sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Cassiano Ricardo, "Poderia ter sido eu"

I - O MENINO 1904

Quem não guardou, entre as recordações da infância,
o cego do realejo, com o seu pássaro ?
Aquele que - olhos brancos na órbita
da manhã rosa -
em cada esquina faz ressoar o seu lamurioso instrumento
à manivela ?

O cego do realejo, com o seu pássaro,
parou em frente à casa onde nasci (era eu menino)
e aí tocou a sua música mais dolorosa,
mais estridente.
Os transeuntes se aglomeraram em torno.
E logo o pássaro, por um vão da gaiola,
que havia ao lado do instrumento,
canário mágico, que parecia obediente a uma determinação
                                                                                                        [invisível,
me trouxe, preso ao bico,
um pequeno bilhete azul, retangular,
onde se achava escrito o meu futuro.

Hoje eu perguntaria :
a grade da gaiola de onde o pássaro
distribuía o futuro,
não era, ao mesmo tempo, uma outra grade
- a minha, a em que eu é que estou preso ?

II - O PÁSSARO E OS ACONTECIMENTOS

Mas, que dizia o pássaro
quando me fez presente do futuro ?
Que o cometa Halley me derramaria prata
nos olhos ; derramou.
Que eu ficaria louco. (Fiquei.)
Pois ando, só, de lunocípede.
Que eu morreria, ao todo, sete vezes
(já morri quatro.)
Que eu seria obrigado, por ofício,
a atravessar salões de baile (atravessei)
como um besouro rútilo a se debater numa floresta
de espelhos;
a ser exatamente (e eu fui)
o que menos quisesse ser, a parecer
o que menos fosse,
no mundo, onde é proibido ser sincero.
Que eu seria parente dos pássaros
(e eu sou mesmo)
por causa da asa, irmã do meu pensamento.
Que o santo de minha predileção
seria S. Francisco de Assis.
Realmente, S. Francisco é o meu santo.
(Aquele com quem aprendo a ser simples,
simples como a água, e irmão do pirilampo.)
Que os meus maiores inimigos
seriam a complicação, o ornato,
o colarinho duro, o parnasianismo
e a gravata.,
e - de fato - a minha luta
é a da humildade
contra a complicação, o ornamental,
o excesso.
(Sou um bicho de concha
sem nenhuma fosforescência).
Que eu não seria presidente da República.
(Não fui.)

Mas eu não fui, também,
outras coisas, obscuras ou brilhantes,
que poderia ter sido no baralho humano
do espelho,
ou no cruzamento de uma rua com outra.

III - MONÓLOGO, SOB UMA ÁRVORE NA PRAÇA ONZE

Ainda menino, eu vi passar o homicida.
Ia levado pelos policiais, seguido
pela multidão, que lhe queria ver o rosto,
pálido, transfigurado.
Imaginei-me em seu lugar e, através desse pensamento
“poderia ter sido eu”,
me vi arrastado, preso, esbofeteado
por meus irmãos, de rua em rua.

Meteram-me na prisão, queriam que eu falasse
o que não sabia. Amarraram-me as mãos,
uma à outra, as duas para o lado das costas,
e o escrivão - sem que eu dissesse nada -
bateu à máquina, os monossílabos - que arrancou ao meu corpo,
como se arrancam folhas de uma árvore.
Voltei do pesadelo, examinei a minha roupa,
não havia sinal de sangue, não havia sido
eu.
O que havia era o tráfego, os sinais luminosos,
os títulos dos jornais,
as cruzes, as encruzilhadas, que dançavam
em torno do meu ser, a dança mágica
do eu não ter sido.

O cego do realejo e o pássaro fizeram,
muitas vezes a volta ao mundo.
As estrelas passaram voando em caminho do oeste.
A esperança moveu a roda verde.

E agora
estou embaixo desta árvore em flor,
mas ainda tenho o coração batendo:
poderia ter sido eu.

E agora,
a paisagem caminha pra um lado, a lua
pra outro, dividindo a noite pelo meio.
Só as árvores é que ficam sentadas. Só eu
estou sentado sob esta árvore. Mas ...
(ainda tenho o coração batendo)
poderia ter sido eu.


