quarta-feira, 4 de abril de 2012

Manuel Bandeira, "LIBERTINAGEM"

Assim MB se referiu ao livro no Itinerário:

"Libertinagem contém os poemas que escrevi de 1924 a 1930 - anos de maior força e calor do movimento modernista. Não admira, pois, que seja entre os meus livros o que está mais dentro da técnica e da estética do modernismo. Isso todo o mundo pode ver. O que no entanto poucos verão é que muita coisa que ali parece modernismo, não era senão o espírito do grupo alegre de meus companheiros diários daquele tempo: Jaime Ovalle, Dante Milano, Osvaldo Costa, Geraldo Barrozo do Amaral. Senão tivesse convivido com eles, decerto não teria escrito, apesar de todo o modernismo, versos como os de "Mangue", "Na Boca", "Macumba de Pai Zusé", "Noturno da Rua da Lapa" etc.(este último é aproveitação de um caso que se passou com Ovalle em sua casa da rua Conde de Laje).

Alguns dos poemas de Libertinagem, "Mangue", por exemplo, foram publicadeos no "Mês Modernista", seção que "A Noite" manteve em sua primeira página não me lembro em que mês do ano de 1915. A coisa tinha sido arranjada por Oswald de Andrade, que fizera relações com Geraldo Rocha, proprietário do jornal, e o induzira a essa espécie de "demonstração modernista". Mas quem dirigiu a iniciativa foi Mário de Andrade, e a ele coube indicar os colaboradres: Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Milliet, Prudente de Moraes, neto, Martins de Almeida e eu. A princípio não quis aceitar o convite, porque me pareceu que a gente d'A Noite, cuja diretor na ocasião era Viriato Correa, ia apresentar-nos um pouco como o Sarrasani exibia no circo os seus elefantes ensinados. Mário respondeu-me: "Vocês tão fazendo chiquê com A Noite. Aceitem isso logo ! Liberdade de escrever o que quiser. Eu pretendo mandar pedacinhos vivos porém sem importância, é lógico. Importância de meia-coluna. Acho que vocês devem aceitar". Afinal concordei em colaborar e a respeito dos elefantes Mário me escreveu: "Se você me dá os elefantes do Circo Sarrasani para mim, faço uma das meias colunas com isso. É um bom jeito de mostrar que a gente não cai na esparrela e em última análise nada mais somos que elefantes ensinados, nós artistas. Deixe de ser historiente que é isso mesmo!" Não levei muito a sério "O Mês Modernista": o que fiz foi me divertir ganhando cinquenta mil réis por semana, o primeiro dinheiro que me rendeu a literatura. A uma das minhas quatro ou cinco crônicas chamei "Bife à moda da casa", que era o nome do nosso (nosso: meu, do Ovalle, do Dante Milano, do Oswaldo Costa, da Germaninha Bittencourt) prato de resistência no Restaurante Reis. No prato do restaurante entrava de tudo: era uma mixórdia, que entupia. Assim a minha colaboração, onde havia um cocainômano que rezava: "O pó nosso de cada dia nos dai hoje ...", e de pois da "Lenda Brasileira" e da "Notícia tirada de um jornal", este "Dialeto brasileiro", escrito especialmente para irritar certos puristas:"Não há nada mais gostoso do que 'mim' sujeito de verbo no infinitivo: 'Pra mim brincar'". As cariocas que não sabem gramática falam assim. Todos os brasileiros deviam de querer falar como as cariocas que não sabem gramática. - O erro mais feio de brasileiro é a construção dos pronomes "me", "te", "lhe", "nós", "vós", com o pronome "o", "a", "os", "as": "Ele já mo deu". - As palavras mais feias da língua portuguesa são "quiçá", "alhures" e "amiúde".

Em outra semana fiz "Duas traduções para moderno acompanhadas de comentários". "Traduzi" para o moderno o famoso soneto de Bocage que começa pelo verso "Se é doce no recente, ameno estio".
Eram assim os quartetos:

Doçura de, no estio recente,
Ver a manhã toucar-se de flores,
E o rio,
                        mole
                                                queixoso
Deslizar, lambendo areias e verduras;
Douçura de ouvir as aves
Em desafio de amores
                        cantos
                        risadas
Na ramagem do pomar sombrio.

