domingo, 13 de fevereiro de 2011

Mario Quintana, "A Rua dos Cataventos"


Mario Quintana estreou no ano de 1940, com o livro de sonetos "A RUA DOS CATA-VENTOS". Nascido em 1906, já tinha 34 anos; uma idade considerada tardia para um livro de estréia.
O livro não fez muito sucesso de público ou de crítica, pois em 1940 (apenas 18 anos após a Semana de Arte Moderna), o Brasil literário ainda vivia o terremoto do modernismo, e digeria poetas como Drummond, Bandeira e Mário de Andrade, grandes pela qualidade e pela capacidade de criar polêmica.
Assim, nesse clima e com essa "concorrência", seria impossível para um sonetista gaucho estreante, fora do circuito São Paulo-Rio-Minas, se destacar.
Lendo-o agora, vemos que aqueles sonetos tinham traços simbolistas, mas não parnasianos, e o espírito "moleque" de alguns era bem próximo do modernismo, porém, existem verdades cujo cristal só brilha com o tempo.
Acredito que se Mario parasse sua produção poética nesse livro, teria sido esquecido. Mas sua obra posterior, não só profunda e coerente como vasta, superou o livro de estréia, e deixou a marca da sua linguagem e universo particulares na poesia brasileira.
O que mais gosto neles é que, embora o melhor da sua poesia (para mim) seja marcadamente em versos livres, seu universo, seu humor, suas ironias e armadilhas, seu lirismo infantil e, sobretudo, certa delicadeza tão frágil que dá a impressão de que o poema flutua, já estavam presentes mesmo no soneto metrificado e rimado.
Outro aspecto interessante é que, embora Mario seja um poeta merecidamente amado na sua terra, se considerarmos a mitologia construída e muito cultuada pelos seus conterrâneos gaúchos, nem ele nem seus poemas fazem parte dela, e até parecem querer distância.
Se tivesse nascido em qualquer lugar do Brasil, creio que sua poesia seria a mesma, e a sua Porto Alegre poética poderia ser qualquer outra cidade brasileira.
Sua poesia é universal, assim como são universais as "ruas", que lhe inspiraram tantos poemas.

A seguir, farei uma seleção dos que mais gostei entre os 35 sonetos do livro:


II

Dorme, ruazinha... É tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranqüilos...

Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...

O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada...

Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração...

III

Quando os meus olhos de manhã se abriram,
Fecharam-se de novo, deslumbrados:
Uns peixes, em reflexos doirados,
Voavam na luz: dentro da luz sumiram-se...

Rua em rua, acenderam-se os telhados.
Num claro riso as tabuletas riram.
E até no canto onde os deixei guardados
Os meus sapatos velhos refloriram.

Quase que eu saio voando céu em fora!
Evitemos, Senhor, esse prodígio...
As famílias, que haviam de dizer?

Nenhum milagre é permitido agora...
E lá se iria o resto de prestígio
Que no meu bairro eu inda possa ter!...

IV

Minha rua está cheia de pregões.
Parece que estou vendo com os ouvidos:
"Couves! Abacaxis! Caquis! Melões!"
Eu vou sair pro Carnaval dos ruídos,

Mas vem, Anjo da Guarda... Por que pões
Horrorizado as mãos em teus ouvidos?
Anda: escutemos esses palavrões
Que trocam dois gavroches atrevidos!

Pra que viver assim num outro plano?
Entremos no bulício quotidiano...
O ritmo da rua nos convida.

Vem! Vamos cair na multidão!
Não é poesia socialista... Não,
Meu pobre Anjo... É... simplesmente... a Vida!...

VI

Na minha rua há um menininho doente.
Enquanto os outros partem para a escola,
Junto à janela, sonhadoramente,
Ele ouve o sapateiro bater sola.

Ouve também o carpinteiro, em frente,
Que uma canção napolitana engrola.
E pouco a pouco, gradativamente,
O sofrimento que ele tem se evola...

Mas nesta rua há um operário triste:
Não canta nada na manhã sonora
E o menino nem sonha que ele existe.

Ele trabalha silenciosamente...
E está compondo este soneto agora,
Pra alminha boa do menino doente...


VIII (a Dyonélio Machado)

Recordo ainda... E nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...

Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...

Estrada fora após segui... Mas, ai,
Embora idade e senso eu aparente,
Não vos iluda o velho que aqui vai:

Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai...
Que envelheceu, um dia, de repente!...

IX (a Emílio Kemp)

É a mesma ruazinha sossegada,
Com as velhas rondas e as canções de outrora...
E os meus lindos pregões da madrugada
Passam cantando ruazinha em fora!

