terça-feira, 17 de agosto de 2010

Drummond, "Boitempo"

Concordo quando boa parte da crítica diz que os melhores livros de Drummond são "O Sentimento do Mundo", "A Rosa do Povo" e "Claro Enigma".
Porém, agora, afastado de tudo por um problema de saúde, eu me entreguei ao "Boitempo".
E fiquei apaixonado.

É como uma biografia sentimental construída com fragmentos da memória.
É o Drummond rural e suas reminiscências, quase mitologias.
E não é o funcionário público Drummond lembrando de Minas no Rio de Janeiro, mas é o menino e o jovem Drummond lá em Itabira, em Belo Horizonte e em Friburgo, observando, aprendendo o mundo, e tentando entendê-lo, malgrado o peso do catolicismo e do patriarcalismo de uma sociedade muito tradicional, e ainda marcada pela monarquia e pela escravidão.

O título - BOITEMPO - é um neologismo com um achado poético complexo; - boi - já o remete à infância rural do poeta, e à passividade do animal condenado ao matadouro, enquanto que a terminação - tempo - dá a idéia de movimento, continuidade.

Alguns poemas têm vida própria, mas, em geral, por serem uma sucessão de antigos episódios da família e da sociedade que deixaram marcas na infância e adolescência do autor são melhor saboreados no seu conjunto. A princípio, dão uma enganosa impressão de descuido e falta de burilamento, mas depois compreende-se que não se pode burilar a vida realmente vivida, e, lentamente, seu mineiríssimo encanto vai nos transbordando de poesia.

Em alguns deles, Drummond utiliza palavras e expressões arcaicas que nos obrigam a recorrer ao dicionário, e a maioria tem uma sintaxe bastante coloquial, quase de conversa fiada (lembrando a escrita de Guimarães Rosa), como se estivesse nos contado alguns casos. Ou melhor, "causos".

A seguir, farei uma antologia dos que mais gostei, que irei completando com o tempo.



CUIDADO

A porta cerrada não abras.
Pode ser que encontres
o que não buscavas nem esperavas.
Na escuridão pode ser que
esbarres no casal
em pé tentando se amar
apressadamente.

Pode ser que
a vela que trazes na
mão te revele,
trêmula tua escrava nova,
teu dono-marido.

Descuidosa,
a porta apenas cerrada pode
te contar conto que
não queres saber.

BOITEMPO

Entardece na roça
de modo diferente.
A sombra vem nos cascos,
no mugido da vaca
separada da cria.
O gado é que anoitece
e na luz que a vidraça
da casa fazendeira
derrama no curral
surge multiplicada
sua estátua de sal,
escultura da noite.
Os chifres delimitam
o sono privativo
de cada rês e tecem
de curva em curva a ilha
do sono universal.
No gado é que dormimos
e nele que acordamos.
Amanhece na roça
de modo diferente.
A luz chega no leite,
morno esguicho das tetas
e o dia é um pasto azul
que o gado reconquista.

MANCHA

Na escada a mancha vermelha
que gerações seqüentes em vão
tentam tirar.

Mancha em casamento com a madeira,
subiu da raiz ou foi o vento
que a imprimiu no tronco, selo do ar.

E virou mancha de sangue
de escravo torturado — por que antigo
dono da terra? Como apurar?

Lava que lava, raspa que raspa e raspa,
nunca há de sumir
este sangue embutido no degrau.

PRIVILÉGIO

Chicote
de cabo de prata
lavrada
chicote
de status
não fica entre os outros
de couro e madeira
plebeus.
É guardado à parte
zelado ao jeito
dos bens de família.
Não risca no flanco
de qualquer animal.
Reserva-se todo
para uso exclusivo
da mulher fazendeira.
O fino cavalo branco
recebe orgulhoso
a chicotada argêntea
de mão feminina.

NOMES

As bestas chamam-se Andorinha, Neblina
ou Baronesa, Marquesa, Princesa.
Esta é Sereia,
aquela, Pelintra,
e tem a bela Estrela.
Relógio, Soberbo e Lambari são burros.
O cavalo, simplesmente Majestade.
O boi, Besouro,
outro, Beija-flôr,
e Pintassilgo, Camarão,
Bordado.
Tem mesmo o boi chamado Labirinto.
Ciganinha, esta vaca; outra, Redonda.
Assim pastam os nomes pelo campo,
ligados à criação. Todo animal
é mágico.

MULINHA

A mulinha carregada de latões
vem cedo para a cidade
vagamente assistida pelo leiteiro.
Para a porta dos fregueses
sem necessidade de palavra
ou de chicote.
Aos pobres serve de relógio.
Só não entrega ela mesma a cada um o seu litro de leite
para não desmoralizar o leiteiro.

Sua cor é sem cor.
Seu andar, o andar de todas as mulas de Minas.
Não tem idade - vem de sempre e de antes -
nem nome: é a mulinha do leite.
É o leite cumprindo ordem do pasto.

O BELO BOI DE CANTAGALO

Por trás da bossa do cupim
a cobra espreita
o belo boi de Cantagalo
trazido com que sacrifício
de longas léguas a pé e lama
para inaugurar novo rebanho
dos sonhos zebus do Coronel.

