segunda-feira, 31 de outubro de 2011

domingo, 30 de outubro de 2011

Carlos Drummond de Andrade, "A grande dor das cousas que passaram"

A grande dor das cousas que passaram
transmutou-se em finíssimo prazer
quando, entre fotos mil que se esgarçavam,
tive a fortuna e graça de te ver.

Os beijos e os amavios que se amavam,
descuidados de teu e meu querer,
outra vez reflorindo, esvoaçaram
em orvalhada luz de amanhecer.

Ó bendito passado que era atroz,
e gozoso hoje terno se apresenta
e faz vibrar de novo minha voz

para exaltar o redivivo amor
que de memória-imagem se alimenta
e em doçura converte o próprio horror!

Este soneto de Drummond conversa com o de Camões que eu postei em 26 de outubro de 2011.

sábado, 29 de outubro de 2011

Ferreira Gullar, "Prometi-me possuí-la ..."

Prometi-me possuí-la muito embora
ela me redimisse ou me cegasse.
Busquei-a na catástrofe da aurora,
e na fonte e no muro onde sua face,

entre a alucinação e a paz sonora
da água e do musgo, solitária nasce.
Mas sempre que me acerco vai-se embora
como se me temesse ou me odiasse.

Assim persigo-a, lúcido e demente.
Se por detrás da tarde transparente
seus pés vislumbro, logo nos desvãos

das nuvens fogem, luminosos e ágeis!
Vocabulário e corpo – deuses frágeis -
eu colho a ausência que me queima as mãos.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Cecília Meireles, "Mulher ao espelho"

Hoje que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus,
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram-se sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Camões, "A grande dor das cousas que passaram"

Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso dos meus anos;
Dei causa a que a fortuna castigasse
As minhas mais fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Gênio de vinganças!

Rubem Braga dizia que o verso "A grande dor das cousas que passaram" era um dos maiores de Camões, por sua beleza ser toda construída com palavras corriqueiras da nossa língua.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Ivan Junqueira, "Mater dolorosa "

Entre os túmulos e os dobres
é que vens, lenta e lutuosa,
nas mãos o cântaro e a rosa
que, defunta, já não colhes.

São teus olhos duas covas,
como as dos crânios, inóspitas,
mas eis que delas escorre
o que a morte não encobre:

essas lágrimas que bóiam
à tona do que, sem bordas,
foi outrora a tua história
e agora é o pó dos espólios.

Úmido é o húmus da morgue
e do catre em que te encolhes,
como se o frio, em teus ossos,
queimasse mais que uma forja.

Muda e estóica até na cólera,
resta a cinza dos teus fogos.
E o que de mim ainda sobra
busca a tumba do teu colo.

domingo, 23 de outubro de 2011

Alceu Wamosy, "Desiludido"

Por que te hás de aquecer ao sol dessa esperança
nova, que despontou na tua alma ingênua e crente?
Se ela é como sorriso em lábio de criança,
que se há de transformar em pranto, de repente…

A ventura completa, é céu que não se alcança,
mas que a gente vislumbra, além, perpetuamente:
esse céu mentiroso, é um céu que foge e avança,
se é maior ou menor a aspiração da gente.

Sê simples e sê bom, mas não julgues que um dia,
hás de o teu coração, repleto de alegria,
para sempre fechar, como quem fecha um cofre!

Crê que a desilusão é o sonho pelo avesso,
e que só se é feliz, dando-se o mesmo apreço
ao gozo que se goza, e à mágoa que se sofre!

sábado, 22 de outubro de 2011

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Camões, "Eu cantarei de amor tão docemente ..."

Eu cantarei de amor tão docemente,
por uns termos em si tão concertados,
que dois mil acidentes namorados
faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,
pintando mil segredos delicados,
brandas iras, suspiros magoados,
temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
de vossa vista branda e rigorosa,
contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, para cantar de vosso gesto
a composição alta e milagrosa,
aqui falta saber, engenho e arte.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Vinícius de Moraes









"Copacabana"

Esta é Copacabana, ampla laguna
Curva e horizonte, arco de amor vibrando
Suas flechas de luz contra o infinito.
Aqui meus olhos desnudaram estrelas
Aqui meus braços discursaram à lua
Desabrochavam feras dos meus passos
Nas florestas de dor que percorriam.
Copacabana, praia de memórias!
Quantos êxtases, quantas madrugadas
Em teu colo marítimo!