Como se vê, eu estava mas era assinalando maliciosamente certas maneiras de dizer, certas disposições tipográficas que já se tinham tornado clichês modernistas.
A outra "tradução" era do "Adeus de Tereza". Num comentário, de humour muito sofisticado, dava o meu poema "Teresa" como tradução "tão afastada do original", que a espíritos menos avisados pareceria criação".
Na semana seguinte voltei "traduzindo" estes versos do autor da Moreninha:

            Mulher, irmã, escuta-me: não ames.
            Quando a teus pés um homem terno e curvo
            Jurar amor, chorar pranto de sangue: ele te engana!
            As lágrimas são gala da mentira
            E o juramento manto da perfídia.

Bem, dessa vez eu queria mesmo brincar falando cafageste, e a coisa foi apresentada como "tradução caçanje":

Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você
E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde
Se ele chorar
Se ele se ajoelhar
Se ele se rasgar todo
Não acredita não Teresa
É lágrima de cinema
É tapeação
Mentira
CAI FORA.

Piada ... Piadas como mais tarde as faria Murilo Mendes a propósito do Rio Paraibuna e da Batalha de Itararé. Por essas e outras brincadeiras estamos agora pagando caro, porque o "espírito de piada", o "poema-piada" são tidos hoje por característica precípua do modernismo, como se toda obra de Murilo, de Mário de Andrade, de Carlos Drummonmd de Andrade e outros, eu inclusive, não passasse de um chorrilho de piadas. Houve um poeta na geração de 22 que se exprimiu quase exclusivamente pela piada: Oswald de Andrade. Mas isso nele não era "modernismo": era, e continua sendo, o seu modo peculiar de expressão. O caso do grande poeta colombiano recentemente falecido: Luis Carlos Lopes. Mas quem negará a carga de poesia que há nas piadas de Pau Brasil ? E porque essa condenação da piada, como se a vida só fosse feita de momentos graves ou se só nestes houvesse teor poético ?

Em Libertinagem inclui dois poemas escritos em francês: "Chambre vide" e "Bonheur lyrique". Ao tempo em que os compus e em anos anteriores fiz outros que nunca publiquei; posteriormente mais um intitulado "Chanson des petits esclaves", incluído na Estrela da Manhã. Esses versos me saíram em francês sem que eu saiba explicar porque. Certa vez em que eu estava preparando uma edição das Poesias Completas, quis acabar com isso de versos em francês, que poderia parecer pretensão da minha parte, e esforcei-me por traduzi-los. Pois fracassei completamente, eu que tenho traduzido tantos versos alheios. Outra experiência minha: mandaram-me um dia uma tradução para o francês de poema meu, pedindo-me não só que sobre ela desse a minha opinião, como que emendasse, mudasse à vontade. Pus mão à obra e vi que para ser fiel ao meu sentimento teria que suprimir certas coisas e acrescentar outras. No fim não deu também nada que prestasse. Tudo isso me confirmou a idéia de que poesia é mesmo intraduzível. No entanto, lá estavam em Libertinagem três sonetos de Elizabeth Barrett Browning, aos quais depois acrescentei um quarto. O português dessas traduções contrasta singularmente com o dos poemas originais. É que na ginástica de tradução fui aprendendo que para traduzir poesia não se pode abrir mão do tesouro que são a sintaxe e o vocabulário dos clássicos portugueses. Especialmente quando se trata de tradução do inglês ou alemão. A sintaxe dos clássicos, mais matizada do que a moderna, sobretudo a moderna do Brasil.

Não passarei além de Libertinagem sem tocar ainda em três dos seus poemas:"Profundamente", "Vou-me embora p'ra Pasárgada" e "Oração do saco de Mangaratiba".

No primeiro não falo da Rua da União, mas ela está ali tão presente quanto na "Evocação do Recife":

                        Meu avô
                        Minha avó
                       Totônio Rodrigues
                        Tomásia
                        Rosa.

