quinta-feira, 28 de abril de 2011

Sétima e Oitava cartas, das "Cartas a um jovem poeta, de Rilke

Sétima carta

Roma,
14 de maio de 1904
Meu caro senhor Kappus,

Passou muito tempo desde que recebi sua última carta. Não me guarde rancor; primeiro foi o trabalho, depois uma perturbação e finalmente uma doença que me impediram de dar uma resposta que partisse (assim eu queria) para o senhor de dias calmos e agradáveis. Agora me sinto novamente um pouco melhor (o início da primavera, com suas transições cruéis e geniosas, também foi difícil por aqui) e venho cumprimentá-lo, caro senhor Kappus, e lhe dizer (o que gosto muito de fazer) uma ou outra coisa sobre sua carta, da melhor maneira que posso.

O senhor pode notar que copiei seu soneto, porque achei que ele é belo e simples, nascido em uma forma na qual se desenrola com tão tranqüila sobriedade. São os melhores versos que cheguei a ler de sua parte. E agora lhe dou essa cópia, porque sei que é importante e uma experiência inteiramente nova reencontrar um trabalho próprio escrito com a letra de outra pessoa. Leia os versos como se fossem alheios, então sentirá de maneira mais íntima o quanto são seus...

Foi uma alegria para mim ler muitas vezes esse soneto e sua carta; portanto agradeço pelos dois.

Não se deixe enganar em sua solidão só porque há algo no senhor que deseja sair dela. Justamente esse desejo o ajudará, caso o senhor o utilize com calma e ponderação, como um instrumento para estender sua solidão por um território mais vasto. As pessoas (com o auxílio de convenções) resolveram tudo da maneira mais fácil e pelo lado mais fácil da facilidade; contudo é evidente que precisamos nos aferrar ao que é difícil; tudo o que vive se aferra ao difícil, tudo na natureza cresce e se defende a seu modo e se constitui em algo próprio a partir de si, procurando existir a qualquer preço e contra toda resistência. Sabemos muito pouco, mas que temos de nos aferrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará.

É bom ser solitário, pois a solidão é difícil; o fato de uma coisa ser difícil tem de ser mais um motivo para fazê-la.

Amar também é bom: pois o amor é difícil. Ter amor, de uma pessoa por outra, talvez seja a coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a derradeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação. Por isso as pessoas jovens, iniciantes em tudo, ainda não podem amar: precisam aprender o amor. Com todo o seu ser, com todas as forças reunidas em seu coração solitário, receoso e acelerado, os jovens precisam aprender a amar. Mas o tempo de aprendizado é sempre um longo período de exclusão, de modo que o amor é por muito tempo, ao longo da vida, solidão, isolamento intenso e profundo para quem ama. A princípio o amor não é nada do que se chama ser absorvido, entregar-se e se unir com uma outra pessoa. (Pois o que seria uma união do que não é esclarecido, do inacabado, do desordenado?) O amor constitui uma oportunidade sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo, tornar-se um mundo, tornar-se um mundo para si mesmo por causa de uma outra pessoa; é uma grande exigência para o indivíduo, uma exigência irrestrita, algo que o destaca e o convoca para longe. Apenas neste sentido, como tarefa de trabalhar em si mesmos ("escutar e bater dia e noite"), as pessoas jovens deveriam fazer uso do amor que lhes é dado. A absorção e a entrega e todo tipo de comunhão não são para eles (que ainda precisam economizar e acumular por muito tempo); a comunhão é o passo final, talvez uma meta para a qual a vida humana quase não seja o bastante.

É aí que os jovens erram com freqüência, gravemente: pelo fato de eles (faz parte de sua natureza não ter paciência alguma) se atirarem uns para os outros quando o amor vem, derramando-se da maneira como são, em todo o seu desgoverno, na desordem, na confusão... Mas o que deve resultar disso? O que a vida deve fazer desse acúmulo de equívocos a que eles chamam de união e gostariam de chamar de sua felicidade? E o futuro?

Então cada um se perde por causa do outro e perde o outro e muitos outros que ainda desejariam surgir. Perdem-se as vastidões e as possibilidades, troca-se a aproximação e a fuga de coisas quietas, cheias de pressentimentos, por um desespero infrutífero do qual nada mais pode resultar; nada mais do que um pouco de náusea, desapontamento e pobreza, e com isso a salvação em uma das muitas convenções que estão disponíveis em grande número, como abrigos para todos nesse caminho extremamente perigoso. Nenhuma região da experiência humana é tão munida de convenções quanto essa: salva-vidas dos mais diversos, botes e bóias; refúgios de todos os tipos foram criados pela compreensão comum, pois ela estava inclinada a considerar a vida amorosa como um prazer, por isso tinha de torná-la fácil, barata, inofensiva e segura, como são os prazeres públicos.