- Esta é a areia

Que eu tanto enlameei com minhas lágrimas
- Aquele é o bar maldito. Podes ver
Naquele escuro ali? É um obelisco
De treva - cone erguido pela noite
Para marcar por toda a eternidade
O lugar onde o poeta foi perjuro.
Ali tombei, ali beijei-te ansiado
Como se a vida fosse terminar
Naquele louco embate. Ali cantei
À lua branca, cheio de bebida
Ali menti, ali me ciliciei
Para gozo da aurora pervertida.

Sobre o banco de pedra que ali tens
Nasceu uma canção. Ali fui mártir
Fui réprobo, fui bárbaro, fui santo
Aqui encontrarás minhas pegadas
E pedaços de mim por cada canto.
Numa gota de sangue numa pedra
Ali estou eu. Num grito de socorro
Entreouvido na noite, ali estou eu.
No eco longínquo e áspero do morro
Ali estou eu. Vês tu essa estrutura
De apartamento como uma colmeia
Gigantesca? em muitos penetrei
Tendo a guiar-me apenas o perfume
De um sexo de mulher a palpitar
Como uma flor carnívora na treva.
Copacabana! ah, cidadela forte
Desta minha paixão! a velha lua
Ficava de seu nicho me assistindo
Beber, e eu muita vez a vi luzindo
No meu copo de uísque, branca e pura
A destilar tristeza e poesia.
Copacabana! réstia de edifícios
Cujos nomes dão nome ao sentimento!
Foi no Leme que vi nascer o vento
Certa manhã, na praia. Uma mulher
Toda de negro no horizonte extremo
Entre muitos fantasmas me esperava:
A moça dos antúrios, deslembrada
A senhora dos círios, cuja alcova
O piscar do farol iluminava
Como a marcar o pulso da paixão
Morrendo intermitentemente. E ainda
Existe em algum lugar um gesto alto,
Um brilhar de punhal, um riso acústico
Que não morreu. Ou certa porta aberta
Para a infelicidade: inesquecível
Frincha de luz a separar-me apenas
Do irremediável. Ou o abismo aberto
Embaixo, elástico, e o meu ser disperso
No espaço em torno, e o vento me chamando
Me convidando a voar... (Ah, muitas mortes
Morri entre essas máquinas erguidas
Contra o Tempo!) Ou também o desespero
De andar como um metrônomo para cá
E para lá, marcando o passo do impossível
À espera do segredo, do milagre
Da poesia.

Tu, Copacabana,
Mais que nenhuma outra foste a arena
Onde o poeta lutou contra o invisível
E onde encontrou enfim sua poesia
Talvez pequena, mas suficiente
Para justificar uma existência
Que sem ela seria incompreensível.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Sosígenes Costa, "O pavão vermelho"

Ora, a alegria, este pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.

Clarim de lacre, este pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.

É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
neste pavão pomposo e de chavelho.

Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei este pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Hilda Hilst, "Eu era parte da noite..."

Eu era parte da noite e caminhava
Adusta e austera
Sem luz nem aventurança.
Tu eras praia e dia
Um fogo branco
O rosto da montanha sobre a terra.

E juntamos a treva
Ao mar do meio-dia
Cristas aguadas, pontas
Trilhas fosflorescentes
Na vastidão das sombras

Mas um instante apenas.

Por isso é que caminho como antes
Adulta e austera.
Acrescida de véus me mostro aos viajantes:
Vês a mulher, aquela?
Dizem que a cara é de caliça e pedra.
Que a luz das ilusões passou por ela.

sábado, 15 de outubro de 2011

Paulo Mendes Campos, "Congo"