Por trás da bossa do cupim
a cobra, cipó inerte,
medita cálculo e estratégia
e o belo boi de Cantagalo
mal sente, sob o céu de Minas,
chegar o segundo relâmpago
em que o cipó se alteia, se arremessa
e fere e se enrodilha e aperta
e aperta mais, aperta sempre
e mata.

Já não cobrirá as doces vacas
ao seu destino reservadas
o belo boi de Cantagalo,
e queda ali,
monumento desmantelado.
A bossa jaz ao lado da outra bossa,
no imóvel sol do meio dia.

ANTOLOGIA

Guardo na boca os sabores
da gabiroba e do jambo,
cor e fragrância do mato,
colhidos no pé. Distintos.
Araticum, araçá,
ananás, bacupari,
jatobá... todos reunidos,
congresso verde no mato,
e cada qual separado,
cada fruta, cada gosto
no sentimento composto
das frutas todas do mato
que levo na minha boca
tal qual me levasse o mato.

DEPÓSITO

Há uma loja no sobrado
onde não há comerciante.
Há trastes partidos na loja
para não serem consertados.
Tamborete, marquesa, catre
aqui jogados em outro século,
esquecidos de humano corpo.
Selins, caçambas, embornais,
cangalhas
de uma tropa que não trilha mais
nenhuma estrada do Rio Doce.
A perna de arame do avô
baleado na eleição da Câmara.
E uma ocarina sem Pastor Fido
que à aranha não interessa tocar,
enorme aranha negra, proprietária
da loja fechada.

RECINTO DEFESO

Por trás da porta hermética
a sala de visitas
espera longamente
visitas.

O sofá recusa
traseiros vulgares.

As escarradeiras
querem cuspe fino.

Ai, espelho nobre
não miras qualquer.

Assim tão selada,
cheirando a santuário,
por que me negas, sala,
teu luxo ?

Por favor, visitas,
vinde, vinde rápido
para que eu também visite
a sala de visitas !

TRÊS GARRAFAS DE CRISTAL

Na sombra da copa, as garrafas
escondem sua cintilação.
Esperam jantares de família
que nunca se realizarão.

A verde-clara, a rósea, a que refrange
todos os tons da transparência,
sem vinho que as anime, calam
o menor tinido de existência.

Cristais letárgicos, como as belas
nos bosques, e as jóias nas malas,
antiquários ainda não nasceram
que virão um dia buscá-las.

TRÊS COMPOTEIRAS

Quero três compoteiras
de três cores distintas
que sob o sol acendam
três fogueiras distintas.

Não é para pôr doce
em nenhuma das três.
Passou a hora de doce,
não a das compoteiras,
e quero todas três.

É para pôr o sol
em igual tempo e ângulo
nas cores diferentes.
É para ver o sol
lavrando no bisel
reflexos diferentes.

Mas onde as compoteiras?
Acaso se quebraram?
Não resta nem um caco
de cada uma? Os cacos
ainda me serviam
se fossem três, das três.

Outras quaisquer não servem
a minha experiência.
O sol é o sol de todos
mas os cristais são únicos,
os sons também são únicos
se bato em cada cor
uma pancada única.

Essas três compoteiras,
revejo-as alinhadas
tinindo retinindo
e varadas de sol
mesmo apagado o sol,
mesmo sem compoteiras,
mesmo sem mim a vê-las,
na hora toda sol
em que me fascinaram.

O VINHO

O vinho à mesa, liturgia.

Respeito silencioso
paira sobre a toalha.
A garrafa espera o gesto,
o saca-rolha espera
o gesto que há de ser lento e ritual.

Ergue-se o pai, grão sacerdote
e prende a garrafa entre os joelhos,
gira regira a espira metálica
até o coração do gargalo.
Não faz esforço,
não enviesa,
não rompe a rolha.
É grave, simples,
de velha norma.

Nítido espoca
o ar libertado.
O vinho escorre
sereno, distribuindo-se
em porções convenientes:
copo cheio, os grandes;
a gente, dois dedos.

Bebe o pai primeiro.
Assume a responsabilidade
sacra.
Já podemos todos
saber que o vinho é bom
e piamente degustá-lo.

Mas quem diz que bebo solene ?
Meu pensamento é o saca-rolha,
o sonho de abrir a barrafa
como ele - só ele - abre.

A roxa mácula no linho,
pecado capital.
Esse menino
não aprende nunca a beber vinho ?
(Quero é aprender a abrir o vinho
e nem mesmo posso aspirar
ao direito de abrir o vinho
que incumbe ao pai e a mais ninguém
em nossa antiga religião).

ESTOJO DE COSTURA

Tesouro da vista.
Não apenas alfinetes
de bolinha colorida na ponta.
Há os alfinetes voadores,
mágicos, de pombas
na cabecinha.
Não duvido nada que eles adejem
no quarto vazio.
“Vamos dar uma volta? – os alfinetes se dizem –
até o beiral da igreja, e voltamos.”
“Não. O céu está cinzento,
o meu azul empalideceria.”
“Ora,ora...”
Saem voando. Ninguém percebe
as pombas minúsculas no espaço.
Mamãe entra no quarto,
revolve o estojo de costura:
“Você andou mexendo em minhas coisas, menino?"

