sábado, 13 de junho de 2015

Marianna Cersósimo













"Sob o papel pardo das gavetas"

Ainda que mal perguntes,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas
    (Drummond)

Ainda que mal queiras
tenho discretos prazeres pelo que lhe escapa.
Guardo ainda, profundo agrado pelas poucas coisas que sobraram
malquistas. Pelo indesejado, espontâneo.

Há pessoas que deliciam-se através de fechaduras, pelas pequenas
frestas, pelo filete de corpo que escapa aos contornos do lençol.
Vizinhos que se entretêm com o descuido do vento que sopra a cortina.

Ainda que malqueiras, não serão estes os tonéis a encher meus olhos.
São os fundos do armário, o que há guardado por baixo do papel
pardo que forra as gavetas, um rodapé solto, o bolso do casaco
nunca usado, a foto no álbum que fica por trás das outras, o que há
embaixo do travesseiro, do colchão, nas palavras escorregadias sem
permissão, no não, no grito, cheiro que ficou no banheiro quando
saiu, no papel que a borracha apagou.

Gosto pelo pouco que sobrou desarrumado nas pessoas, do pouco
que não foi produzido, do que não foi ensaiado num discurso, das
pequeninas lacunas: deliciosas como mini suspiros-puxa.

Ainda que malqueiras, teria milhagens se houvesse um voo
que levasse ao paraíso dos mini-espaços, das coisas que podem
escorregar. Tomaria conexão direta aos fundos dos armários, às
sujeiras entranhadas na unha - que denunciam muito mais do que
qualquer camisa de homem com um pouco de batom.

Ainda que malqueiras o que não lhe escapa.
O todo é que agrada.
O único fio de cabelo não pintado como todo o resto loiro, o fundo
do armário com todo ele cheio. Não interessa esvaziar.

Ainda que malqueiras, não malqueres tanto assim.
Afinal, ainda há sob o papel pardo das gavetas.

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