quinta-feira, 16 de abril de 2015

Ivan Junqueira, "Cena dominical"


Meu pai, absorto, à cabeceira,
rodeado de fármacos e receitas,
mira o vazio de sua vida inteira
e degusta o que mais o deleita:
o pôquer, os cavalos, a roleta,
a garrafa de tinto na mesa,
o charuto de módico preço,
a baforada lenta e espessa
 que se enovela entre os esguios dedos.

O almoço de domingo vai a meio,
sem brindes ou inúteis atropelos.
Na travessa, as usuais guloseimas
que minha mãe prepara com esmero.
fala-se pouco. Uma úmida tristeza
embebe os talheres, molha as paredes
da acanhada sala burguesa.
Após o café, meu pai, sorrateiro,
conta as raras cédulas da carteira.
E sai. Chove. Ágil, ele se esgueira
por entre as gotas que o golpeiam.

Quase em frente, o hipódromo o espreita:
os potros, a lama da pista de areia,
a multidão, os chapéus de feltro,
a dupla, o placê, o colorido das jaquetas.
Meu pai aposta. Uma, duas, muitas vezes.

E deixa ali o seu último dinheiro.

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