"Aos cinquenta anos"
Aos cinquenta anos sou um ser perplexo,
não como aos vinte, aos trinta, ou aos
quarenta,
mas radicalmente perplexo. Não sei
se amo a vida ou a detesto. Se desejo
ou não desejo continuar vivendo.
Se amo ou não amo aqueles que amo,
se odeio ou não odeio os que detesto.
Se me quero patriarca, pai de família,
como acabei sendo,
ou se me quero livre pelas ruas
nocturnas
como quando não acabei de descobri-las
em décadas de andá-las, perseguindo
sequer o amor mas corpos, corpos,
corpos.
Sou de Europa ou de América? De Portugal
ou Brasil? Desejo que toda a humanidade
seja feliz como queira, ou quero que ela
morra
do cogumelo atómico prometido e
possível?
Não sei. Definitivamente, não sei.
Julgas que estou deitado num leito de
rosas?
— perguntava ao companheiro de tortura Cuauhtemoc
*.
Mas, mesmo destituído, preso e torturado,
ele era o Imperador, descendente dos
deuses.
Eu não descendo dos deuses. O corpo
dói-me,
que envelhece. O espírito dói-me de um
cansaço físico.
As belezas de alma, seja de quem forem,
deixaram
[de interessar-me.
Resta a poesia que me enoja nos outros
a não ser antigos, limpos agora do
esterco
de terem vivido. E eu vivi tanto
que me parece tão pouco. E hei-de morrer
desesperado por não ter vivido. Aos 50
anos
nem sequer a raiva dos outros ainda me
sustenta
o gosto e a paciência de estar vivo.
Outros que tentem e descubram:
que digam ou não digam é-me indiferente.
* Cuauhtemoc foi o último imperador dos Astecas.
Em 1520, foi preso, torturado e morto por Hernán Cortés.
Nenhum comentário:
Postar um comentário