segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Lúcio Cardoso, "O navio"


Trago em mim, nestas águas em febre,
sob um destino rijo ou amargo porto.
Só a vela arfa, cantiga estranha,
acompanhando a voz plena de sono.
Jamais transmite o espelho sem constância
o espaço branco por voar -
aí, o navio existe.
Trago-o nos olhos, já sem lágrimas,
feito de cansaço e de derrota.
Se já não grita e nem soçobra,
lamenta apenas, que o tempo é breve.
Tudo consome a maquinaria vil,
roda, corrente, entranhas de metal.
Gasta, inútil a fosforescência,
emblema e estandarte, se o navio
já não diz asilo de guerreiro.
Gasta o vidro, o leque, o riso,
todo o material que o sonho vela.
O navio existe. Não adianta
a massa torturada dos jardins,
águas da cascata, matas acordadas -
de ferro a sinfonia existe. Ei-lo,
fantasma de mares primitivos,
guiando a escravidão, ai de mim,
entre pântanos de sombra
e luas mortas.

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