Tua alma, minha amiga, é como a Bélgica suavizada de canais, mas a minha é como o Congo violentado, duma liberdade malnascida. Miséria misteriosa de meu sangue, suor negro de minha morte, martírio milenar de minh’alma, meu amor. A Bélgica é como a tua alma suave. O Congo é tumulto impenetrável, floresta de lama, felino ferido. Estou ao Norte, ao Sul, a Leste, a Oeste, crucificado em províncias paralíticas, em subúrbios de barro, onde se arrastam bestas mal abatidas, mulambos de Lisala, senzalas de Lusambo, Usumbara profunda com seu zabumba fúnebre, Inongo, Malonga – minha’alma. Mas a tua é suave de canais. Um crime se articula na aldeia petrificada, um guerreiro de lança percorre o vale ardente. Mas em tua alma, minha amiga, há um príncipe melancólico pendido para o crepúsculo. No Congo, violência, vingança, o ídolo vestuto que se estraçalha, o pântano de sangue, o voo do corvo, o rio da raiva, a garra do belga, a madrugada de carvão, a cova de Cristo, a luz de Lumumba. Na Bélgica, a suavidade dos canais, meu amor.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Paulo Henriques Britto, "Fisiologia da composição - V"

É preciso que haja uma estrutura,
uma coisa sólida, consistente,
artificial, capaz de ficar
sozinha em pé (não necessariamente
exatamente na vertical), dura

e ao mesmo tempo mais leve que o ar,
senão não sai do chão. E a graça toda
da coisa, é claro, é ela poder voar,
feito um balão de gás, e sem que exploda

na mão, igual a um fogo de artifício
que deu chabu. Não. Tem que ser na altura
de um morro, no mínimo, ou de um míssil

terra-a-ar. Sim. Menos arquitetura
que balística. É claro que é difícil.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Jorge Luis Borges




















"A fama"

Ter visto Buenos Aires crescer, crescer e declinar.
Lembrar o pátio de terra e a parreira, o átrio e o algibe.
Ter herdado o inglês, ter interrogado o saxão.
Professar o amor ao alemão e a nostalgia do latim.
Ter conversado em Palermo com um velho assassino.
Agradecer o xadrez e o jasmim, os tigres e o hexâmetro.
Ler Macedonio Fernández com a voz que foi sua.
Conhecer as ilustres incertezas que são a metafísica.
Ter honrado espadas e sensatamente desejar a paz.
Não ser cobiçoso de ilhas.
Não ter saído de minha biblioteca.
Ser Alonso Quijano sem me atrver a ser Dom Quixote.
Ter ensinado o que não sei a quem saberá mais do que eu.
Agradecer os dons da lua e de Paul Verlaine.
Ter urdido um ou outro decassílabo.
Ter voltado a contar velhas histórias.
Ter disposto no dialeto do nosso tempo cinco ou seis metáforas.
Ter eludido subornos.
Ser cidadão de Genebra, de Montevidéu, de Austim e
                                                [(como todos os homens) de Roma.
Ser devoto de Conrad.
Ser essa coisa que ninguém pode definir: argentino.
Ser cego.
Nenhuma dessas coisas é estranha e seu conjunto me depara
                        [uma fama que não consigo compreender.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Paulo Mendes Campos, "Litogravura"

Eu voltava cansado como um rio.
No Sumaré altíssimo pulsava
a torre da tevê, tristonha, flava.
Não: voltava humilhado como um tio
bêbado chega à casa de um sobrinho.
Pela ravina, lento, lentamente,
feria-se o luar, num desalinho
de prata sobre a Gávea de meus dias.
Os cães quedaram quietos bruscamente.
Foi no tempo dos bondes: vi um deles
raiar pelo Bar Vinte, borboleta
flamante, touro rútilo, cometa
que se atrasa no cosmo e desespera:
negra, na jaula em fuga, uma pantera.

Passei a mão nos olhos: suntuosa,
negra, na jaula em fuga, ia uma rosa.

domingo, 9 de outubro de 2011

Sophia de Mello Breyner Andresen, "O poema"


O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

sábado, 8 de outubro de 2011

Jorge de Sena, "Homenagem a Tomás Antonio Gonzaga"

Gonzaga: podias não ter dito mais nada,
não ter escrito senão insuportáveis versos
de um árcade pedante, numa língua bífida
para o coloquial e o latim às avessas.

Mas uma vez disseste:
“eu tenho um coração maior que o mundo”.
Pouco importa em que circunstâncias o disseste:

Um coração maior que o mundo —
uma das mais raras coisas
que um poeta disse.

