domingo, 13 de novembro de 2011

Drummond, "Resíduos"

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

6 comentários:

  1. João,

    Que poema para acordar um pessoa no domingo! De todos os já lidos hoje, esse vai ficar, bem mais que um pouco.

    E obrigada ao Drummond por nos destacar alguns poucos (de tantos) nossos resíduos.

    Bjs,
    Carol

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  2. Sinal de que um pouco dele ficou em você.
    Esse poema tem um ritmo, uma musicalidade que é difícil se achar em poesia.
    E eu adoro esses versos:
    "Oh abre os vidros de loção
    e abafa
    o insuportável mau cheiro da memória".
    JR.

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  3. JR,

    Difícil destacarapenas "um pouco de um poemas que me diz tanto, mas vou tentar:

    Pois de tudo fica um pouco.
    Fica um pouco de teu queixo
    no queixo de tua filha.
    De teu áspero silêncio
    um pouco ficou, um pouco
    nos muros zangados,
    nas folhas, mudas, que sobem.

    Esse, talvez tenha sido onde achei o Drummond mais lírico e sendo isso um traço que ele muito oculta ou não usa fácil foi o que mais gostei.

    Bjs
    Carol

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  4. PS: O final, tão lindo, tem aquele corte "maldoso" (e proposital, claro) do botão para o rato... e mesmo assim gosto dele todo, imensamente também.

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  5. À vontade, Carol.
    Quanto mais ele circular, melhor.
    E que ao menos um pouco dele fique no coração de quem o ler.
    Bjs.
    JR.

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