De fato muitos jovens que amam de modo falso, ou seja, simplesmente entregando-se, sem preservar a solidão (a maioria não passará nunca disso), sentem a opressão de um erro e querem, de uma maneira própria e pessoal, tornar vivida e fértil a situação em que se precipitaram. Pois a sua natureza lhes diz que as questões do amor, de tudo o que é importante, são as que menos podem ser resolvidas abertamente, segundo um acordo qualquer; são perguntas íntimas feitas de uma pessoa para outra, perguntas que exigem em cada caso uma resposta nova, especial, apenas pessoal. Mas como é que eles poderiam encontrar uma saída em si mesmos, do fundo de sua solidão já desperdiçada, eles que se atiraram, que não se delimitam nem se diferenciam, e que portanto não possuem nada de próprio?

Os jovens tomam atitudes a partir de um desamparo comum e, quando querem evitar de boa vontade a convenção que se anuncia (por exemplo o casamento), caem nos braços de uma solução menos explícita, mas igualmente convencional e mortal. Pois tudo o que existe em torno deles é convenção; onde quer que se trate de uma comunhão precipitada e turva, todas as atitudes são convencionais. Toda relação resultante de tal mistura possui a sua convenção, mesmo que seja pouco usual (ou seja, imoral em sentido comum). Até a separação seria um passo convencional, uma decisão ocasional e impessoal sem força e sem frutos.

Quem observa com seriedade descobre que, assim como para a morte, que é difícil, também para o difícil amor não se reconheceu ainda nenhum esclarecimento, nenhuma solução, nem aceno, nem caminho. Para essas duas tarefas, que carregamos e transmitimos secretamente sem esclarecer, nunca se achará uma regra comum baseada em um acordo. Contudo, à medida que começamos a tentar a vida como indivíduos, essas grandes coisas se aproximam muito de nós, os solitários. As exigências que o difícil trabalho do amor impõe ao nosso desenvolvimento são sobre-humanas, e nós, como iniciantes, não podemos estar à altura delas. Mas se perseveramos e assumimos esse amor como uma carga e um período de aprendizado, em vez de nos perdermos em todo o jogo fácil e frívolo atrás do qual as pessoas se esconderam da mais séria gravidade de sua existência, talvez se perceba um pequeno avanço e um alívio para aqueles que virão muito depois de nós; e isso já seria muito.

No entanto, só chegamos no máximo a considerar objetivamente e sem preconceitos a relação de um indivíduo com outro indivíduo, e nossas tentativas de viver tais relacionamentos não têm nenhum modelo diante de si. Mesmo assim há, na própria passagem do tempo, algo que ajuda a nossa iniciação hesitante.

A menina e a mulher, em seu desdobramento novo e próprio, serão apenas de passagem imitadoras dos vícios e das virtudes masculinos e repetidoras das profissões dos homens. Depois da incerteza dessas transições, o que se revelará é que as mulheres só passaram por todos esses sucessivos disfarces (muitas vezes ridículos) para purificar sua própria essência das influências deformadoras do outro sexo. As mulheres, nas quais a vida se instala e habita de modo mais imediato, frutífero e cheio de confiança, no fundo precisam ter se tornado seres humanos mais maduros, mais humanos do que o homem, pois ele não passa de um ser leviano, que é mergulhado sob a superfície da vida pelo peso de um fruto carnal, que menospreza, arrogante e apressado, aquilo que pensa amar. Essa humanidade da mulher, realizada em meio a dores e humilhações, virá à tona quando ela tiver se livrado das convenções do exclusivamente feminino nas transformações de sua situação exterior. E os homens, que hoje não a sentem vir ainda, serão surpreendidos e derrotados por essa humanidade. Um dia (já agora, especialmente nos países nórdicos, os indícios confiáveis a favor disso são eloqüentes), um dia se encontrarão a menina e a mulher cujos nomes não significarão apenas uma oposição ao elemento masculino, mas algo de independente, algo que não fará pensar em complemento ou em limite, apenas na vida e na existência: o ser humano feminino.