Na "Evocação" já havia mencionado o nome de Totônio Rodrigues, "que era muito velho e botava o pince-nez na ponta do nariz". Esse Totônio era sobrinho de meu avô e me parecia muitíssimo mais velho do que ele. Não sei se foi isso ou a maneira de usar o pince-nez, ou o jeito de falar que o marcou tão profundamente na minha memória. Tomásia era a velha preta cozinheira da casa da Rua União. Tinha sido escrava do meu avô e fora por ele alforriada. Naquela cozinha, com seu vasto fogão de tijolo, o seu enorme pilão, e que pelas festas de Santo Antônio, São João e São Pedro resplandecia quentemente com as grandes tachas de cobre areadas até o vermelho, Tomásia, pequena, franzina e de poucas falas, mandava sem contraste e me inspirava um sagrado respeito com as suas duas únicas respostas a todas as minhas perguntas: "hum" e "hum-hum", que eu interpretava por "sim" e "não". Rosa era a mulata clara e quase bonita que nos servia de ama-seca. Nela minha mãe descansava, porque a sabia de toda confiança. Rosa fazia-se obedecer sem estardalhaços e sentimentalidades. Quando estávamos à noitinha no mais aceso das rodas de brinquedo, era hora de dormir, vinha ela e dizia peremptória: "Leite e cama!" E íamos como carneirinhos para o leite e a cama. Mas havia, antes do sono as histórias que Rosa sabia contar tão bem...
"Vou-me embora p'ra Pasárgada" foi o poema de mais longa gestação em toda a minha obra. Vi pela primeira vez esse nome de Pasárgada quando tinha os meus dezesseis anos e foi num autor grego. Estava certo de ter sido em Xenofonte, mas já vasculhei duas ou três vezes a Ciropédia e não encontrei a passagem. O douto Frei Damião Berge informou-me que Estrabão e Arrimo, autores que nunca li, falam na famosa cidade fundada por Ciro, o antigo, no local preciso que vencera a Astíages. Ficava a sueste de Persépolis. Esse nome de Pasárgada, que significa "campo dos persas" ou "tesouro dos persas", suscitou na minha imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delícias, como o de "L'invitationa au voyage" de Baudelaire. Mais de vinte anos depois, quando eu morava só na minha casa da rua do Curvelo, num momento de fundo desânimo, da mais aguda sensação de tudo o que eu não tinha feito na minha vida por motivo da doença, saltou-me de súbito do subconsciente este grito estapafúrdio: "Vou-me embora para Pasárgada!" Senti na redondilha a primeira célula de um poema, e tentei realizá-lo, mas fracassei. Abandonei a idéia. Alguns anos depois, em idênticas circunstâncias de desalento e tédio, ocorreu-me o mesmo desabafo de evasão da "vida besta". Desta vez o poema saiu sem esforço como se já estivesse pronto dentro de mim. Gosto deste poema porque vejo nele, em escorço, toda a minha vida; e também porque parece que nele soube transmitir a tantas outras pessoas a visão e promessa da minha adolescência - essa Pasárgada onde podemos viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar. Não sou arquiteto como meu pai desejava, não fiz nenhuma casa, mas reconstruí e "não como forma imperfeita neste mundo de aparências", uma cidade ilustre, que hoje não é mais a Pasárgada de Ciro, e sim "a minha" Pasárgada.
"Oração no Saco de Mangaratiba" não é poema, é resíduo de poema. Em 1926 passei duas semanas num sítio distante de Mangaratiba umas duas horas de canoa. A ida para lá, noite fechada ainda, foi a viagem mais bonita que já fiz na minha vida. Vênus luzia sobre nós tão grande, tão intensa, tão bela, que chegava a parecer escandalosa e dava vontade de morrer (daquela hora é que iria sair o título do meu livro seguinte: Estrela da Manhã). A viagem de volta foi também noturna. Saímos da Praia da Figueira às duas da madrugada para apanhar em Mangarataiba o trem das cinco. Ao virarmos a Ponta da Paciência, levantou-se um vento que quase dá conosco na Restinga da Marambaia. Chegamos em cima da hora para pegar o trem. Caí derreado no banco do vagão. E então, numa espécie de subdelírio da extrema fadiga, todo um poema, o mais longo que já se formou na minha cabeça, começou a fluir dentro de mim. O meu esgotamento era tal, que não tive ânimo para tomar o menor apontamento. Pensei poder recompor os versos em casa. Mas cheguei caí no sono ... Quando acordei, só me restavam na memória os seis versos da oração, única estrofe regular do poema, que era no mais em verso-livre. Nunca me consolei desse desastre."