COPO D'ÁGUA NO SERENO

O copo no peitoril
convoca os eflúvios da noite.

Vem o frio nevoso
da serra.
Vêm os perfumes brandos
do mato dormindo.
Vem o gosto delicado
da brisa.

E pousam na água.

CANTO DE SOMBRA

O canto de sombra e umidade no quintal.
Do muro de pedra escorre o fio d’água,
manso, no verde limoso, eternamente.
Uma gota e outra gota, no silêncio
onde só as formigas trabalham
e dorme um gato e dorme o futuro das coisas
que doerão em mim, desprevenido.
Crescem, rasteiras, as plantas sem pretensão
de utilidade ou beleza.
Tudo simples. Anônimo.
O sol é um ouro breve. A paz existe
na lata abandonada de conserva
e no mundo.

BRINCAR NA RUA

Tarde?
O dia dura menos que um dia.
O corpo ainda não parou de brincar
e já estão chamando da janela:
É tarde.

Ouço sempre este som: é tarde, tarde.
A noite chega de manhã?
Só existe a noite e seu sereno?

O mundo não é mais, depois das cinco?
É tarde.
A sombra me proíbe.
Amanhã, mesma coisa.
Sempre tarde antes de ser tarde.

LIQUIDAÇÃO

A casa foi vendida com todas as lembranças
todos os móveis todos os pesadelos
todos os pecados cometidos ou em vias de cometer
a casa foi vendida com seu bater de portas
com seu vento encanado sua vista do mundo
                seus imponderáveis
                por vinte, vinte contos.

ESCRITURAS DO PAI

Cada filho e sua conta,
em cada conta seu débito
que um dia tem de ser pago.
A morte cobrando dívidas
de que ninguém se lembrava,
mas no livro de escrituras,
vermelha, a dívida estava.
São as despesas da vida
em algarismos cifrados.
Estarás sempre devendo
tudo quanto te foi dado
e nem pagando até o fim
o menor vintém de amor
jamais te verás quitado,
pois no livro das escrituras
- capital, juros e mora -
teu débito está gravado.

IRMÃO, IRMÃOS

Cada irmão é diferente.
Sozinho acoplado a outros sozinhos.
A linguagem sobe escadas, do mais moço,
ao mais velho e seu castelo de importância.
A linguagem desce escadas, do mais velho
ao mísero caçula.

São seis ou são seiscentas
distâncias que se cruzam, se dilatam
no gesto, no calar, no pensamento?
Que léguas de um a outro irmão.
Entretanto, o campo aberto,
os mesmos copos,
o mesmo vinhático das camas iguais.
A casa é a mesma. Igual,
vista por olhos diferentes?

São estranhos próximos, atentos
à área de domínio, indevassáveis.
Guardar o seu segredo, sua alma,
seus objectos de toalete. Ninguém ouse
indevida cópia de outra vida.

Ser irmão é ser o quê? Uma presença
a decifrar mais tarde, com saudade?
Com saudade de quê? De uma pueril
vontade de ser irmão futuro, antigo e sempre?

REVOLTA

Não quero este pão — Quinquim atira
o pão no chão.

A mesa vira vidro, transparente
de emoção.
Quem ousa fazer isso em pleno almoço?
Pede castigo
o pão jogado ao chão.

O Castigador decreta:
Agora de joelhos você vai
apanhar este pão.
Vai trazer um barbante e amarrar
o pão no seu pescoço
e vai ficar o dia todo
de pão no peito, expiação.

Quinquim perdeu a força da revolta.
Apanha o pão, amarra o pão
no pescoço humilhado
e ostenta o dia todo
a condecoração.

O BEIJO

Mandamento: beijar a mão do Pai
às 7 da manhã, antes do café
e pedir a bênção
e tornar a pedir
na hora de dormir.

Mandamento: beijar
a mão divino-humana
que empunha a rédea universal
e determina o futuro.
Se não beijar, o dia
não há de ser o dia prometido,
a festa multimaginada,
mas a queda — tibum — no precipício
de jacarés e crimes
que espreita, goela escancarada.

Olha o caso de Nô.
Cresce demais, vira estudante
de altas letras, no Rio de outras normas.
Volta, não beija o Pai
na mão. A mão procura
a boca, dá-lhe um tapa,
maneira dura de beijar
o filho que não beija a mão sequiosa
de carinho, gravado
nas tábuas da lei mineira de família.

Que é isso? Nô sangra na alma,
a boca dói que dói
é lá dentro, na alma. O dia, a noite,
a fuga para onde? Foge Nô
no breu do não-saber, sem rumo, foge
de si mesmo, consigo,
e não tem saída
a não ser voltar,
voltar sem chamado,
para junto da mão
que espera seu beijo
na mais pura exigência
de terroramor.

Olha o caso de Nô.
7 da manhã.
Antes do café.

NOVA CASA DE JOSÉ

José entra resmungando no Paraíso.
Lança os olhos em torno:
-- Pensei que fosse maior.
O azul das paredes está desbotado.
Então é isto, o Céu?

