segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Lúcio Cardoso, "Testamento de Lúcio Cardoso feito em nome de Liliane Lacerda de Meneses"


Tenho um casaco escuro. Um baú
onde guardo coisas que não interessam a ninguém.
Um pássaro  - mas de palha. Um dedal.
Uma velha medida de prata
que nunca serviu para pesar nem o bem nem o mal.
Uma gravata de seda que quando o vento dá
infla e voa - e é bela como se eu mesmo voasse -
um sorriso que vem mas é sempre como se acabasse.
Tenho uns livros: escritos quando?
E esses outros que trago, e vão andando comigo,
e flores que são sempre desse porão vedado
onde vivo
mais do que vivo essa vida de inventado?
Que espírito me fez nestas coisas
onde nunca me acho?
Que alma alucinada ditou o meu tesouro?
Que ouro assina no fim a ata deste livro?
Que impuro desejo atira o guardado
deste bem-estar de que me privo?
Ai, é que a hora não é a do sinal.
O amarelo do crivo inventa sua usura;
tenho mais - mas é tão pouco o que ainda tenho.
Tenho um amigo. Se for mais longe, um rio
de menino escorre o seu passar no vento.

Há sempre de mim um desmandado desmedido,
nesse amargor que me sucede quando, impotente,
dançando vou ao fim do muro.
Tenho sempre guardado um tempo de doente.
Às vezes, calmo, tenho de repente meu espanto:
não sei quem sou e nem a que me avenho.
Ah, ia esquecendo: tenho um assovio antigo,
que nos quintais eu chamo os cães que já passaram.
Tenho - e quem não tem? - um traje de marinheiro azul e manso.
(O traje é morto: há nele um ranço de madrugada que já não existe
                                                                                                 [ mais.)

Outras coisas tenho, e não sei a quem doá-las.
Um travesseiro de menino, feito de fustão vermelho,
onde muitas vezes chorei a minha escolha de ser vivo.
Essas miudezas a que ninguém liga - uma paisagem,
um céu que dei de presente a uma amiga tão pobre como eu,
uns botões que foram de roupas já sem identidade,
rosas. Essas rosas tão desmerecidas na sua invenção de flor
no seu símbolo usado até ao não-entendimento.
Outras coisas tenho, e nenhuma delas tem nome.
Fica o dom sem especificar o objeto.
E se me for antes que o tempo seja de partida,
não quero esse preto sem alma
que se chama outro -
quero apenas vivo, quando o vinho cintilar num copo branco
e a hora for propícia. O nome - CARDOSO,
LÚCIO - virá de súbito em meio a conversa sem sentido
e será como uma coisa muito antiga,
- aquele tempo - e tudo, mesmo usado,
recomeçará a ficar moço de repente.

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