* * * * * * * * * * * * * * * * * * **

Ler um poema se parece um pouco com olhar uma mulher.
Às vezes gostamos do rosto, mas não dos seios; de outras, admiramos as coxas e empacamos no rosto, e só de poucas admiramos tudo. Embora de algumas gostemos além do razoável sem entender porque.
Poemas também são assim. É exceção termos nossa admiração integral por algum. Podemos gostar do início e do meio; de outras, só do início ou do final, e também acontece de gostarmos sem conseguir explicar o motivo.
A admiração que temos por um determinado poema não é uniforme; é normal que num poema comum apareça uma sacada interessante, ou o contrário.

Em dois poemas de Libertinagem eu sinto isso; “Não sei dançar” e “Mulheres”, dos quais gosto muito do início, mas perco o interesse no resto do poema.

Acho a primeira estrofe de “Não sei dançar” perfeita:

“Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...”

Mas depois o poema se torna quase uma crônica sem interesse para mim.

Da mesma forma, o poema “Mulheres”:

“Como as mulheres são lindas!
Inútil pensar que é do vestido...
E depois não há só as bonitas:
Há também as simpáticas.
E as feias, certas feias em cujos olhos vejo isto:
Uma menininha que é batida e pisada e nunca sai da cozinha.

Como deve ser bom gostar de uma feia!
O meu amor porém não tem bondade alguma.
É fraco! Fraco!”


Depois, o final me parece que fica pobre.

Não sei se essa pobreza se deve à influência do “poema-piada” ou da “obrigação de ser moderno”. Mas eu considero que ele não consegue manter a força.

* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Mas “O Cacto” é um dos grandes poemas que eu conheço:

“O CACTO

Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.

Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas
                                          [privou a cidade de iluminação e energia:

- Era belo, áspero, intratável.”

Petrópolis, 1925





Primeiro vamos falar desses dois cidadões, Laocoonte e Ugolino, citados no início.

"Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados."


Laocoonte
O conjunto escultórico de Laocoonte, atribuído a Agesandro, Atenodoro e Polidoro (três escultores da ilha de Rodes), foi criado entre 42 e 20 a.C. Ficava no palácio do Imperador romano Tito, e atualmente está no museu do Vaticano.
Laocoonte é um personagem da Odisséia, de Homero. Era um sacerdote troiano que pressentiu o perigo que o cavalo de Tróia representava para a cidade e protestou contra a idéia de o levarem para dentro das muralhas. Segundo Homero, Poseidon, um deus que favorecia os gregos, enviou duas serpentes para calar a voz da oposição. Assim, Laocoonte e seus dois filhos foram estrangulados pelas serpentes marinhas, e o cavalo foi levado para Tróia, com as conseqüências que se conhece.

Ugolino e os filhos

Já Ugolino e os filhos é um outro conjunto já esculpido por diversos artistas (Rodin inclusive), sendo mais conhecido o de Jean-Baptiste Carpeaux, de 1857, atualmente no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA).
O Conde Ugolino é um dos personagens da Divina Comédia de Dante. Derrotado na luta pelo controle político da cidade de Pizza, foi julgado como traidor em 1289, e condenado a morrer de fome, tendo sido trancado com os filhos e netos numa torre, cuja chave foi lançada no rio.
Na Divina Comédia, Dante o encontra no Inferno por que ele teria comido os filhos e netos antes de morrer de fome.
Aliás, o Conde existiu de fato, porém, há poucos anos exumaram os restos dele e da família, e não encontraram marcas de dentes nos ossos, pelo que deduziram (sete séculos depois) que seu suposto canibalismo fora maledicência de Dante.