Os anjos entreolham-se: Ah, José!
Estávamos tão contentes com sua vinda...
José procura o recanto menos luminoso
para encastelar-se com sua canastra:
-- Ninguém me bula nisto.
O serafim-ecônomo sorri:
-- Sossegue, José. Aqui todas as coisas
viram essência.
Você terá a essência de sua canastra.

A taciturnidade de José causa espécie aos velhos santos
que pulam carniça, brincam de roda:
-- Não quer vir conosco? A amarelinha
vai ser uma coisa louca...
Leve aceno de cabeça e: -- Obrigado
(entre dentes) é resposta de José.

São Pedro coça a barba: como fazer
José sentir-se realmente no Paraíso?
É sua casa natural, José foi bom,
foi ríspido mas bom.
Carece varrer do íntimo de José as turvas imagens
de desconfiança e solidão.
-- Não há outro remédio, suspira São Pedro.
Vou contar-lhe uma piada fescenina.

E José sorri ouvindo a piada.

O PREPARADO

Por que morreu aquele irmão
que há pouco brincava no quarto
sem qualquer signo na testa ?

Há pouco brincava no quarto.

Foi só tempo de arder em febre
e de o doutor lhe receitar
um preparado que não havia.

O preparado que não havia.

A longa espera da encomenda
pelo correio, e quando veio
em lombo de burro, no chouto,

a morte beijara o menino.
Sá Maria diz que é o destino.

CONVERSA

Há sempre uma fazenda na conversa
bois pastando na sala de visitas
divisas disputadas, cercas a fazer
porcos a cevar
a bateção dos pastos
a pisadura da égua
de testa — e vejo o céu — testa estrelada.

Há sempre
uma família na conversa.
A família é toda a história: primos
desde os primeiros degredados
filhos de Eva
até Quinquim Sô Lu Janjão Tatau
Nonô Tavinho Ziza Zito
e tios, tios-avós de tão barbado-brancos
tão seculares, que são árvores.
Seus passos arrastam folhas. Ninhos
na moita do bigode. Aqui presentes
avós há muito falecidos. Mas falecem
deveras os avós?
Alguém desta clã é bobo de morrer?
A conversa o restaura e faz eterno.

Há sempre uma fazenda, uma família
entreliçadas na conversa:
a mula & o muladeiro
o casamento, o cocho, a herança, o dote, a aguada
o poder, o brasão, o vasto isolamento
da terra, dos parentes sobre a terra.

A NOTÍCIA

Ambrósio Lopes, que fez Ambrósio Lopes ?
Matou-se.
Pior é que não se matou com faca rápida.
mas com lâmina indecisa.
Leva uma semana agonizando
em algum sobrado, longe.

A notícia chega em telegrama verde:
Ambrósio está nas últimas.
Vamos todos visitar sua mulher e filhos
que esperam na sala e telegrama definitivo.

Quando vem a morte ?
Até amanhã resiste Ambrósio Lopes ?
Serve-se café com biscoito.
Conversa-se.

A espera, toda espera é eternidade.
Os assuntos viram polvilho mastigado,
resto de açucar na xícara.

Chega afinal o mensageiro trágico.
Explode um grito, pranto em coro.
Abraçamo-nos todos, e derramo
também minhas lágrimas de visita.

Por entre o nevoeiro vejo a mulher de Ambrósio Lopes
marmorizar-se viúva, estátua
de véu-negrume para sempre.
Os filhos de Anbrósio Lopes adquirem num segundo
caras despedaçadas de órfãos.

Eu mesmo, orfandade a viuvez nas entranhas,
assumo completamente
o suicídio a faca de Ambrósio Lopes.

IMPORTÂNCIA DA ESCOVA

Gente grande não sai à rua,
menino não sai à rua
sem escovar bem a roupa.
Ninguém fora se escandalize
descobrindo farrapo vil
em nossa calça ou paletó.

Questão de honra, de brasão.
Ninguém sussurre:
A família está decadente?
A escova perdeu os pêlos?
A fortuna do Coronel
não dá pra comprar escova?

Toda invisível poeirinha
ameaça-nos a reputação.
Por isso a mãe, sábia, serena,
sabendo que sempre esqueço
ou mesmo escondo, impaciente,
esse objeto sem fascínio,
me inspeciona, me declara
mal preparado para o encontro
com o olho crítico da cidade.

E firme, religiosamente,
vai-me passando, repassando
nos ombros, nas costas, no peito, nas pernas
na alma talvez (bem que precisava)
a escova purificadora.

REPOUSO DO TEMPLO

Não se enterram a céu aberto.
O cemitério não lhes convém.
Ficam sob o chão da sacristia da matriz
ou, distinção especial, ao pé dos altares da capela-mor.
Aí estão mais perto de Deus,
e mesmo não se rezando especialmente por eles,
a reza geral penetra o mármore e a madeira,
embalsama-lhes os ossos dissolvidos,
o pó restante, ou nem isso: o lugar
apenas, debaixo do nome.

São privilégios deante do Senhor.
Não é qualquer família que o consegue.
As luzes, o incenso, a melopédia gregoriana
confortam lá embaixo uma ausência importante de corpo.