IV - A ROSA DAS TRÊS GRAÇAS

Mas não o que matou, somente,
poderia ter sido eu.
O que roubou, o que cobiçou o bem do próximo,
o que falsificou a assinatura do gerente do banco,
o que assaltou na rua o transeunte,
o que embarcou por um navio o corpo em sangue e ouro
                                                                             [da mulher assassinada,
qualquer deles, enfim, no signo da balança,
poderia ter sido eu.
Por um minuto a menos - entre a rosa e o luto -,
ou a mais, no punhal da hora exata,
na corola dos números de prata.
A quem agradecer o eu não ter sido ?
A mim mesmo ? Tanto egoísmo fluorescente,
não caberia num vidro assim tão frágil.
A Deus ? Devo reconhecer que Deus
é que escolhe - Ele próprio - os que devem ser maus,
entre as cabeças louras da inocência.

Não será a Deus, indiferente a este jogo,
em que os culpados é que fazem os inocentes ?
Em que uns tem que fazer o mal
para que os outros não o façam. Entre doze,
um está escrito.

Será ao próprio ladrão, ao falsificador,
ao que roubou ao próximo o seu único amor,
que devo agradecer o terem feito
o que não fiz ?

(Os inocentes deverão beijar, como um pássaro às flores,
as mãos dos culpados.)
E saio entre a multidão, e corro a procurá-los,
aqui e ali, na floresta andarilha.
Entre ângulos faciais, cada qual mais obscuro.
(Que eles estarão, sempre, no desencontro de uma rua com outra.)

No afã de lhes levar meu agradecimento.

Mas eles compreenderão meu agradecimento ?

Compreenderão que lhes agradeço é a graça
de terem feito o que não fiz ? ou de haverem cumprido,
em meu lugar, uma sentença bíblica ?

Rua cheia de rostos glabros nas janelas
da noite mais vertical que universal.
Anúncios que ora acendem, ora apagam (não havia)
as sílabas verdes do (sido eu) dicionário
noturno.

(Não pensarão que sou um louco, um cúmplice,
um detetive, um oficial de justiça ?)

As palavras caídas na água das calçadas.
Sido. Havia. Não. Eu.
A cruz móvel das ruas, cruz do povo,
e as quatro asas : o oeste, o leste, o norte, o sul,
já inúteis em meu corpo
à hora do desastre, um grito, a interrupção do trânsito.

(Poderia ter sido eu !)

V - O IRMÃO INGLÓRIO

Mas, como agradecer ao assassino,
ao ladrão. ao falsário - o que fizeram,
sem me pungir, além do que fizeram ?
Se a dor dos outros nunca foi tão minha ?
no caminho que vai entre as estrelas

e o número de uma porta de casa ?
no jogo das fatalidades, rosa e luto ?
Se não encontro a rosa das três graças ?

Se nunca fui tão responsável
pelo que os outros fazem, como nesta hora
simbólica e putativa ?

Se sou eu, entre os bichos e as flores,
irmão inglório mas obrigatório
dos que - como eu - nasceram homens,
o coração batendo entre Abel e Caim ?
Se escorre, por meus olhos,
o sangue do transeunte ?

VI - AGRADECIMENTO POR UM VÃO DE GRADE

Ah, eu quero agradecer - agora o sei - é ao pássaro inocente
por não ter incluído
esses terríveis acontecimentos,
essas sílabas verdes no destino
que me entregou pelo vão da gaiola
enquanto o cego (para isso ele era cego)
tocava o seu realejo.

2 comentários:

  1. Olá, João Renato,
    Copiei no blog Soma, o Enigma
    esse belo poema de Cassiano Ricardo,
    poeta joseense.
    Agora vou procurar aqui em casa em que livro foi publicado.
    Obrigada por tê-lo publicado aqui.
    Um abração,
    Jura.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Juracy,
      Foi publicado no "Poemas Murais", de 1950.
      Abraço,
      JR.

      Excluir