quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
Mário de Andrade
"Girassol da madrugada"
1.
De uma cantante alegria onde riem-se as alvas uiaras
Te olho como se deve olhar, contemplação,
E a lâmina que a luz tauxia de indolências
É toda um esplendor de ti, riso escolhido no céu.
Assim. Que jamais um pudor te humanize. É feliz
Deixar que o meu olhar te conceda o que é teu,
Carne que é flor de girassol! sombra de anil!
Eu encontro em mim mesmo uma espécie de abril
Em que se espalha o teu sinal, suave, perpetuamente.
2.
Diga aos menos que nem você quer mais desses gestos traiçoeiros
Em que o amor se compõe feito uma luta;
Isso trará mais paz, por quanto o caminho foi longo,
Abrindo o nosso passo através dos espelhos maduros.
Você não diz, porém o vosso corpo está delindo no ar,
Você apenas esconde os olhos no meu braço e encontra
[a paz na escuridão.
A noite se esvai lá fora serena sobre os telhados,
Enquanto o nosso par aguarda, soleníssimo,
Radiando luz, nesse esplendor dos que não sabem mais
[pra onde ir.
3.
Si o teu perfil é purríssimo, si os teus lábios
São crianças que se esvaecem no leite,
Si é pueril o teu olhar que não reflete por detrás,
Si te inclinas e a sombra caminha na direção do futuro:
Eu sei que tu sabes o que eu nem sei si tu sabes,
Em ti se resume a perversa e imaculada correria dos fatos,
És grande por demais para que sejas só felicidade!
És tudo o que eu aceito que me sejas
Só pra que o sono passe, e me acordares
Com a aurora incalculavelmente mansa do sorriso.
4.
Não abandonarei jamais de-noite as tuas carícias,
De-dia não seremos nada e as ambições convulsivas
Nos turbilhonarão com as malícias da poeira
Em que o sol chapeará torvelins uniformes.
E voltarei sempre de-noite às tuas carícias,
E serão búzios e bumbas e tripúdios invisíveis
Porque a Divinidade muito naturalmente virá.
Agressiva Ela virá sentar em nosso teto,
E seus monstruosos pés pesarão sobre nossas cabeças,
De-noite, sobre nossas cabeças inutilizadas pelo amor.
5.
Teu dedo curioso me segue lento no rosto
Os sulcos, as sombras machucadas por onde a vida passou.
Que silêncio, prenda minha... Que desvio triunfal da verdade,
Que círculos vagarosos na lagoa em que uma asa gratuita roçou...
Tive quatro amores eternos...
O primeiro era uma donzela,
O segundo... eclipse, boi que fala, cataclisma,
O terceiro era a rica senhora,
O quarto és tu... E eu afinal me repousei dos meus cuidados.
6.
Os trens-de-ferro estão longe, as florestas e as bonitas cidades,
Não há senão Narciso entre nós dois, lagoa,
Já se perdeu saciado o desperdício das uiaras,
Há só meu êxtase pousando devagar sobre você.
Oh que pureza sem impaciência nos calma
Numa fragrância imaterial, enquanto os dois corpos se agradam,
Impossíveis que nem a morte e os bons princípios.
Que silêncio caiu sobre a vossa paisagem de excesso dourado!
Nem beijo, nem brisa... Só, no antro da noite, a insônia
[apaixonada
Em que a paz interior brinca de ser tristeza.
7.
A noite se esvai lá fora serena sobre os telhados
Num vago rumor confuso de mar e asas espalmadas,
Eu, debruçado sobre vossa perfeição, num cessar ardentíssimo,
Agora pouso, agora vou beber vosso olhar estagnado,
[oh minha lagoa!
Eis que ciumenta noção de tempo, tropeçando em maracás,
Assusta guarás, colhereiras e briga com os arlequins,
Vem chegando a manhã. Porém, mais compacta que a morte,
Para nós é a sonolenta noite que nasce detrás das carícias
[esparsas.
Flor! Flor!...
Graça dourada!...
Flor...
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