nenhuma comunhão entre os homens e o senhor, procure estar próximo das coisas, que não o abandonarão; ainda lhe restam as noites e os ventos que passam pelas árvores e sobre muitas terras; entre as coisas e os animais, tudo ainda é pleno de acontecimentos em que se pode tomar parte; e as crianças ainda são como o senhor era quando criança, igualmente tristes e igualmente felizes. Quando pensar em sua infância, viva de novo entre elas, de modo que os adultos não sejam nada e suas virtudes não tenham valor algum.

Se é algo angustiante e perturbador pensar em sua infância, na simplicidade e na quietude que a envolvem, porque o senhor não pode mais acreditar em Deus como o via antes, pergunte a si mesmo, caro senhor Kappus, se perdeu realmente Deus. O que ocorre não é que não chegou jamais a possuí-lo? Pois quando isso teria acontecido? O senhor acredita que uma criança pode sustentá-lo, se os homens só o suportam com esforço, se seu peso esmaga os anciãos? Acredita que alguém, caso realmente o possua, pode perdê-lo como se perde uma pedrinha qualquer, ou não percebe também que quem o tivesse só poderia ser perdido por ele? - Contudo, se o senhor reconhece que ele não se encontrava em sua infância, nem antes, se intui que Cristo foi iludido por sua nostalgia e Maomé foi enganado por seu orgulho - e se o senhor sente com temor que Deus também não existe agora, neste momento em que falamos dele -, então de que lhe vale sentir falta dele, que nunca existiu, como de algo passado, e procurá-lo como se o tivesse perdido?

Por que não pensar que ele é aquele que está por vir, aquele que se encontra diante da eternidade, o futuro, o derradeiro fruto de uma árvore cujas folhas somos nós? O que o impede de projetar seu nascimento nos tempos por vir, de modo a viver sua vida como um dia doloroso e belo na história de uma grande gravidez? O senhor não percebe como tudo o que acontece é sempre de novo um começo? E não poderia ser o começo dele, já que todo início é sempre tão belo? Se ele é o mais perfeito, o que há de pequeno não tem que estar antes dele, de maneira que ele possa se escolher a partir da plenitude e da superabundância? Ele não tem de ser o último, a fim de abarcar tudo? E qual sentido teríamos nós se aquele pelo qual ansiamos já tivesse existido?

Assim como as abelhas juntam o mel, reunimos o que há de mais doce em tudo e o construímos. É com o que há de menor, com o que há de insignificante (caso resulte do amor) que começamos, em seguida recorremos ao trabalho e ao descanso, a um silêncio ou a uma pequena alegria solitária, a tudo aquilo que fazemos sozinhos, sem participantes e colaboradores, assim damos início àquele que não presenciaremos, do mesmo modo que nossos antepassados não nos puderam presenciar. E no entanto eles, que se foram há muito tempo, se encontram em nós, como projeto, como carga pesando sobre o nosso destino, como sangue que corre em nós e como um gesto que desponta das profundezas do tempo.
Alguma coisa pode tirar a sua esperança de estar um dia nele, no mais distante, no mais extremo?
Caro senhor Kappus, festeje o Natal com esse sentimento piedoso de que talvez ele precise exatamente dessa angústia por parte do senhor, para começar. Esses dias de transição talvez sejam justamente o tempo em que tudo no senhor trabalha nele, como no passado, quando era criança, o senhor trabalhou nisso, sem fôlego. Seja paciente, sem má vontade, e pense que o mínimo que podemos fazer é não dificultar sua vinda mais do que a Terra dificulta a chegada da primavera quando ela se anuncia.
Fique alegre e seja confiante.

Seu,
Rainer Maria Rilke

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