quinta-feira, 28 de abril de 2011

Nona e Décima cartas, das "Cartas a um jovem poeta", de Rilke

Nona carta

Furuborg, Jonsered, Suécia,
4 de novembro de 1904
Meu caro senhor Kappus,

Nesse período que passou sem carta alguma, ora eu estava em viagem, ora tão ocupado que não pude escrever. Mesmo hoje me é penoso fazê-lo, porque já precisei escrever muitas cartas, de modo que minha mão está cansada. Se pudesse ditar, lhe diria muitas coisas, mas por escrito aceite poucas palavras em resposta à sua longa carta.
Penso com freqüência no senhor, e com tal concentração em meus votos, que isso certamente o ajudaria de alguma maneira. Mas duvido muito que minhas cartas possam servir de auxílio. Não me diga que sim, que elas são uma ajuda. Receba-as com tranqüilidade, sem muitos agradecimentos, e permita-nos esperar o que está por vir.

Talvez não adiante eu examinar palavra por palavra a sua carta, pois não há novidade no que poderia dizer acerca de sua tendência para a dúvida ou de sua incapacidade de harmonizar a vida interior e a exterior, ou acerca de tudo mais que o atormenta: é sempre o que eu já disse, sempre o desejo de que o senhor descubra em si mesmo paciência o bastante para suportar e simplicidade o bastante para acreditar. Que o senhor ganhe mais e mais confiança para aquilo que é difícil, para a sua solidão em meio aos outros. De resto, deixe a vida acontecer. Acredite em mim: a vida tem razão, em todos os casos.

Quanto aos sentimentos: são puros todos os sentimentos que o senhor acumula e eleva; impuro é o sentimento que abrange apenas um lado de seu ser e assim o desfigura. Tudo o que o senhor pode pensar a respeito de sua infância é bom. Tudo o que faz do senhor mais do que foi até agora em suas melhores horas é correto. Toda a intensificação é boa, caso esteja em todo o seu sangue, caso não seja embriaguez, nem obscuridade, mas alegria da qual se enxerga o fundo. Entende o que quero dizer?

Sua tendência para a dúvida pode se tornar uma boa qualidade se o senhor a educar. Ela precisa se tornar saber, precisa se tornar crítica. Pergunte a ela, a cada vez que quiser estragar algo seu, por que algo é feio, exija provas dela, teste-a, e o senhor talvez a deixe indecisa e confusa, talvez revoltada. Mas não desista, reivindique argumentos e aja assim, de modo atento e coerente, a cada vez. Dessa maneira chegará o dia em que sua dúvida se converterá de uma destruidora em sua melhor colaboradora - talvez a mais esperta no meio de tudo aquilo que trabalha na construção de sua vida.

Isso é tudo o que sou capaz de lhe dizer hoje, caro senhor Kappus. Mas lhe envio junto uma cópia de um pequeno poema que foi publicado no Deutsche Arbeit de Praga.(6) Nele continuo a lhe falar sobre a vida e a morte, sobre o quanto ambas são grandes e magníficas.
Seu,
Rainer Maria Rilke


Décima carta

Paris,
dia posterior ao Natal, 1908

O senhor deve saber, caro senhor Kappus, como estou alegre por ter em mãos esta sua bela carta. As notícias que me dá, reais e explícitas como são desta vez, parecem-me boas, e quanto mais considero o assunto, mais as percebo como sendo boas de fato. Na verdade, pretendia lhe escrever isso para a noite de Natal, mas, em função do trabalho variado ao qual dedico minha vida ininterruptamente neste inverno, a velha festa chegou tão depressa que mal tive tempo para tomar as providências necessárias, muito menos para escrever.
Entretanto pensei no senhor muitas vezes nesses dias festivos e fiquei imaginando como devia estar em seu forte solitário, entre as montanhas isoladas, sobre as quais se precipitam aqueles grandes ventos do sul, como se quisessem devorá-las.

Deve ser imenso o silêncio em que tais ruídos e movimentos têm lugar. E quando se pensa que a tudo isso ainda se acrescenta a presença do mar longínquo, ressoando talvez como o tom mais íntimo daquela harmonia pré-histórica, só se pode desejar ao senhor que, cheio de confiança e paciência, deixe trabalhar em sua pessoa a grandiosa solidão que não poderá mais ser riscada de sua vida. Essa solidão permanecerá e atuará, de modo decisivo e sutil, em tudo o que o senhor tem a experimentar e a fazer, como uma influência anônima, como o sangue de antepassados que percorre as nossas veias continuamente, compondo com o nosso próprio sangue o que somos de único e irrepetível a cada nova guinada de nossa vida.

Sim, alegra-me que o senhor tenha essa existência firme e manifesta, esse título, esse uniforme, esse serviço, tudo de palpável e delimitado que, em tais circunstâncias, com uma guarnição isolada e não muito numerosa, ganha seriedade e necessidade. Acima do caráter brincalhão e da vadiação que fazem parte da profissão militar, tudo isso significa uma aplicação diligente e não só permite, mas justamente educa uma atenção independente. O fato de nos encontrarmos em situações que trabalham em nós, que de tempos em tempos nos põem diante de grandes coisas da natureza, é tudo que se faz necessário.
Também a arte é apenas um modo de viver, e é possível se preparar para ela sem saber, vivendo de uma maneira ou de outra. Em tudo o que é real há mais proximidade dela do que nas falsas profissões semi-artísticas que, ao simular uma proximidade da arte, na prática negam e atacam a existência de qualquer arte. Por exemplo, todo o jornalismo faz isso, assim como quase toda a crítica e três quartos do que se chama e pretende ser chamado de literatura. Alegra-me, em suma, que o senhor tenha superado o perigo de cair nessa armadilha e se encontre em meio a uma realidade bruta, solitário e corajoso. Espero que o próximo ano o mantenha assim e o fortaleça.

Sempre seu,

Rainer Maria Rilke


Notas:

2. Para celebrar-me (1899), coletânea de poemas posteriormente publicada pelo autor com alterações sob o título Die frühen Gedichte [Os primeiros poemas] (1909). (N. T.)

3. Uma das novelas incluídas no livro Seis novelas, de (acobsen. (N. T.)

4. Richard Dehmel (1863-1920), escritor e poeta alemão ligado ao Naturalismo. (N. T.)

5. Tipo de construção da arquitetura italiana, trata-se de uma plataforma aberta em andar superior, normalmente sustentada por pilastras.(N.T.)

6. A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke, poema que foi escrito em 1899 e publicado em livro em 1906, tornou-se uma das obras mais conhecidas do autor. No Brasil, o texto foi traduzido por Cecília Meireles com base na versão em francês de Suzanne Kra. (N. T.)


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