A NOVA PRIMAVERA

As tias vestem pesadas armaduras
de morte e gorgorão. Desde o pescoço
à inviolada ponta dos borzeguins, elas proclamam
rompimento com o século. E nada mais existe
senão a noite dos maridos estampada
em cada gesto da soberba solidão.
Assim as queremos para sempre novamente
virgens, reintegradas na pureza original.
Ai de quem boqueje: As tias são mulheres
sujeitas à lei terrestre do desejo,
e em noites brancas lutam corpo a corpo com duendes.

Uma tia, porém, olvida o mandamento
e casa-se outra vez. O raio na família.
Ela é toda jardim, é pura amendoeira
na alegre doação de outra virgindade.

A família decide: essa tia morreu.

AQUELE RAIO

Aquele raio
não era para cair no túmulo orgulhoso
do grão senhor de terras e da tribo.
Devia ser talvez endereçado
à campa de algum pobre pecador
sem glória de família.
Escolher logo esta, romper-lhe a inscrição
debprantos esculpidos com tamanho capricho,
e criar, irisão, essa frase confusa
em que fama e fazenda já não brilham, estelares,
e castigo, talvez de culpas não sabidas,
sepultadas mais que os ossos venerandos.
Sepultadas lá onde o sangue se forma,
onde a prima semente esboçou um caráter,
uma forma de rosto, um vinco de soberba
que rói esta linhagem e agora se dissolve
em rachaduras cruéis de pedra esborcinada.

SIGNO

Fugias do escorpião
lá no quarto de guardados
como quem foge do Cão
sem perceber que o trazias
desde o primeiro vagido
oculto em teu coração.
E por onde quer que fosses,
julgando que te guiavas,
era dele a direção,
e tudo que amas, iluso
de uma ilusória opção,
é ele que te sugere,
te comanda, sorrateiro,
com seu veneno e ferrão,
de tal sorte que, mordido
e mordente, na aflição,
de nada valeu, confessa,
fugires de escorpião.

O PADRE PASSA NA RUA

Beijo a mão do Padre
a mão de Deus
a mão do céu
beijo a mão do medo
de ir para o inferno
o perdão
de meus pecados passados e futuros
a garantia de salvação
quando o padre passa na rua
e meu destino passa com ele
negro
sinistro
irretratável
se eu não beijar a sua mão.

CHEIRO DE COURO

Em casa, na cidade,
vivo o couro
a presença do couro
o couro dos arreios
dos alforjes
das botas
das botinas amarelas
dos únicos tapetes consentidos
sobre o chão de tabuões que são sem dúvida
Formas imemoriais de couro.

Vivo o cheiro do couro,
bafo da oficina do seleiro
suspenso no quarto de arreios.
Surpreendo, apalpo o cheiro futuro
dos bois sacrificados
olhando
a parada estrutura dos bois-vivos.

Aspiro, advinhando-o,
o cheiro do couro nonato
da cria na barriga da vaca Tirolesa
que um dia será carreada.

O couro cheira há muitas gerações.
A cidade cheira a couro.
É um cheiro de família, colado aos nomes.

AMOR SINAL ESTRANHO

Amo demais, sem saber que estou amando,
as moças a caminho da reza.
Entardecer.
Elas também não se sabem amadas
pelo menino de olhos baixos mas atentos.
Olho uma, olho outra, sinto
o sinal silencioso de alguma coisa
que não sei definir - mais tarde saberei.
Não por Hermínia apenas, ou Marieta
ou Dulce ou Nazaré ou Carmen.
Todas me ferem - doce,
passam sem reparar. O lusco-fusco
já decompõe os vultos, eu mesmo
sou uma sombra na janela do sobrado.
Que fazer deste sentimento
que nem posso chamar de sentimento?
Estou me preparando para sofrer.
Assim como os rapazer estudam para médico ou advogado.

SENTIMENTO DE PECADO
                                             I
Pecar, eu peco todo santo dia.
Às vezes mais. Outras nem tanto.
Mas sempre a sombra, na consciência,
visão de inferno, crepitante,
subimpressa, nos atos, nos lugares.

Sei todos os pecados e cometo-os.
Todos os arrependimentos.
Todas as prosternadas confissões,
previstas penitências;
Três padre-nossos,
três ave-marias,
três creiemdeuspadres.

Saio puríssimo para pecar de novo.
Padre Olímpio não se cansa,
não me canso,
jamais se cansa o inferno
de aparecer em brasas nítidas.
Como pode durar o ano inteiro
este jogo de deus e de diabo
em peito de menino?

                                             II
Chegam os missionários estrangeiros
corados
rudes
ininteligíveis.
Festa na cidade, medo em mim;
Entenderão os meus pecados ?
Trazem um inferno mais terrível
da Itália, da Espanha, da Alemanha ?

A Inquisição - me lembro de gravuras
com fogaréus sinistros alumiando
uma praça de olhares -
baixou talvez em Minas, sou a vítima.

Os pecadores não fazem fila.
O mar de pecados
envolve três confessionários
em suor arrependido.