Tal progresso transformará profundamente a vivência do amor, agora cheia de equívocos, trará alterações profundas (a princípio contra a vontade dos homens ultrapassados), configurando uma relação de ser humano com ser humano, não mais de homem e mulher. E esse amor mais humano (que se realizará de modo infinitamente delicado e discreto, certo e claro, em laços atados e desatados) será semelhante àquele que nós preparamos, lutando com esforço, portanto ao amor que consiste na proteção mútua, na delimitação e saudação de duas solidões.

E ainda isto: não creia que aquele grande amor que um dia se impôs ao senhor, quando garoto, perdeu-se. Será possível saber com certeza se, naquele tempo, não amadureceram grandes e belos desejos, propósitos dos quais o senhor vive ainda hoje? Acredito que aquele amor permanece tão forte e intenso em sua lembrança porque foi sua primeira solidão profunda, o primeiro trabalho íntimo com que o senhor elaborou sua vida.
Tudo de bom, caro senhor Kappus!

Seu,
Rainer Maria Rilke


Oitava carta

Soneto

Pela minha vida, sem amargura,
Sem suspiro, vai uma dor sombria.
Dos meus sonhos, a florescência pura
É a bênção de meu mais tranqüilo dia.
Às vezes cruza a trilha que acompanho
A grande questão. Sigo assim, frio,
Pequeno, como à margem de um rio
Do qual não ouso medir o tamanho.
Então me vem um lamento, um torpor
Cinza como, nas noites de verão,
Céus em que raro uma estrela se acende.
Minhas mãos tateiam por amor,
Porque gostaria de fazer uma oração
Mas ela escapa à minha boca quente...
(Franz Kappus)


Borgeby Gard, Flàdie, Suécia,
12 de agosto de 1904

Quero conversar de novo com o senhor por um momento, meu caro Kappus, embora não possa dizer quase nada que o ajude, quase nada de útil. O senhor teve muitas e grandes tristezas que passaram. E diz que mesmo esta passagem foi difícil e perturbadora. Mas, por favor, avalie se essas grandes tristezas não atravessaram o seu íntimo, se muita coisa no senhor não se transformou, se algum lugar, algum ponto do seu ser não se modificou enquanto o senhor estava triste. Só são ruins e perigosas as tristezas que carregamos em meio às pessoas para dominá-las; como doenças que são tratadas de modo superficial e leviano, elas apenas recuam e, após uma pequena pausa, irrompem ainda mais terríveis.

Essas tristezas se acumulam no íntimo e constituem a vida, constituem uma vida não vivida, desdenhada, perdida, de que se pode morrer. Se nos fosse possível ver além do alcance do nosso saber, e ainda um pouco além da obra preparatória do nosso pressentimento, talvez suportássemos as nossas tristezas com mais confiança do que nossas alegrias. Pois elas são os instantes em que algo de novo penetrou em nós, algo desconhecido; nossos sentimentos se calam em um acanhamento tímido, tudo em nós recua, surge uma quietude, e o novo, que ninguém conhece, é encontrado bem ali no meio, em silêncio.

Acredito que quase todas as nossas tristezas são momentos de tensão, que sentimos como uma paralisia porque não ouvimos ecoar a vida dos nossos sentimentos que se tornaram estranhos para nós. Isso porque estamos sozinhos com o estranho que entrou em nossa casa, porque tudo o que era confiável e habitual nos foi retirado por um instante, porque estamos no meio de uma transição, em um ponto no qual não podemos permanecer. É por isso que a tristeza também passa: o novo em nós, o acréscimo, entrou em nosso coração, alcançou seu recanto mais íntimo e mesmo ali ele já não está mais - está no sangue. E não percebemos o que houve. Seria fácil nos fazer acreditar que nada aconteceu, no entanto nos transformamos, como uma casa se transforma quando chega um hóspede. Não somos capazes de dizer quem chegou, talvez nunca cheguemos a saber, mas vários sinais indicam que o futuro entra em nós dessa maneira, para se transformar em nós muito antes de acontecer. Por isso é tão importante estar sozinho e atento quando se está triste: porque o instante aparentemente parado, sem nenhum acontecimento, no qual o nosso futuro entra em nós, está bem mais próximo da vida do que aquele outro ponto, ruidoso e acidental, em que ele acontece como que vindo de fora. Quanto mais tranqüilos, pacientes e receptivos formos quando estamos tristes, tanto mais profundo e mais firme o modo como o novo entra em nós, tanto mais fazemos por merecê-lo, tanto mais ele se torna o nosso destino. Assim, quando em um dia distante o novo "acontecer" (ou seja: sair de nós e aparecer para os outros), estaremos intimamente familiarizados com ele e nos sentiremos próximos. É necessário que isso ocorra. É necessário - e dessa maneira se dá aos poucos a nossa evolução - que não experimentemos nada de estranho, mas apenas aquilo que nos pertence há muito tempo. Já foi preciso modificar tantos conceitos relativos ao movimento, e também se aprenderá gradativamente que vem de dentro dos homens aquilo a que damos o nome de destino, não se trata de algo que entra neles partindo de fora. Muitos destinos não foram absorvidos pelos homens, não foram transformados enquanto viviam neles, só por isso eles não foram identificados como algo que era proveniente dos próprios homens. O acontecimento aparecia como algo tão estranho, que eles, em seu espanto confuso, julgavam que ele tinha surgido neles exatamente naquele instante, pois juravam nunca ter encontrado nada semelhante em si mesmos. Assim como, por muito tempo, os homens se enganaram a respeito do movimento do sol, eles ainda se enganam quanto ao movimento do porvir. O futuro permanece firme, caro senhor Kappus, mas nós nos movemos no espaço infinito.

