segunda-feira, 14 de julho de 2014

José Hierro, "Serenidade"


Serenidade, és para os mortos,
que eu estou vivo e peço luta.
Outros haverá que te desejem:
esses não sabem o que buscam.
Se adormecessem nossas almas,
se as tivéssemos maduras
para olharmos insensíveis,
para aceitar sem amargura,
para não ver a vida em volta
apaixonadamente nunca,
duros e frios, como pedra
que sopra o vento e não a muda...

Almas claras. Olhos despertos.
Ouvidos cheios só da música
do sofrimento. Os dedos felizes,
embora os firam os agudos
espinhos. Todo o sabor acre
da vida em nossa língua.

                                 «Nunca
poderás molhar teus pés no rio
em que ontem os molhaste. Busca
a eternidade, vive no alto
contemplar de sua figura.»

 
Palavreado só dos livros,
desse que deixa a alma turva.
Serenidade que se vende
para livrar-nos da tortura,
para nos encher de sonho a alma
e rodeá-la pela bruma.
Serenidade, és para os mortos.
O homem é homem, não o assusta
saber que o vento que lhe canta
não voltará a cantar-lhe nunca.
Serenidade, não te entregues
a mim, nem te dês nunca
ainda que eu peça de joelhos
me libertes de minha angústia.
Será que vivo sem sabê-lo
ou que abandono já a luta.
Tu não me escutes, não me eleves
ao teu cume de luz única.

Palavreado só dos livros,
desse que deixa a alma turva.
Também me faço um pouco livro,
dorme minha alma...

                              Luz difusa.
A madrugada despedaça-se
azul e acre, como um fruto.
Os pinhais cantam na distância.
Chora um menino. E as nuas
mulheres e homens silenciosos
devagar erguem-se das últimas
sombras. Os pássaros esperam-me.
Alçam-se as ondas. (E perguntam-me
porquê). Sinos... (Ontem névoa,
hoje claro sol e depois chuva...)
Porquê? As folhas estremecem...

Vou inundando-me de música.

 Tradução de José Bento

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