Homens e mulheres exalam
vapor de crimes contra o Céu.
Valho tão pouco, eu !
Outra forma de medo me visita:
Meu Deus, terei pecado
à altura dos Inquisidores,
ou vão me declarar incompetente ?

O RELÓGIO

Nenhum igual àquele.

A hora no bolso do colete é furtiva,
a hora na parede da sala é calma,
a hora na incidência da luz é silenciosa.

Mas a hora no relógio da Matriz é grave
como a consciência.

E repete. Repete.

Impossível dormir, se não a escuto.
Ficar acordado, sem sua batida.
Existir, se ela emudece.

Cada hora é fixada no ar, na alma,
continua sonhando na surdez.
Onde não há mais ninguém, ela chega e avisa
varando o pedregal da noite.

Som para ser ouvido no longilonge
do tempo da vida.

Imenso
no pulso
este relógio vai comigo.

PINTURA DE FORRO

Olha o dragão na igreja do Rosário.
Amarelo dragão envolto em chamas.
Não perturba os ofícios.
Deixa-se queimar, maçã na boca,
olhos no alto:
olha a virgem
entregando o rosário ao frade negro
na igreja dos negros.

Dragão dividido
entre a sensualidade da maçã
e a honra inefável concedida
ao negro que ele não pode devorar.

OS GLORIOSOS

O chão da sacristia é forrado de campas,
domicílio perpétuo dos Antigos,
pois assim deve ser: volta dos filhos
da Santa Madre à Matriz do batismo,
para serem pisados como pó
e lembrados como reis.

CURRAL DO CONSELHO

Aqui se recolhem
os animais vagantes
em ruas estradas logradouros públicos
e os de qualquer natureza
encontrados em plantações
pastos
terras alheias
com ou sem dono conhecido.

(Anexo-dependência do Matadouro.)

Aqui se reúnem
a um passo, a uma parede,
a uma cerca baixa
da morte
os bichos errantes.
E formam nova sociedade.
A sociedade do depósito.

Aqui se espera
uma sorte qualquer
ou nenhuma.
Se passam para o outo lado
e são abatidos ?
Se apodrecem aqui mesmo
ou fogem.

Quem virá buscá-los e para quê,
a burros velhos que não valem
o capim-gordura e o milho prêmios,
e a cachorro cegos de lazeira
desaprendidos de larir ?

Aqui o Hotel do Fim, ao lado
o Matadouro, meta de ouro.

PORTÃO

O portão fica bocejando, aberto
para os alunos retardatários.
Não há pressa em viver
nem nas ladeiras duras de subir,
quanto mais para estudar a insípida cartilha.

Mas se o pai do menino é da oposição
à ilustríssima autoridade municipal,
prima da eminentíssima autoridade provincial,
prima por sua vez da sacratíssima
autoridade nacional,
ah, isso não: o vagabundo
ficará mofando lá fora
e leva no boletim uma galáxia de zeros.

A gente aprende muito no portão
fechado.

CAÇADA

Nada acontece
na cidade. O último crime
foi cometido no tempo dos bisavós.
Ninguém foge de casa, ninguém trai.
Repetição de cores e casos, ó bolor
da vida longa, no chão pregada a oitenta pregos !
As pessoas se cumprimentam, se perguntam
sempre as mesmas coisas, esperando
lentas confirmações
milimetricamente conhecidas.
Ai, tão bem-educadas, as pessoas.
Que fazer, para não morrer de paz ?

Cada morador limpa sua carabina,
convoca o perdigueiro, saem todos
a matar veado, capivara e paca.
Três dias a morte campeia
no mato violento.
Voltam os caçadores triunfantes,
assunto novo para três meses
e se fotografam entre bichos mortos
com inocência de heróis
regressando de Tróia.

RANCHO

Carga
e cangalhas
dormem solidariamente com os tropeiros.

Homens arreios mercadorias
não se distinguem um dos outros, confluídos
no bloco noturno sem estrelas:
viagem dormindo.

O DIA SURGE DA ÁGUA

O chafariz da Aurora
faz nascer o sol.
A água é toda ouro
desse nome louro.
O chafariz da Aurora,
na iridescência trêmula,
bem mais que um tesouro
é prisma sonoro,
campainha abafada
em tliz cliz de espuma,
aérea pancada
súbita
ma pedra lida,
frígida espadana,
tece musicalmente
a áurea nívea rósea
vestimenta do dia lóquido.
Deixa fluir a aurora
sendo um tão pobre
chafariz do povo.

TEMPO AO SOL

Sentados à soleira tomam sol
velhos negociantes sem fregueses.
É um sol para eles: mitigado,
sem pressa de queimar. O sol dos velhos.

Não entra mais ninguém na loja escura
Ou se entra não compra. É tudo caro
ou as mercadorias se esqueceram
de mostrar-se. Os velhos negociantes
já não querem vendê-las? Uma aranha
começa a tecelar sobre o relógio
da parede. E o sagrado pó nas prateleiras.

O sol vem visitá-los. De chapéu
na cabeça o recebem. Se surgisse
um comprador incostumeiro, que maçada.
Ter de levantar, pegar o metro,
a tesoura, mostrar a peça de morim,
responder, informar, gabar o pano...