Como isso não seria difícil para nós?

Voltando ao assunto da solidão, fica cada vez mais claro que no fundo ela não é nada que se possa escolher ou abandonar. Somos solitários. É possível iludir-se a esse respeito e agir como se não fôssemos. É tudo. Muito melhor, porém, é perceber que somos solitários, e partir exatamente daí. Com certeza acontecerá de sentirmos vertigens, pois todos os pontos em que nossos olhos costumavam descansar nos são tirados, não há mais nada próximo, e toda distância é uma distância infinita. Quem fosse retirado de seu quarto, quase sem preparação ou transição, e posto nas alturas de uma grande montanha, necessariamente sentiria algo semelhante: uma insegurança sem igual, um abandono ao inominável quase o aniquilariam. Ele pensaria estar caindo ou sendo arrastado pelos ares ou destroçado em mil pedaços. Seu cérebro precisaria inventar uma mentira enorme para captar e esclarecer a situação de seus sentidos. É assim que se modificam, para quem se torna solitário, todas as distâncias, todas as medidas; dessas modificações, há muitas que ocorrem repentinamente. Como para aquele homem no pico da montanha, surgem então imaginações inabituais e sensações estranhas, que parecem ultrapassar a medida do que se pode suportar. No entanto é necessário que vivamos também isso. Precisamos aceitar a nossa existência em todo o seu alcance; tudo, mesmo o inaudito, tem de ser possível nela. No fundo é esta a única coragem que se exige de nós: sermos corajosos diante do que é mais estranho, mais maravilhoso e mais inexplicável entre tudo com que nos deparamos. O fato de os homens terem sido covardes nesse sentido causou danos infinitos à vida; as experiências que são chamadas de "fenômenos", todo o suposto "mundo dos espíritos", a morte, todas essas coisas tão familiares para nós foram tão excluídas da vida, por meio de uma atitude cotidiana defensiva, que os sentidos com os quais poderíamos apreendê-las se atrofiaram. Sem falar em Deus. Mas o medo do inexplicável não empobreceu apenas a existência individual, também as relações entre as pessoas foram limitadas por ele, como que transferidas do leito de um rio de infinitas possibilidades para um local ermo da margem, onde nada acontece. Pois não é apenas a indolência que faz as relações humanas se repetirem de modo tão monótono e sem renovação de caso a caso, é a timidez diante de qualquer experiência nova, imprevista, para a qual não nos consideramos amadurecidos. Mas apenas quem está pronto para tudo, quem não exclui nada, nem mesmo o mais enigmático, viverá a relação com uma outra pessoa como algo vivo e irá até o fundo de sua própria existência. Pois, se pensamos a existência do indivíduo como um cômodo de dimensões maiores ou menores, revela-se que a maioria de nós só chega a conhecer um canto de seu quarto, um local perto da janela, uma faixa na qual se anda para lá e para cá. Contudo, é muito mais humana do que essa segurança aquela incerteza, cheia de perigos, que leva os prisioneiros dos contos de Poe a tatearem as formas de seus cárceres aterrorizantes e a não serem alheios aos horrores indizíveis de sua permanência ali. E no entanto nós não somos prisioneiros. Não há armadilhas e emboscadas armadas em torno de nós, nada que nos devesse angustiar ou perturbar. Estamos lançados na vida como no elemento ao qual correspondemos melhor, além disso nos tornamos, por meio de uma adaptação de milhares de anos, tão semelhantes a essa vida que, por um mimetismo afortunado, se nos mantivermos quietos, quase não nos diferenciaremos daquilo que nos cerca. Não temos motivo algum para desconfiar de nosso mundo, pois ele não está contra nós. Caso possua terrores, são nossos terrores; caso surjam abismos, esses abismos pertencem a nós; caso existam perigos, então precisamos aprender a amá-los. Se orientarmos a nossa vida segundo aquele princípio que nos aconselha a nos aferrarmos sempre ao que é difícil, o que agora nos parece ser muito estranho se tornará o que há de mais familiar e confiável. Como poderíamos esquecer aqueles antigos mitos que se encontram nos primórdios de todos os povos, os mitos sobre os dragões que, no último momento, transformam-se em princesas; talvez todos os dragões de nossa vida sejam princesas, que só esperam nos ver um dia belos e corajosos. Talvez todo terror não passe, em última instância, do desamparo que requer nossa ajuda.