Mas parece que a luz está cansada...
E, não sei como, tudo tem, agora,
Essa tonalidade amarelada
Dos cartazes que o tempo descolora...

Sim, desses cartazes ante os quais
Nós às vezes paramos, indecisos...
Mas para quê?... Se não adiantam mais!...

Pobres cartazes por aí afora
Que inda anunciam: ALEGRIA — RISOS
Depois do Circo já ter ido embora!...

X

Eu faço versos como os saltimbancos
Desconjuntam os ossos doloridos.
A entrada é livre para os conhecidos...
Sentai, Amadas, nos primeiros bancos!

Vão começar as convulsões e arrancos
Sobre os velhos tapetes estendidos...
Olhai o coração que entre gemidos
Giro na ponta dos meus dedos brancos!

"Meu Deus! Mas tu não mudas o programa!"
Protesta a clara voz das Bem-Amadas.
"Que tédio!" o coro dos Amigos clama.

"Mas que vos dar de novo e de imprevisto?"
Digo... e retorço as pobres mãos cansadas:
"Eu sei chorar... Eu sei sofrer... Só isto!"

XII

Tudo tão vago... Sei que havia um rio...
Um choro aflito... Alguém cantou, no entanto...
E ao monótono embalo do acalanto
O choro pouco a pouco se extinguiu...

O Menino dormia... Mas o canto
Natural como as águas prosseguiu...
E ia purificando como um rio
Meu coração que enegrecera tanto...

E era a voz que eu ouvi em pequenino...
E era Maria, junto à correnteza,
Lavando as roupas de Jesus Menino...

Eras tu... que ao me ver neste abandono,
Daí do Céu cantavas com certeza
Para embalar inda uma vez meu sono!...

XV (a Érico Veríssimo)

O dia abriu seu pára-sol bordado
De nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.

Depois surgiu, no céu azul arqueado,
A Lua — a Lua! — em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
Parou, ficou a olhá-la admirado...

Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!

E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranqüila de um açude...

XVI (a Nilo Milano)

Triste encanto das tardes borralheiras
Que enchem de cinza o coração da gente!
A tarde lembra um passarinho doente
A pipilar os pingos das goteiras...

A tarde pobre fica, horas inteiras,
A espiar pelas vidraças, tristemente,
O crepitar das brasas na lareira...
Meu Deus... o frio que a pobrezinha sente!

Por que é que esses Arcanjos neurastênicos
Só usam névoa em seus efeitos cênicos?
Nenhum azul para te distraíres...

Ah, se eu pudesse, tardezinha pobre,
Eu pintava trezentos arco-íris
Nesse tristonho céu que nos encobre!...

XVII

Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela, amarelada...
Como o único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!

XIX (a Moysés Vellinho)

Minha morte nasceu quando eu nasci.
Despertou, balbuciou, cresceu comigo...
E dançamos de roda ao luar amigo
Na pequenina rua em que vivi.

Já não tem mais aquele jeito antigo
De rir e que, ai de mim, também perdi!
Mas inda agora a estou sentindo aqui,
Grave e boa, a escutar o que lhe digo:

Tu que és a minha doce Prometida,
Nem sei quando serão as nossas bodas,
Se hoje mesmo... ou no fim de longa vida...

E as horas lá se vão, loucas ou tristes...
Mas é tão bom, em meio às horas todas,
Pensar em ti... saber que tu existes!

XX (a Athos Damasceno Ferreira)

Estou sentado sobre a minha mala
No velho bergantim desmantelado...
Quanto tempo, meu Deus, malbaratado
Em tanta inútil, misteriosa escala!

Joguei a minha bússola quebrada
Às águas fundas... E afinal sem norte,
Como o velho Sindbad de alma cansada
Eu nada mais desejo, nem a morte...

Delícia de ficar deitado ao fundo
Do barco, a vos olhar, velas paradas!
Se em toda parte é sempre o Fim do Mundo,

Pra que partir? Sempre se chega, enfim...
Pra que seguir empós das alvoradas
Se, por si mesmas, elas vêm a mim?

XXI (aos amigos mortos)

Gadêa... Pelichek... Sebastião...
Lobo Alvim... Ah, meus velhos camaradas!
Aonde foram vocês? Onde é que estão
Aquelas nossas ideais noitadas?

Fiquei sozinho... Mas não creio, não,
Estejam nossas almas separadas!
Às vezes sinto aqui, nestas calçadas,
O passo amigo de vocês... E então

Não me constranjo de sentir-me alegre,
De amar a vida assim, por mais que ela nos minta...
E no meu romantismo vagabundo

Eu sei que nestes céus de Porto Alegre
É para nós que inda São Pedro pinta
Os mais belos crepúsculos do mundo!...