Sentados à soleira, estátuas simples,
de chinelos e barba por fazer,
a alva cabeça move lentamente
se passa um conhecido. Que não pare
a conversar coisas do tempo. O tempo
é uma cadeira ao sol, e nada mais.

CHEGAR À JANELA

Há um estilo
de chegar à janela, espirar a rua.

Nenhum passante veja o instante
em que a janela se oferece
para emoldurar o morador.

De onde surgiu, de que etérea
paragem, nublado sótão,
como poisou, quedou ali,
recortado em penumbra ?

Modo particularmente de ficar
e não ficar ao mesmo tempo
debruçado à janela
diante da segunda-feira
e das eternidades da semana.
De frente ? De lado ? De nenhum
ângulo ? Está e não está
presente, é ilusão de pessoa,
vaso-begônia, objeto que mofou,
exposto ao ar ?

A janela e o vulto imobilizado
proíbem qualquer indagação.

O ANDAR

O andar é lento porque é lento
desde lentos tempos de antanho.

Se alguém corre, fica marcado
infrator da medida justa.

É o lento passo dos enterros
como é o passo dos casamentos.

O pausado som das palavras.
O tranquilo abrir de uma carta.

Há lentidão em dar o leite
da lenta mama a um sem pressa

neném que mama lentamente,
na lenta espera de um destino.

Não é lenta a vida. A vida é ritmo
assim de bois e de pessoas,

no andar que convém andar
como sugere a eternidade

SERENATA

Flauta e violão na trova da rua
que é uma treva rolando da montanha
fazem das suas.
Não há garrucha que impeça:
A música viola o domicílio
e põe rosas no leito da donzela.

SINA

Nesta mínima cidade
os moços são disputados
para ofício de marido.
Não há rapaz que não tenha
uma, duas, vinte noivas
bordando no pensamento
um enxoval de desejos,
outro enxoval de esperanças.
Depois de muito bordar
e de esperar na janela
maridos de vai-com-o-vento,
as moças, murchando ao luar,
já traçam, de mãos paradas,
sobre roxas almofadas,
hirtas grades de convento.

VIDA VIDINHA

A solteirona e seu pé de begônia
a solteirona e seu gato cinzento
a solteirona e seu bolo de amêndoas
a solteirona e sua renda de bilro
a solteirona e seu jornal de modas
a solteirona e seu livro de missa
a solteirona e seu armário fechado
a solteirona e sua janela
a solteirona e seu olhar vazio
a solteirona e seus bandós grisalhos
a solteirona e seu bandolim
a solteirona e seu noivo-retrato
a solteirona e seu tempo infinito
a solteirona e seu travesseiro
                      ardente, molhado
                      de soluços.

DOIDO

O doido passeia
pela cidade sua loucura mansa.
É reconhecido seu direito
à loucura. Sua profissão.
Entra e come onde quer. Há níqueis
reservados para ele em toda casa.
Torna-se o doido municipal,
respeitável como o juiz, o coletor,
os negociantes, o vigário.
O doido é sagrado. Mas se endoida
de jogar pedra, vai preso no cubículo
mais tétrico e lodoso da cadeia.

OS VELHOS

Todos nasceram velhos — desconfio.
Em casas mais velhas que a velhice,
em ruas que existiram sempre — sempre
assim como estão hoje
e não deixarão nunca de estar:
soturnas e paradas e indeléveis
mesmo no desmoronar do Juízo Final.
Os mais velhos têm 100, 200 anos
e lá se perde a conta.
Os mais novos dos novos,
não menos de 50 — enorm'idade.
Nenhum olha para mim.
A velhice o proíbe. Quem autorizou
existirem meninos neste largo municipal?
Quem infrigiu a lei da eternidade
que não permite recomeçar a vida?
Ignoram-me. Não sou. Tenho vontade
de ser também um velho desde sempre.
Assim conversarão
comigo sobre coisas
seladas em cofre de subentendidos
a conversa infindável de monossílabos, resmungos,
tosse conclusiva.
Nem me vêem passar. Não me dão confiança.
Confiança! Confiança!
Dádiva impensável
nos semblantes fechados,
nos felpudos redingotes,
nos chapéus autoritários,
nas barbas de milénios.
Sigo, seco e só, atravessando
a floresta de velhos.

O BOM MARIDO

Nunca vou esquecer a palavra ingrediente
no plural.
À tarde, Arabela conversava
com Tereza na sala de visitas.
Passei perto, ouvi:
- Custódio tem todos os ingredientes
para ser um bom marido.
- Quais são os ingredientes ?
a outra lhe pergunta.
Arabela sorri, sem responder.
Guardo a palavra com cuidado,
corro ao dicionário:
continua o mistério.

RESISTÊNCIA

O tísico
não tosse.
Não precisa tossir
para provar que continua tísico.
Rosto esverdinhado, barba por fazer,
pescoço envolto em lã xadrez,
roupa de brim dançante no esqueleto,
o tísico da cidade quando morre ?

Cumprimentando de longe,
ninguém lhe aperta a mão.
Alguém já viu micróbios passeando
em seus ossudos dedos pré-defuntos.