Assim, não é preciso se assustar, meu caro Kappus, quando uma tristeza se ergue à sua frente, tão grande como o senhor nunca viu; quando uma inquietação passa por sobre as suas mãos e perpassa todas as suas ações, como a luz e as sombras das nuvens. É preciso pensar que acontece algo com o senhor, que a vida não o esqueceu, que ela segura sua mão e não o deixará cair. Por que o senhor pretende excluir de sua vida qualquer inquietude, qualquer dor, qualquer melancolia, sem saber o que essas circunstâncias realizam? Por que perseguir a si mesmo com estas perguntas: de onde pode vir tudo isso e para onde vai? No entanto, o senhor sabe que está em meio a transições e não desejaria nada mais do que se transformar. Se algum dos seus procedimentos for doentio, considere que a doença é um meio com o qual o organismo se liberta de corpos estranhos; por isso é apenas preciso ajudá-lo a estar doente, a assumir e ter sua doença por completo, pois é esse o seu curso natural. Agora acontece tanta coisa em seu íntimo, meu caro Kappus. É preciso ter paciência como um doente e ter confiança como um convalescente, pois talvez o senhor seja ambas as coisas. Mais ainda: o senhor também é o médico que tem de tratar de si mesmo. Mas em toda doença há muitos dias em que o médico não pode fazer nada além de esperar. E é isso, mais do que qualquer outra coisa, que o senhor, por ser seu próprio médico, precisa fazer agora.

Não se observe demais. Não tire conclusões demasiado apressadas daquilo que lhe acontece; deixe simplesmente as coisas acontecerem. Senão facilmente chegará a considerar com censuras (morais) o seu passado, que naturalmente tem participação em tudo aquilo com que o senhor se depara agora. Mas, dos erros, desejos e nostalgias de seu tempo de menino, o que atua agora em sua pessoa não é o que o senhor tem na memória e reprova. As relações extraordinárias de uma infância solitária e desamparada são tão difíceis, tão complicadas, submetidas a tantas influências, e ao mesmo tempo tão desligadas de todas as circunstâncias reais da vida, que quando surge um vício não se deve dar a ele sem mais o nome de vício. Em geral, é preciso ter muito cuidado com os nomes; muitas vezes é o nome de um crime que destrói uma vida, e não a própria ação, pessoal e inominada, que talvez fosse uma necessidade muito determinada dessa vida e pudesse ser acolhida sem esforço por ela. O dispêndio de energia só lhe parece tão grande porque o senhor superestima a vitória; não é ela a "grandiosa" realização que o senhor pretende ter conseguido, embora tenha razão com relação a seu modo de sentir; o grandioso é o fato de haver algo ali que o senhor pôde colocar no lugar daquele engano, algo de verdadeiro e real. Sem isso, mesmo a sua vitória teria sido apenas uma reação moral, sem um significado amplo, mas dessa maneira ela se tornou uma parcela da sua vida. Da sua vida, caro senhor Kappus, na qual penso fazendo tantos votos. Lembra-se de como essa vida aspirava desde a infância pelos "grandes"? Vejo como ela agora parte dos grandes para aspirar pelos maiores. É por isso que ela nunca deixa de ser difícil, mas também é por isso que nunca deixará de crescer.

Se ainda posso acrescentar algo, é o seguinte: não acredite que quem procura consolá-lo vive sem esforço, em meio às palavras simples e tranqüilas que às vezes lhe fazem bem. A vida dele tem muita labuta e muita tristeza e permanece muito atrás dessas coisas. Se fosse de outra maneira, nunca teria encontrado aquelas palavras.

Seu,
Rainer Maria Rilke

Nenhum comentário:

Postar um comentário