Talvez que a tenhas copiado
de algum velho clássico. Mas como
a tu disseste, Gonzaga! Por certo

que o teu coração era maior que o mundo:
nem pátrias nem Marílias te bastavam.

(Ainda que em Moçambique, como Rimbaud na Etiópia,
engordasses depois vendendo escravos).

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Lya Luft, "Canção da ilha sem farol"

A vida era um mar certo demais
em torno desta pedra:
minha solidão inventava um tempo
além da divisão em horas e cansaços.

Mas tua mão inesperada
reacendeu o farol dos desassombros,
e nós, frutos da paixão em altos ramos,
agora somos o coração cercado
que estremece.

(Quando se abriram represas e comportas
das nossas vidas contidas,
nem vento ou lua nem os deuses
poderiam deter essas marés.)

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Cassiano Ricardo, "Testamento"

Deixo os meus olhos ao cego
que mora nesta rua.
Deixo a minha esperança
ao primeiro suicida.
Deixo à polícia o meu rasto,
a Deus o meu último eco.
Deixo o meu fogo - fátuo
ao mais triste viandante
que se perder sem lanterna
numa noite de chuva.
Deixo o meu suor ao fisco
que me cobriu de impostos;
e a tíbia da perna esquerda
a um tocador de flauta
para, com o seu chilreio,
encantar a mulher e a cobra.
Às coisas belas do mundo
deixo o olhar cerúleo e brando
com que, nas fotografias,
as estarei, sempre, olhando...
Aos noturnos assistentes
de última hora - aos que ficam,
o sorriso interior e sábio
que nunca me veio ao lábio.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Nelson Ascher, "Vício"

Cigarro, sim, mas, uma
após outra, asfixiando-me
ao deliciosamente
adulterarem o ar —

álcool também, mas, pouco
a pouco, submetendo-me,
conforme eu me entorpeço,
à sua própria lógica —

açúcar, sim, mas, dia
a dia, deformando-me
perversas ao sabor
de seu letal sabor —

sexo também, mas, cada
vez mais, pondo em perigo
quanto restou do meu
sistema imunológico —

sobremaneira e, embora
mereçam, tendo em vista
tudo o que, além do esôfago,
traquéia, reto e uretra,

carcomem, a advertência
de que à saúde causam
irreparáveis danos,
viciam-me as palavras.

domingo, 2 de outubro de 2011

Carlos Drummond de Andrade, "A suposta existência

Como é o lugar
quando ninguém passa por ele?
Existem as coisas
sem ser vistas?

O interior do apartamento desabitado,
a pinça esquecida na gaveta,
os eucaliptos à noite no caminho
três vezes deserto,
a formiga sob a terra no domingo,
os mortos, um minuto
depois de sepultados,
nós, sozinhos
no quarto sem espelho?

Que fazem, que são
as coisas não testadas como coisas,
minerais não descobertos - e algum dia
o serão?

Estrela não pensada,
palavra rascunhada no papel
que nunca ninguém leu?
Existe, existe o mundo
apenas pelo olhar
que o cria e lhe confere
espacialidade?

Concretitude das coisas: falácia
de olho enganador, ouvido falso,
mão que brinca de pegar o não
e pegando-o concede-lhe
a ilusão de forma
e, ilusão maior, a de sentido?

Ou tudo vige
planturosamente, à revelia
de nossa judicial inquirição
e esta apenas existe consentida
pelos elementos inquiridos?
Será tudo talvez hipermercado
de possíveis e impossíveis possibilíssimos
que geram minha fantasia de consciência
enquanto
exercito a mentira de passear
mas passeado sou pelo passeio,
que é o sumo real, a divertir-se
com esta bruma-sonho de sentir-me
e fruir peripécias de passagem?

Eis se delineia
espantosa batalha
entre o ser inventado
e o mundo inventor.
Sou ficção rebelada
contra a mente universa
e tento construir-me
de novo a cada instante, a cada cólica,
na faina de traçar
meu início só meu
e distender um arco de vontade
para cobrir todo o depósito
de circunstantes coisas soberanas.

A guerra sem mercê, indefinida
prossegue,
feita de negação, armas de dúvida,
táticas a se voltarem contra mim,
teima interrogante de saber
se existe o inimigo, se existimos
ou somos todos uma hipótese
de luta
ao sol do dia curto em que lutamos.