Mas o que importa aqui é a beleza e tragédia que a imagem escolhida por MB passa do Cacto, e, ao vermos as esculturas nas quais se baseou, também a dignidade e o tamanho que lhe dá, ao compará-lo com duas obras plásticas grandiosas, e inserí-lo na Odisséia e na Divina Comédia.
É difícil para mim comentar o poema. Ele faz parte dos que eu mais gosto sem entender porque. Acho que é por falar das coisas que são grandiosas e maiores do que a morte sem ter a consciência disso, pois mesmo morto, o Cacto ainda mostra sua força, como um Deus.
"- Era belo, áspero, intratável.”

É um poema pequeno, mas poderoso, tem apenas onze versos, mas é imensamente grande. Inclusive, o poema todo tem versos muito longos, sendo que o penúltimo verso tem mais de trinta sílabas, o que lhe dá um ritmo intenso, porém "bastante sem ritmo".
Era um dos que MB mais gostava, e é o preferido de muita gente. Numa enquete feita pela "Folha de São Paulo" ele foi escolhido entre os trinta melhores da poesia brasileira.

* * * * * * * * * * * * * * * * *

"PROFUNDAMENTE

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegrias e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo profundamente.

                        *

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosas
Onde estão todos eles?
- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente."


Gosto desse poema, primeiramente, porque também adormeci no colo de uma tia durante uma festa de São João. Só não acordei no meio da noite, mas no dia seguinte. E a sensação de perda só foi minorada durante a manhã. Creio que acordar ainda de noite deva ser muito pior.

Acho interessante que ele comece o poema falando de ontem : "Quando ontem adormeci Na noite de São João", como se tivesse sido ontem mesmo. Só depois, na segunda parte, ele conta que isso aconteceu quando ele tinha seis anos.
Mas a sensação de perda daquela noite se mantém, e parece que essa perda foi ontem. Eu tambem sinto isso, ainda que, no meu caso, entre hoje e o "meu ontem" já tenham se passado mais de cinquenta anos.
E no final do poema, MB faz uma ponte entre aquela noite, em que todos já dormiam e ele acordou, e agora; quando todos dormem uma outra noite e ele está vivo.

* * * * * * * * * * * * * * * * * * *

"NA BOCA

Sempre tristíssimas estas cantigas de carnaval
Paixão
Ciúme
Dor daquilo que não se pode dizer

Felizmente existe o álcool na vida
E nos três dias de carnaval éter de lança-perfume
Quem me dera ser como o rapaz desvairado!
O ano passado ele parava diante das mulheres bonitas
E gritava pedindo o esguicho de cloretilo:
- Na boca! Na boca!
Umas davam-lhe as costas com repugnância
Outras porém faziam-lhe a vontade.

Ainda existem mulheres bastante puras para fazer
                                                                  [vontade aos viciados

Dorinha meu amor...

se ela fosse bastante pura eu iria agora gritar-lhe como
                                                                  [o outro:
- Na boca! Na boca!"



Me parece um poema sem ritmo, mas nada alí está demais.
A devassidão assumida é o que eu gosto nele. Aceita-se o álcool, o eter e o vício como forma de pureza.
Quando ele lembra da Dorinha e fala: "Na boca", seria o beijo ou o sexo oral ?
É estranho que a dor de "corno" é a dor que não se pode dizer, mas pedir "na boca", é permitido.


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"O ÚLTIMO POEMA

Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e
                                                [menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes
                                                [mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação"
.

O que admiro é que para o seu último poema, ele retira das coisas um atributo delas que é sua parte mais expressiva, mas o que delas resta sem essa parte parece até maior do que a coisa que antes havia, por se tornar um enigma. É como se a coisa que restasse existisse a partir da sua inexistência. Será isso a morte ?

O poema é terno por dizer as coisas mais simples, porém "menos intencionais".
Que seja ardente como "um soluço sem lágrimas".
Que tenha a beleza das flores "quase sem perfume".
"A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos". Como se sabe, o diamante é a cristalização do carbono sob alta pressão, à temperatura de 1.650ºC. Assim, ele pede a pureza da chama, e não a do diamante.
E a paixão dos suicidas "que se matam sem explicação."
Afinal, se matar sem motivo conhecido e não deixar sequer um bilhetinho explicando a razão deve gerar uma ausência maior do que toda presença que o suicida tenha tido durante sua vida.

Não sei se esse "último poema", tão forte pelo despojamento, seria possível, mas é a poesia mais pura escrever desejando-o.

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