quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Dr. Drauzio Verella, "A felicidade de Margô"


    
Quando voltou para casa às quatro da madrugada, Margô estava feliz como quase nunca.

–Eu devia ter desconfiado. Felicidade, assim, na minha vida?

Nascida na periferia de Feira de Santana, havia experimentado com a mãe e os quatro irmãos as agruras da penúria, desde que o pai decidiu tentar a sorte em Serra Pelada e sabe lá em quantos garimpos do Norte.

Aos oito anos, conseguiu emprego de doméstica. Na casa dos patrões varria, tirava pó, arrumava as camas, lavava os banheiros e o quintal.

–Se a patroa passasse a mão numa prateleira e encontrasse um cisco ia me buscar pela orelha.

Quando completou 15 anos, um vizinho a surpreendeu com a boca no sexo de um rapaz das redondezas. A vida virou um inferno:

–Debochavam e me xingavam na rua. A molecada me passava a mão na bunda e corria.

Intimidada, trancou-se em casa, mas quando saía para o trabalho não escapava das agressões, que suportava calada. Na tarde em que xingou a mãe de três marmanjos que a humilharam quando passou na frente de um botequim, apanhou até ficar com o rosto deformado.

O episódio causou tamanha revolta em seu espírito, que resolveu andar com uma faca de cozinha no cinto.

Duas semanas mais tarde, viu dois dos agressores na porta do mesmo bar. Mudou de calçada, mas eles atravessaram a rua, queriam saber se a putinha não tinha ficado feliz com os carinhos recebidos.

De cabeça baixa, ela tentou seguir em frente, mas eles impediram. O mais magro caiu na primeira facada, o outro ainda quis reagir antes de levar a segunda.

Margô fugiu para Salvador, atrás da boate em que trabalhava uma amiga de infância, a única pessoa que conhecia na capital.

Em Salvador, as duas foram presas por assaltar clientes que atraíam para as espeluncas mais sórdidas da cidade baixa. Passou dois anos e oito meses em celas apinhadas.

Seis meses mais tarde, estava presa outra vez. Pegou três anos. Libertada, veio para São Paulo.

–Tinha que mudar, vivia metida em confusão. Não levava desaforo para casa. A polícia não largava do meu pé.

Na cidade grande, começou a vida na prostituição de rua. Não lhe faltavam clientes. Morava com quatro colegas de trabalho, num prédio decadente na esquina da General Osório com Santa Ifigênia, no coração da antiga Boca do Lixo.

Passou mais uma temporada na cadeia. Quando saiu, jurou que nunca mais voltaria para trás das grades.

Amparada pelos dotes físicos, pôde frequentar um inferninho nas imediações da Augusta. Com o acesso à clientela mais endinheirada, alugou uma quitinete para ficar distante das fofocas e das contravenções das companheiras de moradia.

Uma noite, o dono da boate lhe fez uma oferta:

–Você é a única da casa que não usa cocaína. Trabalha aqui há dois anos e nunca deu alteração. Estou precisando de ajuda.

Margô quase caiu de costas quando recebeu o convite para gerenciar a casa. Aos 35 anos, teria carteira assinada e um salário quase igual ao da prostituição.

No primeiro dia colocou o vestido mais festivo e chegou na boate bem antes de abrir. Recebeu as orientações do patrão e uma mesa no escritório dos fundos.

–Uma mesa cheia de gavetas só para mim.

Estava radiante no caminho de casa às quatro da madrugada daquele dia. Empolgada com o trabalho, só lembrou da fome quando passou pelo bar da esquina de casa. Sentou num banquinho do fundo do balcão e pediu peito de frango grelhado, com arroz e salada de tomate, o prato predileto.

Nessa hora entrou Bentão, ex-policial que extorquia os comerciantes da área. Com andar de bêbado, veio na direção dela:

–Onde pensa que vai o veado com esse vestido de lantejoula?

Margô abaixou a cabeça, brigar naquela noite era o que menos desejava. O brutamontes insistiu:

–Não vou com a tua cara, seu traveco de merda.

Ela continuava cabisbaixa quando levou o soco que lhe abriu o supercílio. Sangrando, correu para a quitinete, sentou na cama e chorou feito criança.

–Logo quando eu estava feliz.

Tinha um lenço amarrado na testa quando voltou ao bar. Entretido com o copo de conhaque, o ex-policial só se deu conta da aproximação quando o punhal lhe penetrou as costas pela primeira vez.


Crônica publicada no jornal "Folha de São Paulo", em 24 de janeiro de 2015.

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