quarta-feira, 27 de julho de 2011

CARNAVAL, de Manuel Bandeira

Sobre "CARNAVAL", assim MB fala no Itinerário:

"O meu Carnaval começava ruidosamente,como o de Schumann, mas foi-me saindo tão triste e mofino, que em vez de acabar com uma galharda marcha contra filisteus, terminou chochamente "not with a bang but a whimper".

É um livro sem unidade. Sob o pretexto de que no Carnaval todas as fantasias se permitem, admiti na coletânea alguns fundos de gaveta, três ou quatro sonetos que não passam de pastiches parnasianos (“A Ceia”, “Menipo”, “A Morte de Pã” e mesmo “Verdes Mares”, que este até o Pedro Dantas, meu fã nº 1, considera imprestável), e isto ao lado das alfinetadas dos “Sapos”.

A propósito desta sátira, devo dizer que a dirigi mais contra certos ridículos do pós-parnasianismo. É verdade que nos versos

“A grande arte é como
Lavor de joalheiro”

parodiei o Bilac da “Profissão de Fé”, (“Imito o ourives quando escrevo...”). Duas carapuças havia, endereçada uma ao Hermes Fontes, outra ao Goulart de Andrade. O poeta das Apoteoses, no prefacio ao livro chamara a atenção do público para o fato de não haver nos seus versos rimas de palavras cognatas; Goulart de Andrade publicara uns poemas em que adotara a rima francesa com consoante de apoio (assim chamam os franceses a consoante que precede a vogal tônica da rima), mas nunca tendo ela sido usada em poesia de língua portuguesa, achou o poeta que devia alertar o leitor daquela inovação e pôs sob o título dos poemas a declaração entre aspas: “Obrigado à consoante de apoio”. Goulart não se magoou com a minha brincadeira e sete anos depois foi quem me arranjou editor para o meu volume de Poesias.

Com Carnaval recebi o meu batismo de fogo. Certa revista deu sobre ele uma nota curta, mais ou menos nestes termos: “O Sr. Manuel Bandeira inicia o seu livro com o seguinte verso: “Quero beber ! cantar asneiras...” Pois conseguiu plenamente o que desejava”. Na Revista do Brasil, ao tempo dirigida por Monteiro Lobato, apareceu este comentário: “Carnaval – Manuel Bandeira – Rio,1919. É este um folhetinho de versos como os outros. Bem como os outros não: porque não há em todos belezas como estas, de um subjetivismo complicado que, noutro tempo, se chamava tolice”. Seguiu-se a transcrição de “Debussy” e depois: “Escola muito conhecida, como se vê. Há quem goste e tem papa francês em São Paulo”. Esse papa francês, na idéia do crítico, parece que era Freitas Valle, o Jacques d’Avray de tantos belos poemas em francês e que nada tinha com o peixe.

Houve, de fato, quem gostasse. Muita gente. João Ribeiro e Oiticica dispensaram ao folhetinho a mesma boa acolhida dada à Cinza das Horas. O primeiro escreveu no Imparcial de 15 de dezembro:
“A musa do Sr. Manuel Bandeira é sóbria, oracular e quase taciturna, de poucas palavras, mas por vezes sublimes e profundas. Neste novo livro ... há desenvolturas de espírito e angústias de coração que bem definem o temperamento poderosamente versátil do poeta. Todas as delicadezas da arte, sem dano da suavidade da inspiração, o domínio da idéia e das palavras enfim, o ‘savoir-faire’, as qualidades de verdadeiro escritor aqui se apresentam com exclusivo brilho... Tudo é de esmerado lavor; bastaria uma só das composições de Carnaval para dizer como é numeroso o ritmo dos seus versos e como e consumada a arte com que os compõe”.

