domingo, 4 de março de 2018

Abgar Renault, "Desarquitetura"


Desmancho a minha vida lentamente
numa desordenada desarquitetura,
que tem a mesma intimidade incoerente
da desordem ou da escondida, insuspeitável ordem
com que a ergui de fungível argamassa.

Da construção desconexa espalhada pelo chão
restam multifendidos zeros
que ainda guardarei e quero
recompor na aritmética do obscuro galpão.
Seus numerosos, ininteligíveis fragmentos,
talvez eu possa ainda em parcos momentos
(que teriam a duração de meio século)
reunir em sílabas, umas poucas sílabas consequentes,
e recontar a desarvorada construção que se elevou
em chão de breve argila entre tempestuosos andaimes.

Talvez do fragmentário espólio
seja possível recolher algum vivido número ou pensamento,
ainda legível sob a cinzenta caliça* que recobre milhares de horas,
ali gastas e já ocultas mortas, como este:
de insabidos destroços nos compomos e sobre eles nos erguemos, e acabamos.

* Caliça - Pó ou fragmentos de argamassa de cal resultantes da demolição ou reforma de uma obra de alvenaria.

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