terça-feira, 15 de setembro de 2015

Fernando Pessoa - Bernardo Soares, "Livro do Desassossego"













Capítulo 433.

Passei entre eles estrangeiro porém nenhum viu que eu o era. Vivi entre eles espião, e ninguém, nem eu, suspeitou que eu o fosse. Todos me tinham por parente: nenhum sabia que me haviam trocado à nascença. Assim fui igual aos outros sem semelhança, irmão de todos sem ser da família.
Vinha de prodigiosas terras, de paisagens melhores que a vida, mas das terras nunca falei, senão comigo, e das paisagens, vistas se sonhava, nunca lhes dei notícia. Meus passos eram como os deles nos soalhos e nas lajes, mas o meu coração estava longe, ainda que batesse perto, senhor falso de um corpo desterrado e estranho.

Ninguém me conheceu sob a máscara da igualha*, nem soube nunca que era máscara, porque ninguém sabia que neste mundo há mascarados. Ninguém supôs que ao pé de mim estivesse sempre outro, que afinal era eu. Julgaram-me sempre idêntico a mim. Abrigaram-me as suas casas, as suas mãos apertaram as minhas, viram-me passar na rua como se eu lá estivesse; mas quem sou não esteve nunca naquelas salas, quem vivo não tem mãos que outros apertem, quem me conheço não tem ruas por onde passe, a não ser que sejam todas as ruas, nem que nelas o veja, a não ser que ele mesmo seja todos os outros.

Vivemos todos longínquos e anônimos; disfarçados, sofremos desconhecidos. A uns, porém, esta distância entre um ser e ele mesmo nunca se revela; para outros é de vez em quando iluminada, de horror ou de mágoa, por um relâmpago sem limites; mas para outros ainda é essa a dolorosa constância e quotidianidade da vida.

Saber bem que quem somos não é conosco, que o que pensamos ou sentimos é sempre uma tradução, que o que queremos o não quisemos, nem porventura alguém o quis saber tudo isto a cada minuto, sentir tudo isto em cada sentimento, não será isto ser estrangeiro na própria alma, exilado nas próprias sensações?

Mas a máscara, que estive fitando inerte, que falava à esquina com um homem sem máscara nesta noite de fim de Carnaval, por fim estendeu a mão e se despediu rindo. O homem natural seguiu à esquerda, pela travessa a cuja esquina estava. A máscara — dominó sem graça — caminhou em frente, afastando-se entre sombras e acasos de luzes, numa despedida definitiva e alheia ao que eu estava pensando.

Só então reparei que havia mais na rua que os candeeiros acesos, e, a turvar onde eles não estavam, um luar vago, oculto, mudo, cheio de nada como a vida...
* Igualha - s.f. Identidade de condição ou posição social, naipe: cada um com os da sua igualha, com os seus iguais.

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