Sua voz mal ouvida é som de longe,
de onde ninguém volta, ou só voltou
em véus de assombração. Terá morrido
o tísico, e transita
pausado, de brim caqui, em dia azul ?

Morre de congestão o velho indagador,
de ataque morre súbito o fortido
professor de ginástica. Morrem outros
de 20 anos, rapazes não marcados.
O tísico, vao tossindo, enterra todos.

A CONDENADA

Impossível, casar a moça
bela branca rica
na terra onde príncipes não saltam
do armorial para pedir-lhe a mão
jamais.

Passam cometas de olhar astuto,
canastras sortidas.
Irão comprar a miça, mercadoria
sem preço na terra ?
Jamais.

Passam fazendeiros, botas esculpidas
no estrume, riso ruidoso
de dentes de ouro.
Cuidam levar a moça para saldar
suas hipotecas ?
Jamais.

Passam mulatos de fina lábia
e mil apólices federais.
Como deixar que o sangue cruze
na alva barriga de alvas origens ?

Condena-se a moça ao casamento
consigo mesma
na noite alvíssima
eternamente.

RUAS

Por que ruas tão largas?
Por que ruas tão retas?
Meu passo torto
foi regulado pelos becos tortos
de onde venho.
Não sei andar na vastidão simétrica
implacável.
Cidade grande é isso?
Cidades são passagens sinuosas
de esconde-esconde
em que as casas aparecem-desaparecem
quando bem entendem
e todo mundo acha normal.
Aqui tudo é exposto
evidente
cintilante. Aqui
obrigam-me a nascer de novo, desarmado.

A CASA SEM RAIZ

A casa não é mais de guarda-mor ou coronel.
Não é mais o Sobrado. E já não é azul.
É uma casa, entre outras. O diminuto alpendre
onde oleoso pintor pintou o pescador
pescando peixes improváveis. A casa tem degraus de mármore
mas lhe falta aquele som dos tabuões pisados de botas,
Que repercute no Pará. Os tambores do clã.
A casa é em outra cidade,
Em diverso planeta onde somos, o quê? Numerais moradores.

Tem todo o conforto, sim. Não o altivo desconforto
do banho de bacia e da latrina de madeira.
Aqui ninguém bate palmas. Toca-se a campanhia.
As mãos batiam palmas diferentes.
A batida era alegre ou dramática ou suplicante ou serena.
A campanhia emite um timbre sem história.
A casa não é mais a casa itabirana.

Tenho que me adaptar ? Tenho que viver a casa
ao jeito da outra casa, a que era eterna.
Mobiliá-la de lembranças, de cheiros, de sabores,
de esconderijos, de pecados, de signos,
só de mim sabidos. E de José, de mais ninguém.

Transporto para o quarto badulaques-diamante
de um século. Transporto umidade, calor,
margaridas esmaltadas fervendo
no bule. E mais sustos, pavores, maldições
que habitavam certos cômodos - era tudo sagrado.

Aqui ninguém morreu, é amplamente
o vazio biográfico. Nem veio de noite a parteira
(vinha sempre de noite, à hora de nascer)
enquanto a gente era levada para cômodos distantes,
e tanta distancia havia dentro, infinito, da casa,
Que ninguém escutava gemido e choro de alumbramento.
E de manha o sol era menino novo.

Faltam os quadros dos quatro (eram quatro continentes:
América Europa Ásia África) mulheres
voluptuosamente reclinadas
em coxins de pressentidas safadezas.
A fabulosa copa onde ânforas
dormiam desde a festa de 1989
guardando seus tínidos subentendidos,
guardando a própria cor enclausurada.
O forno abobodal, o picumã
rendilhando barrotes na cozinha.
E o que era sigilo nos armários.
E o que era romance no sigilo
Falta ...
Falto, menino eu, peça da casa.
Tão estranho crescer, adolescer
com alma antiga, carregar as coisas
que não se deixam carregar.
A indelével casa me habitando, impondo
sua lei de defesa contra o tempo.
Sou o corredor, sou o telhado
sobre a estrebaria sem cavalos mas nutrindo
à espera do embornal. Casa-cavalo,
casa de fazenda na cidade,
o pasto, ao Norte; ao Sul, quarto de arreios,
e esse mar de café rolando em grão
na palma de sua mão - o pai é a casa,
e a casa não é mais, nem sou a casa térrea,
terrestre, contingente,
suposta habitação de um eu moderno.

Rua Silva jardim, ou silvo em mim.

3 comentários:

  1. Não consegui parar de ler até ao último poema. Ainda bem que resolveu partilhar estas suas leituras.
    Desejo que esteja melhor da sua saúde.

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  2. Oi, Júlia, te adoro pelo Portugal que me mostras,
    Pretendo publicar a segunda parte do BOITEMPO.
    Espero que você goste.
    A poesia do Brasil e de Portugal estão mais próximas do que nós imaginamos.
    Um oceano é menor do que uma língua.
    Beijos,
    JR.

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  3. Esta imagem de Drummond também me impressionou, João. Com certeza, precisamos todos olhar com mais atenção para Boitempo. Abraço!

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