sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Al Berto

















"Notas para o diário"

deus tem que ser substituído rapidamente por poemas,
sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,
vivos e limpos.
 a dor de todas as ruas vazias.


sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste
silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abis
mo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de aca-
bar comigo mesmo.


a dor de todas as ruas vazias.

mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do
deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e
dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração,

ou onde o medo tem a precariedade doutro corpo.

a dor de todas as ruas vazias.

pois bem, mário – o paraíso sabe-se que chega a lisboa
na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no
cimo do mastro, e mandar arrear o velame.

é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem
cadastro.


a dor de todas as ruas vazias.
sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o
filme acabou. não nos conheceremos nunca.


a dor de todas as ruas vazias.

os poemas adormeceram no desassossego da idade.
fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais
curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas. ..e
nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida – e
a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.


a dor de todas as ruas vazias.

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