XXVI

Deve haver tanta coisa desabada
Lá dentro... Mas não sei... É bom ficar
Aqui, bebendo um chope no meu bar...
E tu, deixa-me em paz, Alma Penada!

Não quero ouvir essa interior balada...
Saudade... amor... cantigas de ninar...
Sei que lá dentro apenas sopra um ar
De morte... Não, não sei! não sei mais nada!...

Manchas de sangue inda por lá ficaram,
Em cada sala em que me assassinaram...
Pra que lembrar essa medonha história?

Eis-me aqui, recomposto, sem um ai.
Sou o meu próprio Frankenstein — olhai!
O belo monstro ingênuo e sem memória...

XXVII

Quando a luz estender a roupa nos telhados
E for todo o horizonte um frêmito de palmas
E junto ao leito fundo nossas duas almas
Chamarem nossos corpos nus, entrelaçados,

Seremos, na manhã, duas máscaras calmas
E felizes, de grandes olhos claros e rasgados...
Depois, volvendo ao sol as nossas quatro palmas,
Encheremos o céu de vôos encantados!...

E as rosas da Cidade inda serão mais rosas,
Serão todos felizes, sem saber por quê...
Até os cegos, os entrevadinhos... E

Vestidos, contra o azul, de tons vibrantes e violentos,
Nós improvisaremos danças espantosas
Sobre os telhados altos, entre o fumo e os cata-ventos!


XXIX (para o Sebastião)

Olha! Eu folheio o nosso Livro Santo...
Lembras-te? O "Só"! Que vida, aquela vida...
Vivíamos os dois na Torre de Anto...
Torre tão alta... em pleno azul erguida!...

O resto, que importava?... E no entretanto
Tu deixaste a leitura interrompida...
E em vão, nos versos que tu lias tanto,
Inda procuro a tua voz perdida...

E continuo a ler, nessa ilusão
De que talvez me estejas escutando...
Porém tu dormes... Que dormir profundo!

E os pobres versos do Anto lá se vão...
Um por um... como folhas... despencando...
Sobre as águas tristonhas do Outro Mundo...

XXXI

É outono. E é Verlaine... O Velho Outono
Ou o Velho Poeta atira-me à janela
Uma das muitas folhas amarelas
De que ele é o dispersivo dono...

E há uns salgueiros a pender de sono
Sobre um fundo de pálida aquarela.
E há (está previsto) este abandono...
Ó velhas rimas! É acabar com elas!

Mas o Outono apanha-as... E, sutil,
Com o rosto a rir-se em rugazinhas mil,
Toca de novo o seu fatal motivo:

Um quê de melancólico e solene
— E para todo o sempre evocativo —
Na frauta enferrujada de Verlaine...

XXXIII (a Reynaldo Moura)

Que bom ficar assim, horas inteiras,
Fumando... e olhando as lentas espirais...
Enquanto, fora, cantam os beirais
A baladilha ingênua das goteiras

E vai a Névoa, a bruxa silenciosa,
Transformando a Cidade, mais e mais,
Nessa Londres longínqua, misteriosa
Das poéticas novelas policiais...

Que bom, depois, sair por essas ruas,
Onde os lampiões, com sua luz febrenta,
São sóis enfermos a fingir de luas...

Sair assim (tudo esquecer talvez!)
E ir andando, pela névoa lenta,
Com a displicência de um fantasma inglês...


XXXIV

Lá onde a luz do último lampião
Uns tristes charcos alumia embalde,
Moram, numa infinita solidão,
As estrelinhas quietas do arrabalde...

Na cidade, quem é que atenta nelas,
Na sua história anônima, escondida?
São menininhas pobres às janelas,
Olhando inutilmente para a vida...

Quando ao Centro descemos à noitinha,
Penso às vezes o quanto essas meninas
No seu desejo triste hão de sofrer

Ao ver os bondes que, do fim da linha,
Partem, iluminados como vitrinas,
Para a doida Cidade do Prazer!...


XXXV

Quando eu morrer e no frescor de lua
Da casa nova me quedar a sós,
Deixai-me em paz na minha quieta rua...
Nada mais quero com nenhum de vós!

Quero é ficar com alguns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão...
Que lindo a Eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da Expressão!...

Eu levarei comigo as madrugadas,
Pôr-de-sóis, algum luar, asas em bando,
Mais o rir das primeiras namoradas...

E um dia a morte há de fitar com espanto
Os fios de vida que eu urdi, cantando,
Na orla negra do seu negro manto...

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