Que podia eu desejar ainda ? Era aprovação e elogio do mestre encanecido na leitura da poesia de várias literaturas. Pois tive mais: a geração paulista, que iria, ainda neste ano de 1919, iniciar a revolução modernista, tomou-se de amores pelo Carnaval. Segundo informação de Mário de Andrade, foi Guilherme de Almeida quem primeiro assinalou o livro e o revelou aos companheiros. Naturalmente a sátira "Os Sapos” estava a calhar com o número de combate e, com efeito, por ocasião da Semana de Arte Moderna, foi o meu poema bravamente declamado no Teatro Municipal de São Paulo pela voz de Ronald de Carvalho sob os apupos, assovios, a gritaria de “foi não foi” da maioria do público, adversa ao movimento.

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Publicado em 1919, a edição de "Carnaval" foi custeada pelo seu pai. Ainda que apenas dois anos o separem da publicação de "A Cinza das Horas", boa parte dos poemas não repetia seu tom amargo. Afinal, um livro cujo título é "Carnaval" já sinaliza a intenção.
Mas o Carnaval de MB me parece uma alegoria intelectual da "festa da carne", não o Carnaval real que acontecia nas ruas do Rio de Janeiro. Talvez signifique um início do adeus às agruras da tuberculose, e o começo da sua abertura à busca da alegria, do prazer e do sexo.
Aliás, tanto em temática quanto em forma, o livro me parece um ritual de passagem, em que o novo e o velho perambulam misturados. No primeiro verso do livro MB diz que quer beber e cantar asneiras e no último fala que o seu Carnaval é sem nenhuma alegria.
Dos 33 poemas do livro, eu diria que talvez dois terços sejam poemas novos quanto ao estilo e ao tema, sendo que destes alguns tem conteúdo erótico. Quanto ao terço restante - se publicados fossem -, estariam melhor em "A Cinzas das Horas".
Em diversos dos poemas novos, ele explora os mitos da "Commedia dell'arte", com o triângulo amoroso entre Pierrot, Colombina e Arlequim. Sendo Pierrot o símbolo do personagem poético, sensível e sofrido, apaixonado pela Colombina que o rejeita; Arlequim, o malandro que consegue tudo com jogos e trapalhadas, e, por fim, a Colombina, que é apaixonada pelo Arlequim, por quem é usada e traída.
Eu diria até que MB era um Pierrot que almejava ser Arlequim.

Destaco três poemas, embora um deles me toque diretamente.

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O uso dos mitos de Pierrot, Colombina e Arlequim em muitos poemas os torna previsíveis. No título, já se sabe o enredo e o final, e tendo métrica e rima na forma, ficam mais comuns ainda.

Destes, só destacaria um.

"O DESCANTE DE ARLEQUIM

A lua ainda não nasceu.
A escuridão propícia aos furtos,
Propícia aos furtos, como o meu,
De amores frívolos e curtos,

Estende o manto alcoviteiro
À cuja sombra, se quiseres,
A mais ardente das mulheres
Terá o seu único parceiro.

Ei-lo. Sem glória e sem vintém,
Amando os vinhos e os baralhos,
Eu, nesta veste de retalhos,
Sou tudo quanto te convém.

Não se me dá do teu recato.
Antes, pulido pelo vício,
Sou fácil, acomodatício,
Agora beijo, agora bato,

Que importa? Ao menos o teu ser
Ao meu anélito corruto
Esquecerá por um minuto
O pesadelo de viver.

E eu, vagabundo sem idade,
Contra a moral e contra os códigos,
Dar-te-ei entre os meus braços pródigos
Um momento de eternidade..."


Quanto à forma, nada a destacar. O que eu admiro é a sua descrição da pilantragem do Arlequim. Mas um Arlequim brasileiro. Quando o leio, me lembro dos sambas antigos de Noel Rosa, Ismael Silva, Ary Barroso e Chico Buarque.

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Outro poema que gosto é "Os Sapos, que foi lido e bastante vaiado durante a Semana de Arte Moderna.

"OS SAPOS

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.

Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.

O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.

Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A formas a forma.

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."

Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei!" - "Foi!"
- ~"Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- "A grande arte é como
Lavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo."

Outros, sapo-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas:
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".

Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Verte a sombra imensa;

Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é

Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio..."


O que admiro é o tom gozador. Os poetas, muito apropriadamente são comparados a sapos coachando na beira do brejo, disputando qual deles coacha melhor.
Ao criticar os parnasianos, MB afirma que "não há mais poesia, mas há artes poéticas..."

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"SONHO DE UMA TERÇA-FEIRA GORDA

Eu estava contigo. Os nossos dominós eram negros,
                                           [e negras eram as nossas máscaras.
Íamos, por entre a turba, com solenidade,
Bem conscientes do nosso ar lúgubre
Tão contrastado pelo sentimento de felicidade
Que nos penetrava. Um lento, suave júbilo
Que nos penetrava... Que nos penetrava como uma
                                                                                      [espada de fogo...
Como a espada de fogo que apunhalava as santas extáticas.

E a impressão em meu sonho era que se estávamos
Assim de negro, assim por fora inteiramente de negro,
- Dentro de nós, ao contrário, era tudo tão claro e luminoso.

Era terça-feira gorda. A multidão inumerável
Burburinhava. Entre clangores de fanfarra
Passavam préstitos apoteóticos.
Eram alegorias ingênuas, ao gosto popular, em cores cruas.
Iam em cima, empoleiradas, mulheres de má vida,
De peitos enormes - Vênus para caixeiros.
Figuravam deusas - deusa disto, deusa daquilo, já tontas e
                                                                                      [seminuas.
A turba ávida de promiscuidade,
Acotovelava-se com algazarra,
Aclamava-as com alarido.
E, aqui e ali, virgens atiravam-lhe flores.

Nós caminhávamos de mãos dadas, com solenidade,
O ar lúgubre, negros, negros...
Mas dentro em nós era tudo claro e luminoso.
Nem a alegria estava ali, fora de nós.
A alegria estava em nós.
Era dentro de nós que estava a alegria,
- A profunda, a silenciosa alegria... "


Gosto muito do poema, mas não sei porque. Ninguém comenta sobre ele, mas eu acho que a poesia vaza em seus versos elegantes e delicados. É uma poesia que eu sinto sem conseguir explicar o motivo, além de ser muito Manuel Bandeira.

MB diz no Itinerário que não é escrito em versos livres, pois "ainda acusam o sentimento da medida". Eu acho que seu ritmo específico engana quem pensar que seja prosa. "O Cacto" e "Gesso" repetem esse ritmo.

O poeta conta um sonho. Pela atmosfera, me parece que sonha dormindo, ainda que poderia estar acordado, pois o sonho lhe é muito agradável.

Numa terça-feira de carnaval, ele e uma mulher caminham de máscara e roupa dominó negras, paralelamente a um desfile de carnaval. Porém, enquanto a turba multicolorida festeja com algazarra e alegria, numa apoteose sexual e quase promíscua, ele e ela caminham puros e com solenidade, pois sua alegria estava dentro deles, - "A profunda, a silenciosa alegria".
Eles estavam felizes e tinham consciência disso.

Ao descrever a pureza da sua felicidade, MB utiliza uma imagem inspirada no suplício das santas católicas, cujo uso é insólito tanto no meio daquele quase bacanal como quanto metáfora de felicidade:

"Um lento, suave júbilo
Que nos penetrava... Que nos penetrava como uma
                                                                                      [espada de fogo...
Como a espada de fogo que apunhalava as santas
                                                                                    [extáticas"
.


É difícil saber o que eu gosto no poema. Ele não me fala ao cérebro, mas ao coração. Talvez seja a atmosfera de consciência do sonho feliz, da superioridade e do alheamento que o sentimento de felicidade nos dá. Nossa felicidade é tanta que ficamos alheios até às felicidades do mundo exterior.
A poesia está em seus versos, mas sem alarde; poeticamente.
Eu gosto.

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